Entre aplausos e toda sorte de elogios, Monteiro Lobato foi relembrado por seus velhos leitores, aqueles que o conheceram em vida, na 21ª Bienal do Livro, em São Paulo. A homenagem ao homem Lobato foi, obviamente, válida. Quanto à sua obra, em particular a dedicada ao público infantil, alguns leitores de peso, dentre os quais Lygia Fagundes Telles e Tatiana Belinky, lembraram da importância dela nas suas respectivas formações. Diante disso, quem questionará hoje o valor de seu legado literário? Mas a discussão não deveria concluir assim, de forma tão simples.
Poder-se-ia até afirmar que, se não fosse por uma menção rápida e inusitada, mas entusiasmada, que a autora de Ciranda de pedra e de As meninas fez ao índio, tal como este, segundo ela, foi retratado na obra para crianças de Lobato, os espectadores sairiam dessa homenagem como entraram: sem nenhuma surpresa estética, nenhuma informação nova, nenhum entusiasmo pela obra de Monteiro Lobato.
Assim, de uma tarde festiva, na Bienal de São Paulo, restaram duas perguntas: em que livro esse índio aparece? Haveria alguma referência a ele em Histórias de Tia Nastácia, quando Dona Benta, por exemplo, explica uma das histórias contadas por Tia Nastácia da seguinte maneira: “Esta história – disse Dona Benta – deve ser dos índios. Os povos selvagens inventavam coisas assim para explicar certas particularidades dos animais”. Narizinho prossegue: “Se as histórias deles são todas como essa, só mostram muita ingenuidade. Acho que os negros valem mais que os índios em matéria de histórias”. Dona Benta parece concordar com Narizinho, já que se cala, e Tia Nastácia continua narrando suas histórias.
Ou será que Lygia Fagundes Telles fazia, na ocasião, uma referência ao Visconde de Sabugosa? Penso que seria possível, com um pouco de imaginação, é verdade, pensar nesse Visconde como o primeiro homem da cosmogonia ameríndia, aquele que nasce do milho, mas, na obra de Lobato, esse primeiro homem autóctone já vem devidamente moldado pelos “brancos”. Cabe lembrar que, em A chave do tamanho, em uma alusão, talvez, à antiga Constituição Federal brasileira, que vetava aos índios o direito de voto, lemos: “− O voto dele não vale! É milho! Milho não vota”.
O fato é que, ainda hoje, parece que continuamos a ver Lobato com os olhos dos primeiros leitores do escritor, esses que o homenagearam na Bienal. Já não surpreende que a nova geração de estudiosos do escritor, mais especificamente, de sua obra chamada infantil (embora sua obra não se restrinja apenas a essa faixa etária), se aproprie das primeiras impressões de leitura desses antigos leitores, sem lhe acrescentar quase nada que seja capaz de revelar o que sua obra teria de atual. Basta, para verificar isso, folhear alguns ensaios que integram a alentada obra Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil (2008), organizada por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini. Cito esse livro em particular por se tratar de uma antologia de textos sobre a obra de Lobato escrita por experts e jovens pesquisadores.
No ensaio “A gramática da Emília: a língua do país de Lobato”, por exemplo, a doutoranda Thaís Albieri afirma que Emília no País da Gramática “abre espaço para um diálogo entre o menino e a avó, no qual se manifesta de forma clara a ideia de Pedrinho (e, junto com ele, por hipótese, dos leitores) sobre gramática: estudar as regras da gramática não passava de uma ‘caceteação’”. Certamente, para Pedrinho e leitores de outra época (da primeira metade do século passado), sua ideia sobre estudar gramática é “clara”, mas me pergunto se os atuais leitores de Lobato, no século 21, entenderiam tão facilmente o que quis dizer o narrador do livro, quando, usando uma linguagem “coloquial” do anos 1930, afirma que, estimulado pela avó a estudar gramática, “[…] Pedrinho rezingou”. E o que dizer da frase seguinte: “− Maçada, vovó. Basta que eu tenha de lidar com essa caceteação lá na escola […]”.
O adjetivo “claro”, usado pela ensaísta, parece afirmar erroneamente a atualidade da linguagem de Lobato, ou, se não for isso, caberia concluir que a ensaísta nos fala de algum lugar do passado, onde essas frases eram bastante usuais. Aliás, muitos estudiosos contemporâneos costumam chamar a atenção para a linguagem de Lobato, afirmando que ela se “aproxima” muito da linguagem das crianças. Só me pergunto de quais crianças − certamente não são as do século 21. Isso não significa que a linguagem do livro impeça a sua fruição, mas há que se ter cautela antes de se sugerir tamanha “clareza” do escritor.
Nesse mesmo ensaio, lemos ainda que, em Emília no País da Gramática existem “diálogos que facilitam a compreensão do leitor”, sobre os vários aspectos da gramática. Será? O que dizer desse diálogo entre a palavra Bamba, que adquire uma dimensão de personagem, e Pedrinho: “− Bobo sei o que significa – disse Pedrinho. – Nunca foi gíria.// − Lá em cima – explicou Bamba – Bobo significa uma coisa; aqui embaixo significa outra. Em língua da gíria Bobo quer dizer relógio de bolso. Quando um gatuno diz a outro: ‘Fiz um bobo’, quer significar que ‘abafou’ um relógio de bolso”.
Nessas horas, alguns leitores se lembrarão das lições de Humpty Dumpty, personagem que, no livro Através do espelho, também dirigido às crianças, do inglês Lewis Carroll, esclarece esse aspecto semântico das palavras da seguinte forma: “[…] são temperamentais, algumas […] em particular os verbos, são os mais orgulhosos […] com os adjetivos pode-se fazer qualquer coisa, mas com os verbos […] contudo, sei manobrar o bando todo! Impenetrabilidade! É o que eu digo!” (tradução de Maria Luiza Borges).
Para demonstrar o sucesso de Emília no País da Gramática entre os pequenos leitores, Thaís Albieri cita uma carta de 1934, na qual uma criança agradece a Lobato o mencionado livro, que teria sido muito “didático” e “esclarecedor”.
Não sei, todavia, se hoje a gramática da Emília seria assim tão esclarecedora quanto o foi lá no passado; teria valido a pena acrescentar à tese defendida pela ensaísta uma carta de uma criança contemporânea. Mas o que isso importa? A obra de Lobato ainda não chegou ao século 21, não é mesmo?
A propósito, Albieri põe uma nota de rodapé em seu texto para explicar a palavra “goto” (tantas outras palavras mereciam uma nota de rodapé!), usada no seguinte contexto: “[…] advérbios novos, que caíram no goto […]”. Ela esclarece, na sua nota, que “a palavra ‘goto’, que pelo contexto parece gosto, foi mantida porque está grafada dessa forma na 1ª edição do livro”. Devo lembrar, porém, que a expressão existe e é vernácula. Segundo o dicionário Aurélio, por exemplo, “cair no goto de” significa “ser objeto de agrado, de simpatia, […]”, justamente o que quis dizer Lobato. Isso só demonstra que sua linguagem, para os pequenos leitores e outros grandes (pouco atentos), não é tão “clara” quanto se quer fazer crer.
Em outro ensaio do livro Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil, ao se referir ao livro Histórias de Tia Nastácia, a pesquisadora Raquel Afonso da Silva aponta, ainda que rapidamente, para a assimetria entre “branco/negro, erudito/popular, letrado/oral” na obra de Lobato. Mas, na conclusão de seu texto, exalta apenas o “viés pedagógico” do livro de Lobato, deixando de lado discussões que poderiam abalar a imagem consagrada de escritor perfeito para as crianças de todas as raças, épocas e classes sociais.
De fato, há algo de paradoxal na obra de Lobato no tocante à raça, à cultura etc. Em Histórias de Tia Nastácia, só para mencionar uma ocorrência do paradoxo mencionado, ao mesmo tempo em que o escritor critica as histórias “grosseiras e bárbaras” da “negra beiçuda”, ele também as valoriza ao torná-las acessíveis a seus leitores, ainda que essas histórias sejam encaradas por ele não como literatura, mas, conforme diz Pedrinho, “como um estudo da mentalidade do povo” .
Quanto à fala de Tia Nastácia, há que se recordar ainda que ela ganha, muitas vezes, destaque em seus livros, mesmo que suas frases sejam criticadas ou menosprezadas pelos personagens da trama.
No estudo “‘O poço do Visconde’: o faz de conta quase de verdade”, do livro de ensaios que estou comentando, a pesquisadora Kátia Chiaradia, ao falar do livro O poço do Visconde, afirma, parecendo concordar plenamente com as opiniões de Narizinho, o que é de estranhar, que “numa grande festa para comemorar o sucesso da descoberta do petróleo, todos (à exceção de Tia Nastácia, que não tinha estudos) discursaram sobre o significado da descoberta, […]”. Tia Nastácia faz, porém, seu discurso, embora ele não seja “como o dos outros”, e apesar da seguinte afirmação categórica de Narizinho: “Isso não é discurso”.
É preciso salientar, contudo, que, depois do discurso da Tia Nastácia, “todos se comoveram, inclusive Quindim, que pingou uma lágrima do tamanho de uma jabuticaba […]”. Além do mais, é depois desse discurso que Dona Benta vê a cozinheira como igual: “− Sim, minha negra. Você, além de ser minha grande amiga, é a outra avó dos meus netos…”.
Já que estamos em O poço do Visconde, uma frase ainda hoje me perturba nesse livro de Lobato, repleto de frases “barrocas” como “− Depois temos a Era Mesozoica, ou Secundária, cujos terrenos se compõem de argilas, piçarras, calcários de conchas. Surgem fósseis de plantas já bastante adiantadas, como as coníferas, as cicadácias, os grandes fetos arbóreos; e também fósseis de sapos gigantescos, sáureos enormes, plesiossauros, ictiossauros, lagartões voadores…”.
A frase que mais me chama a atenção não é tão longa, embora seja tão enigmática quanto a citada acima. Trata-se de uma frase proferida por Narizinho. A menina, ao ser indagada por Pedrinho a respeito de como conseguir dinheiro para dar início aos planos de extração do petróleo, desdenhosamente replica: “− Isso é lá com você, que é homem – respondeu a menina. – Dinheiro é assunto masculino, arrume-se”. Dentro de um contexto histórico, a frase deve soar normal, mas, hoje, sem nenhuma explicação dos editores, ela deixará, certamente, muita criança intrigada.
A propósito, não faço aqui uma crítica aos ensaios sobre a obra de Lobato, que compõem um livro premiado no ano passado com o Jabuti, pois acima de tudo reconheço que Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil traz informações editorias importantes para o leitor de hoje, mas é inegável que ali se fala de um Lobato monumental, intocado, um Lobato lido e interpretado com o olhar de outra época, sem nenhuma tentativa de torná-lo mais vivo, mais complexo, mais interessante e contemporâneo. Talvez essa leitura bem-comportada, calcada no lugar-comum ou na imagem consagrada, tenha sido mesmo a intenção de seus organizadores, Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, dois nomes de referência nessa área. É de Marisa Lajolo, aliás, um ensaio que, a meu ver, merece destaque nessa obra, pois trata da oralidade nos textos infantis de Lobato, lembrando, no entanto, que certos termos usados pelo escritor eram conhecidos (só?) pelos “leitores daquela época”. Além disso, a ensaísta ressalta a faceta de Lobato criador de palavras, quase à moda de Carroll.
A impressão que se tem, porém, é a de que, atualmente, Monteiro Lobato não é mais lido com atenção, nem pelas crianças, nem pelos adultos. Se o fosse, tenho certeza de que teríamos ideias novas sobre ele e não continuaríamos a repetir apenas a imagem que o passado construiu em torno dele e de suas palavras. Por isso mesmo é urgente recuperar a dimensão literária de sua obra, de inegável importância: antes de tudo, tirando-a do limbo da classificação controversa e talvez estanque, a da literatura infantil, na qual tudo parece (ou tem de ser) fácil, claro, didático e inocente. Dever-se-ia ver sua obra simplesmente como literatura, aí, sim, poderíamos trazer à tona, sem possíveis inibições pedagógicas, temas tão evidentes quanto complexos – raça, política, linguagem etc. −, estimulando, assim, a imaginação e a inteligência dos leitores de todas as idades. Espera-se, ainda, uma nova edição da obra de Lobato (embora ela tenha sido reeditada recentemente), com uma glosa e estudos mais atuais a seu respeito. Desse modo, talvez, ela finalmente volte a ser lida de verdade, com olhos bem abertos.
Enquanto aguardamos essa tão sonhada reedição, mais uma salva de palmas para o pai da boneca Emília.