Sobre Querer falar de Luci Collin
Eleonora Frenkel
Há pouco me perguntaram sobre o livro que marcou a minha vida, com ênfase na escolha em singular: apenas um deles. Certamente nos parece uma resposta impossível, já que entre dezenas de livros lidos e por ler, diversos nos marcam de distintas maneiras, por motivos diferentes, conforme os momentos que vivemos. Não haveria um livro e sim diversos deles, com os quais nos encontramos e desencontramos ao longo da vida.
Qual é o momento do encontro? Quanto tempo há que se esperar por ele? Na opinião de escritores como César Aira e Alan Pauls, por exemplo, os livros de Júlio Cortázar teriam um encanto especial na adolescência e primeira juventude e, depois disso, em um reencontro na maturidade, haveria um descompasso.[1] Por certo, muitos discordariam dessa afirmação. O ponto é que talvez pouquíssimos livros possam ser lidos e relidos e ter a cada leitura o encontro renovado. Muito embora os livros possam ser abertos em páginas aleatórias e a qualquer momento, e a cada um desses gestos corresponderá uma nova percepção da palavra escrita, como no Livro de areia, de Borges.
Aguardo e, enquanto espero, o tempo se prolonga. Procuro folear livros e não me encontro com nenhum deles. Desejo uma frase, um verso, que me cative; enquanto o poeta pesca palavras, sou o leitor que quer ser fisgado por ela. O verso que me quer está em Querer falar, de Luci Collin, e me fala sobre essa espera, me diz sobre as mãos de um moço que
explicam porque este ano são tardias
a expressão das açucenas [2]
Por que tarda a flor em se expressar? Por que nos deixa à espera de sua cor e seu aroma? Porque o tempo que a rege não é o do relógio, é claro, e sim o da terra, do sol, da chuva e da água, dos ciclos que movem o tempo e não daquele que os subjugam a seu cronograma. Deleuze nos conta que Kant foi o pensador que inverteu a relação de subordinação entre tempo e movimento: até suas reflexões, o primeiro derivava do segundo, era o movimento periódico de rotação dos astros que determinava o tempo; em nossa percepção moderna, pós-kantiana, o segundo passa a estar subordinado ao primeiro: o movimento deixa de ser circular e passa a ser linear e determinado por uma medida do tempo prévia.[3]
Pois o tempo do encontro é casual, é irrupção inesperada, é como a chuva de granizo no auge do verão: tão possível quanto imprevisível. E o poema seria assim, como essa força espontânea que brota à revelia de prazos e vontades? “Advento” é a palavra que se escreve sozinha, que acaece:
eu queria poder escrever
o poema que aqui irrompeu
Puramente por si[4]
Mas a poetisa nos engana: o poema não nasce como flor selvagem; em todo caso, como flor de vaso: plantada, adubada, regada, podada, acarinhada diariamente. Essa é a “Cerimônia da composição”, o ritual cotidiano do “homem das letras”, que
desnecesita de alfabetos cridos
Porque todo dia estreia um
seu[5]
Há que se criar a palavra para poder falar, já o diria o narrador de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector: “Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?”.[6] E não pense que é a palavra sob medida que faz o poema; ao contrário, este é “feito sob desmedida”, é o desajuste da frase, é o “desconforto de cogito”,[7] é o fora da lógica; é como um corpo que dança, que se desprende da Razão, como a dançarina “demente”, “essa mulher bizarramente desenraizada, que se arranca sem cessar da própria forma” e que Sócrates observa em A alma e a dança, de Valéry.[8]
Há que se “inventar espaços”, como diz o livro de poemas anterior de Luci Collin, Trato de silêncios (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012), para fazer as palavras dançarem sua coreografia, por mais monótona que esta se anuncie.[9] Criar a palavra que dança numa composição, ou escrever poesia, seria como fazer “a escolha dos loucos”:[10] dançar nu em praça pública. É fazer “valer da fala os ecos”,[11] é deixar que a reverberação da voz se escute sem compreensão precisa, dando margem às ondas sonoras que repercutem sentidos.
se for poesia isso que escrevo
remonta à ausência do não significado[12]
O não-significado do poema seria como a não-representação da dança que, como diz Sócrates no mesmo diálogo: não representa “coisa nenhuma”, “mas qualquer coisa”;[13] a palavra e o gesto não miméticos que abrem a percepção dos sentidos possíveis e indecifráveis, perceptíveis pela memória consciente e inconsciente do corpo.
O trato de silêncios e o querer falar seriam algo como o verso e o reverso da mesma moeda: de um lado, acordar a escuta dos silêncios da voz, ler “desse discurso”, “só mesmo ausências da palavra”,[14] aquilo que ela não diz; de outro lado, querer falar e perceber as fendas e abismos entre o querer ser dito, a palavra, o dito e o ouvido… A epígrafe de “Tentame”, diz:
e entre nós e as palavras, o nosso querer falar (M. Cesariny)[15]
Há um espaço entre os corpos da palavra, daquela que a enuncia e daquele que a escuta; fala-se, “apesar das falhas e das fendas nas palavras”.[16] E há um “abismo entre o que sinto e o que digo”, “entre o que disse e o que quer que fosse”.[17] E são esses espaços vazios que a poesia de Luci Collin abre e explora, esses lugares em que o tempo vazio da espera também se prolonga, sem a promessa de um encontro marcado.
Resenha de Luci Collin. Querer falar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014, 75 p.
[1] Ver: Antônio Xerxenesky, “O futuro nada previsível de Julio Cortázar”, Blog do IMS, 26/08/2014, consultado em 21/02/2015, disponível em: http://www.blogdoims.com.br/ims/o-futuro-nada-previsivel-de-julio-cortazar
[2] “Alvecim”, Querer falar, p. 17.
[3] Ver: Gilles Deleuze, “Kant”, Abecedário, entrevista por Claire Parnet, 1988-89/1994-95, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=He–eE1CXOc
[4][4] “Advento”, Querer falar, p. 51.
[5] “Cerimônia da composição”, Querer falar, p. 21.
[6] Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 21.
[7] “Corpo que lembra uma dança”, Querer falar, p. 60
[8] Paul Valéry, A alma e a dança e outros diálogos, Tradução de Marcelo Coelho, Rio de Janeiro, Imago, 2005, p. 40.
[9] “Almanaque”, Trato de silêncios, p.35 e “Fuga”, Trato de silêncios, p.74.
[10] “Hupónoia”, Querer falar, p. 50.
[11] Idem ibidem.
[12] “Schriftsteller (o livro de fotos)”, Trato de silêncios, p. 22.
[13] Valéry, op.cit., p.44.
[14] “Desta feita”, Trato de silêncios, p. 9
[15] “Tentame”, Querer falar, p. 15
[16] “Profissão”, Querer falar, p. 12.
[17] “Entrecho”, Trato de silêncios, p. 66.