Lançada entre duas datas especiais, os trinta anos de morte de Nelson Rodrigues, comemorados em 2010, e o centenário de seu nascimento, a ser celebrado em 2012, a revista Folhetim n. 29 (Teatro do Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, 427 páginas) traz uma coletânea de textos e entrevistas sobre a obra rodrigueana. Embora reúna alguns textos historicamente importantes, ninguém encontrará nessa publicação uma leitura contemporânea da obra de Nelson Rodrigues.
Chama a atenção o ensaio de Alain Ollivier, falando da rejeição inexplicável da obra de Nelson Rodrigues na França, e o de Cláudia Nascimento, analisando a mesma dificuldade de inserção do nosso dramaturgo na cultura americana. Obviamente, ambos enaltecem o dramaturgo e põem a culpa no público, “incapaz de entender” o universo rodrigueano. Essa “rejeição”, porém, está muito mal-explicada, sobretudo porque ela ocorreu justamente em países onde dramaturgos e encenadores radicais fizeram carreira consagradora: Beckett e Artaud, na França; Virgil Thomson e Bob Wilson, nos EUA.
Ainda que algumas dessas leituras sejam sem dúvida relevantes, há muitas outras nas quais o lugar comum impera de forma hiperbólica, repisando-se a eterna comparação entre Nelson e Dostoievski, ou Freud…
O fato é que, em 1941, com A mulher sem pecado, Nelson Rodrigues estreia na dramaturgia. Na opinião de Sábato Magaldi, “ninguém, antes de Nelson, havia apreendido tão profundamente o caráter do Brasil”, ou, “(…) a dramaturgia de Nelson Rodrigues adquire relevo especial. Ela rompeu tabus, criou nova linguagem, instituiu uma estrutura não convencional, (…)”
Há que se recordar que, por longos anos, Nelson Rodrigues foi um jornalista extremamente popular, talvez o mais popular do Rio de Janeiro, com uma coluna diária no jornal Última Hora, em que escrevia contos e crônicas, “nutridas do cotidiano”, segundo Magaldi.
Existem aqui fatos importantes: Nelson Rodrigues era jornalista e tinha a mídia a seu favor. Não se quer afirmar que sua obra nunca tenha sido atacada, pois o foi, adquirindo assim seu status escandaloso e polêmico. Mas não há dúvida de que a mídia favorável ajudou a criar o mito, a alimentá-lo por anos a fio e, finalmente, terminou por “monumentalizar” Nelson Rodrigues.
Num ensaio intitulado “Monumentos”, Robert Musil opina que “tudo que é duradouro perde seu poder de impressionar”, ou seja, “ao cabo de poucas horas deixamos de ouvir seu barulho incômodo e permanente.” Passado pouco mais de meio século, esse barulho incômodo da obra de Nelson Rodrigues parece ter diminuído, e tenderá a diminuir ainda mais se continuarmos a pensar nela como algo que permaneceu imóvel no caminho, oferecendo-se aos olhares de todos. Mas isso, diz Musil, “qualquer um é capaz de fazer; hoje já podemos exigir mais dos monumentos”.
Decerto, não é mais possível ler a obra de Nelson Rodrigues somente como uma obra transgressora dos costumes. O dramaturgo nutria sua ficção com o cotidiano e soube trabalhar como ninguém o insignificante. Para o pensador francês Maurice Blanchot, o cotidiano tem dois significados paradoxais: se por um lado ele é o insignificante, o sem segredo e o sem verdade, por outro lado ele é também o lugar de toda possível significação, pois o cotidiano é o lugar da possibilidade da construção de sentido.
Nelson Rodrigues, uma “flor de obsessão”, como era chamado por seus amigos, tratava de dois temas em especial, “amor e morte”, enfocando-os da maneira mais banal possível. O uso excessivo de clichês, de frases feitas, a psicologia rasa de botequim torna a comunicação entre seus personagens vazia e presa à banalidade do cotidiano. Poder-se-ia dizer, portanto, que a crueza de suas falas e a crueldade de seus quadros repousariam no uso exasperado do óbvio e do kitsch, o que provocaria no espectador certo desassossego, certo desgosto típicos, e desagradaria sobretudo às plateias estrangeiras, embora estas absorvam muito bem Ionesco. Eis um trecho característico, extraído do clássico Vestido de noiva (1943): “Mulher de Véu: – Quer dizer que não sabia que eu estava namorando o Pedro? / Alaíde (mais indignada): – Aquilo, ‘namoro’?! Um flerte, um flerte à toa! / Mulher de Véu (mais indignada): – Você quer dizer a mim que foi flerte. Quer me convencer? / Alaíde (teimosa): – Foi. / Mulher de Véu (violenta): – E aquele beijo que ele me deu no jardim também foi flerte?”.
Afirma Sábato Magaldi, porém, que “é preciso reconhecer a realidade teatral brasileira de inícios da década de quarenta para avaliar a força inovadora representada por Nelson Rodrigues. Nessa época, a revolução empreendida pela Semana de Arte Moderna de 1922 já se consolidara na poesia, no romance, na pintura, na arquitetura, na escultura, no desenho, na música – menos no palco”. Em razão da censura e do pouco refinamento estético do espectador, a obra do modernista Oswald de Andrade (1890-1954) permaneceu obscurecida durante décadas. O mesmo se deu com a obra de Flávio de Carvalho (1899-1972), cujas “experiências”, que hoje chamaríamos de performances, ficaram por muito tempo à margem do que se chamava no Brasil de teatro (termo vinculado ao palco).
Quanto a Nelson Rodrigues, talvez devêssemos profaná-lo em 2012, pois, como ensina Giorgio Agamben, “livre dos nomes sagrados”, ele será, no centenário de seu nascimento, finalmente “reconstituído ao uso comum dos homens”, e descerá do pedestal e provocará nos críticos e estudiosos comentários mais substanciais do que esses de que hoje dispomos.
Dirce Waltrick do Amarante. Professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC.