Já na leitura das primeiras páginas do livro A palavra nova: o diálogo entre Nelson Rodrigues e Dostoiévski, UnB, 2011 (tema caro de muitos estudiosos, como Luiz Felipe Pondé), de Cláudia Drucker, pareceu-me que seria muito interessante acrescentar aos nomes desses dois artistas o nome de outro dramaturgo brasileiro, o gaúcho Qorpo-Santo.
Como o personagem Ivan Ilítch, do conto “Uma história lamentável”, de Dostoiévski, que se vê completamente deslocado numa festa de casamento para a qual não havia sido convidado, Qorpo-Santo parecia também não estar no lugar e na época certos quando criou sua obra. Nascido na vila do Triunfo, interior do Rio Grande do Sul, no início do século XIX, Qorpo-Santo, pseudônimo de José Joaquim de Campos Leão, cujo pai era catarinense, quebrou “totalmente a noção de ‘peça bem-feita’, ambição de nosso teatro romântico e realista, que seguia, na verdade, a tradição do teatro europeu”, como lembra Eudinyr Fraga. Por isso, suas peças passaram longe dos palcos brasileiros, ficando no ostracismo por mais de um século: só foram “descobertas” por volta do final dos anos 1960, quando ganharam edições e montagens.
Sábato Magaldi ressalta, no entanto, que “se Qorpo-Santo não participava, até a década de 1960, dos livros que traçavam a evolução de nossa dramaturgia, o motivo é simples: ele não contava, por ser desconhecido. Caso isolado, escrita inclassificável pelos padrões da época em que viveu, passou a perturbar os esquemas sabidos do romantismo ou da triunfante comédia de costumes no século passado. Hoje seria impossível descartá-lo (…)”, embora Qorpo-Santo ainda seja pouco lido e encenado entre nós.
A obra de Qorpo-Santo, segundo Flávio Aguiar, autor de um estudo pioneiro sobre o escritor e dramaturgo gaúcho, só renasceu “na crista de uma antiga tendência da cultura brasileira: o incontido desejo de que aqui e ali, no campo do futebol, na invenção do avião, no terreno das artes, a ‘Europa se curve ante o Brasil’. Não era suficiente descobrir as peças de um bom dramaturgo; tratava-se de um Ionesco; a vanguarda europeia estava no bolso do casaco”.
Quanto a Nelson Rodrigues, este, diferente do fictício Ivan Ilítch de Doistoiévski ou do dramaturgo Qorpo-Santo, estava no lugar certo (Rio de Janeiro, capital do Brasil) e na época correta. Sobre a estreia de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, nos palcos, em 1943, Sábato Magaldi afirma: “pode-se argumentar que as condições particulares do teatro carioca, naquele instante, apelavam para o acontecimento, preparado pelas duas temporadas de Louis Jouvet, em 1941 e 1942. É quase uma sorte, quando a conjugação de vários fatores produz o desfecho feliz.” Aliás, Oswald de Andrade, outro escritor e dramaturgo inovador, não teve a mesma sorte de Nelson Rodrigues, como lembra Magaldi.
Por isso mesmo, convém destacar um marco teatral da maior importância: a peça dos modernistas Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho e Tarsila do Amaral, Bailado do deus morto (uma adaptação dessa peça, a performance Experiência Flávio de Carvalho nº6, dirigida por José Celso Martinez, Teatro Oficina, foi apresentada com sucesso na última Bienal de São Paulo), de 1933, citada muito en passant em A palavra nova, porém avaliada negativamente pela sua autora, para quem o “ideal oswaldiano” da antropofagia é uma atitude mais passiva do que ativa e “antes reativa do que criativa”. Nesse ponto, devo citar Eduardo Viveiros de Castro, que tem outra opinião: “a antropofagia foi a única contribuição realmente anticolonialista que geramos, contribuição que anacronizou completa e antecipadamente o célebre topos sobre as ideias fora do lugar. Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. A antropofagia era e é uma teoria realmente revolucionária”.
Quanto à temática de Qorpo-Santo e de Nelson Rodrigues, pode-se dizer que ela faz parte dos temas comuns à dramaturgia do século XIX no ocidente, ou seja, amores contrariados ou incestuosos, adultérios e ódios. No caso de Qorpo-Santo, porém, esses temas aparecem sob um enfoque “absolutamente diverso”. Na opinião de Eudinyr Fraga, “as preocupações morais soam inautênticas ou surgem dentro de uma perspectiva paródica”, diria, dentro de uma perspectiva nonsense, uma vez que seus textos não têm um ponto de equilíbrio, deixando o leitor em dúvida sobre o que deveria ter entendido, se de fato entendeu aquilo que leu ou se realmente nada daquilo faz sentido. Devo lembrar que Qorpo-Santo é, coincidentemente, contemporâneo de Edward Lear e Lewis Carroll, os pais do “nonsense vitoriano”.
Voltando a “Uma história lamentável”, de Dostoiévski, embora trate de uma festa de casamento, onde os noivos terminam na cama, não há nenhuma conotação sexual à moda rodrigueana, só uma ressaca moral por parte do protagonista que “perturba” a noite de núpcias do casal, e a decepção da noiva, ceifada de seu ritual de passagem.
Para a autora de Palavra nova, “Nelson Rodrigues é o escritor mais radical da literatura brasileira. (…). Sua radicalidade não se deve ao escândalo que seu teatro um dia provocou, mas ao vigor que sua linguagem ainda hoje carrega”. É um juízo pessoal que não precisamos compartilhar, mas que acatamos como um pressuposto subjetivo da sua abordagem, que parece excluir a possibilidade de outros tipos de avaliação. Pergunto-me, no entanto, se “vigor” de sua linguagem não estaria provavelmente relacionado ao fato de não termos certeza se os dramas de Nelson Rodrigues são ou não bem escritos, se seus diálogos são ou não uma exploração provocativa da banalidade. Seu “teatro desagradável” (na expressão do dramaturgo) teria, possivelmente, menos relação com o tema – “patético, incestuoso e exagerado” – e mais relação com sua linguagem, que provoca certo desgosto, certa dúvida sobre o seu valor literário.
Na teoria do desgosto, proposta por Mario Perniola, encontraremos talvez o que há de mais contemporâneo na obra de Nelson Rodrigues. Segundo Perniola o desgosto “é algo mais direto, espontâneo, e poderia dizer fisiológico do julgamento de gosto (…), reatividade quase mórbida diante de algo que toca o estômago, ainda antes de chegar ao cérebro.” O teatro de Nelson Rodrigues teria esse poder, o de tocar o estômago ainda antes de tocar o cérebro.
Pensar nessa teoria poderia trazer de alguma forma a obra de Nelson Rodrigues para o nosso tempo, afinal, o autor não vislumbrou ou cogitou o pós-dramático, mesmo depois de Gertrude Stein, dos futuristas etc. Nelson Rodrigues afirmava: “e não ocorre ao diretor, ao cenógrafo, ao elenco esta verdade inapelável e eterna: – todos ali estão, (sic) a serviço exclusivamente do texto. E, se o texto for devorado, vamos convir que o texto é um fracasso inédito”. No tocante às cenas simultâneas nas peças rodrigueanas, há que se recordar que a cenografia múltipla implicou, segundo Sábato Magaldi, “o conceito de simultaneidade, um dos mais sugestivos entre os postos em prática pelo futurismo”, movimento que antecede os dramas de Nelson Rodrigues.