brn 22/nov./69
olho a foto fora de foco o cartão cor cordão
rosário e peça e começo a decifrar o que já
vi e sei: Maracanã e mais além não o que
concentra no estádio-luz mas o que aureola
coroa formigando a paisagem de cinza calor e
luz suor: oh, a luz que à noite se vê do morro
é o clamor clarão maracanão pão dos olhos e
barulho de ter mas o que está aqui é a vida
diante dos olhos ruas ruas noite dia e se olho
agora o esqueleto que faço vejo aqui o Esqueleto
esqueleto-esqueleto do esqueleto do esqueleto do
esqueleto catacumba caveira Caveirinha Cara de
Cavalo e se o ensaio na Cerâmica terminou o pulo
Pela linha do trem para o esqueleto esqueleto
Esqueleto não sei se a paisagem e a ponte escura
Sobre o rio que nunca vi de tão sombra que se
Míngua nas sombras tumbas das casas barracões
(seria a origem do Barracão o esqueleto do
esqueleto do Esqueleto) onde paixões dormem ou
comem os restos dos mortos pois o ensaio acabou
na Cerâmica e os mortos estão dormindo mas eu
ando e vejo escuto o porque da tanta avidez de
tanto silêncio se o ensaio acabou e porque dormem
e porque a ponte sobre o rio a rua vazia à
sombra do estádio e seria o mesmo que sentiam em
Roma quando o Coliseu coliseava sombra umbra
Catacumba ou samba (que ritmos correm não me
lembro agora mas não corro apesar da sombra pois
ninguém vem todos dormem e medo nunca tive então
ou não o descobrira porque sambeavam cálulas
mentais) ou era a hora de vir o ônibus ou estariam
buseando nas garagens ou à espera não sei de que
mas não não na praça Barão de Drumond eles não
dormem só os oitis de Noel ou os pequenos burgueses
em paz mas ônibus omnibus para todos dizem mas se
chego à rua algo deve vir se não de lá ou dos altos
montes mas que descem e trazem os que não dormem
pra baixo onde o samba acabou e eu pulei o muro
para linha de trem para ponto para o labirinto
esqueleto que dorme e chupa os ossos de mortos ou
vivos e já é silêncio na Candelária não a de baixo
mas a Candelária morro ensaio cerâmica sambâmica
gôsto de leite de onça e chinfra legal Visconde de
Niteroi mas dói saber que ou era ingenuidade ou
Têmpera do tímpano estar lá e não ver mas verouvir
Ouvir não sei que ritmos corriam ou que horas
Seriam seriados ou não ou se era o silêncio do
Estádio da quadra do trem do ônibus da gente que
Dorme e chupa os ossos mortos ou o mato que cresce
Entra e desce e permeia o vulcão do esqueleto
Esqueleto maloca toca Noca com cara diabólica
(onde está ela agora ou só na memória ou folia)
não sei se era morro Noel ou esqueleto esqueleto
que me afligiam ou se o gozo ritmo do que permeava
células corporais ou mais ou o sal saliva suor
pular a linha do trem correr ventar da praça Barão
de Drumond oitivar noelses (um vento areia me
enguliu um dia) mas corro ouço motor ou vento de
onde vem não sei e não me lembro que ritmos
pensavam quando atravessei a ponte tábua sobre o
vão rio umbroso onde todos dormiam taba tabu
floresta da imaginação maloca dos índios dos
puros pruridos dos gritos manhas choros nas manhães
sem sol ou brasardente cadente sol sol sol
esquelético no esqueleto na ceramicação ou no trem
ou no dia a dia dia dia mas o barulho de motor vem
de longe na noite da praça Barão de Drumond ou sete
ou dos altos distanciamentos sobre o asfalto cimento
“suave é a noite” o corte giletinoso andar-correr
ventar brisar sobre a ponte rio ossos esqueleto
esqueleto esqueleto “esquece-me, não voltes mais…”
lanço lampejo imagem-foto-cartão-côr color calor
sabor aromaesqueleto do
esqueletoesqueletoesqueletoesqueletoes
Este texto (classificado/intitulado por Hélio Oiticica de “conto”) foi escrito em Brighton, Inglaterra, no período em que se encontrava como artista residente na Sussex University. Seus temas e referências, no entanto, estão diretamente ligados ao período vivido por ele na Mangueira e suas imediações, entre 1964 e 1968: o Maracanã, o lendário estádio de futebol que fica próximo àquele morro e à linha ferroviária da Central do Brasil, que atravessa o subúrbio do Rio; as imediações da Mangueira e seus “bairros” aparecem na referência à sua rua de chegada – a Visconde de Niterói – e em alguns locais do interior da própria favela, como a fábrica Cerâmica Brasileira (onde a escola de samba passou a ensaiar nos anos 60), a ponte da Mangueira e a Candelária; vizinha à Mangueira, havia a favela do Esqueleto, no mesmo local em que hoje se encontra a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e o texto se remete ao período exato em que a favela estava sendo removida pelo governo Carlos Lacerda, restando no local apenas “o esqueleto do esqueleto do esqueleto”,; por fim, destaca-se o bairro vizinho, Vila Isabel, com referências a Noel Rosa, à garagem de ônibus no Boulevard 28 de Setembro e à praça Barão de Drumond. Oiticica faz alusão também ao seu trabalho Barracão, cuja teoria foi apresentada em texto homônimo, ao lado de outros dois, publicados na Revista de Cultura Vozes um ano depois (1970): As Possibilidades do Crer Lazer e LDN. No início do texto, há também uma referência a um famoso bandido da favela do Esqueleto, o Cara de Cavalo. Seu assassinato inspirou Hélio a fazer um de seus bólides mais conhecidos (Caixa 18, “Homenagem a Cara de Cavalo”, 1965-66). (Nota de Frederico Oliveira Coelho).