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Instruções para bem se matar

Para Régis Bonvicino, originário da mesma bota daquele que aqui me inspirou

Introito

Leonardo, um bastardo da cidadezinha de Vinci, que só entrou para o mapa da história por mérito do próprio, escreveu em um de seus famosos cadernos, acrescentando, assim, aos seus incontáveis dons o da profecia: “Ecco molti che non altramente che transito di cibo, e aumentatori di sterco e riempitori di destri chiamarsi debono, perché per loro non altro nel mondo apare, alcuna virtù in opera si mette, perché di loro altro che pieni destri non resta”. Pois se trata, naturalmente, de uma profecia-síntese sobre o século XXI: “Muitos existem que não são nada além de canais de alimentos, produtores de excrementos, enchedores de latrinas, pois não têm no mundo outra finalidade, e não obram nada de virtuoso; tudo o que resta deles depois é uma latrina cheia”. Tive, então, um pequeno insight – provavelmente o maior que jamais terei, nesta ou em quantas vidas a roda da existência calhe de me impor. Trata-se disto: além de anunciar ao mundo minha descoberta, que humildemente acrescento às incontáveis bibliotecas já escritas e por escrever sobre Leonardo (ou seja, que ele também era profeta), poderia, quiçá, fazer um bom uso da própria profecia, cujo aggiornamento a torna, agora, um conhecimento (com o perdão do eco). Mas como fazer um bom uso de saber por que a merda é tanta? Pois há de se notar a sutileza dessa descoberta, que é a da própria profecia. Porque Leonardo não previu, com esses “muitos produtores de excrementos”, a simples explosão demográfica contemporâena, mas a explosão dos próprios produtores de merda, no sentido de haver, hoje, multidões de produtores de merda que o são exclusivamente. Eis, então, a questão: o que fazer com a explosiva produção de produtores de merda?

Conta-se que à época da Grande Fome causada pelo Grande Líder (antes das grandes reformas do Pequeno Líder) os chineses tentaram de tudo para resolver o problema ingente, incluindo o uso, que parecia grandemente inteligente (pois grátis e abundante) de merda de gente como adubo. Não funcionou – e não porque a merda era pouca, em função da grandeza da fome, mas porque a merda humana é mesmo uma merda, isto é, não serve sequer para adubo. Para que, então, poderia servir a existência multitudinária de produtores de merda de merda? Deu-se aí meu insight genial. Se a merda é inútil, o produtor de tal merda, o metamerda, o merda ao quadrado, ao cubo e ao comprido, só pode produzir alguma contribuição encurtando sua produção. Mas como, por natureza, de cagar não pode evitar o merdígero, a única coisa (com o perdão do cacófato) de proveito a se tirar da existência de tal produtor de merda de merda é tirar a existência de tal produtor. Mas matar é um crime, além de dar trabalho. A solução era a popularização do suicídio. Além de cada suicídio de um produtor de merda diminuir a número de produtores e, por conseguinte, também o volume final da carga, a nobreza e a sanidade do gesto teriam o condão de, no instante mesmo do ato, inverter e subverter retrospectivamente o vazio de tal existência, que de encher os muitos vasos do mundo passaria a esvaziar o grande vaso do mesmo mundo.

Para popularizar qualquer prática, o caminho mais curto é compactá-la num manual. Daí este meu mui humilde Instruções para bem se matar. Apesar da melhor intenção, não posso, porém, garantir os resultados, pois obviamente não as testei. Contento-me, como se vê, em suicidar apenas o meu tempo, escrevendo para produtores de merda que, por sê-lo, outra coisa não fazem ou sabem fazer, incluindo a grande obra de encurtar seu obrar. Encomprido, em compensação, a minha própria obra, na inodora porque pura esperança de que algo afinal dela emerja para o bem comum.

1. O álcool

Disse o grande poeta russo Vladmir Maiakóvski, aliás, um suicida muito bem sucedido, ser melhor morrer de vodka que de tédio. Tratava-se, todavia, de uma metáfora, pois o tédio, tristemente, não mata. Matasse, o tédio seria o remédio para o tédio, e nem tanto tédio haveria no mundo, nem tanta merda, pois parte ao menos dos produtores de merda, que nada mais fazem, acabam por entediar-se, mas de entediar-se não se acabam. Mas se o tédio não mata, o álcool, sim. Com a vantagem de que, enquanto não mata o esmerdeador entediado, mata-lhe a merda do tédio. Mas se o álcool mata o tédio de imediato, mata o entediado adiadamente. Morrer de vodka, cachaça, uísque, conhaque e principalmente champanhe é lento. Tão lento, que morrer de cirrose afinal nada resolve, nem o tédio de uma longa vida de merda nem a merda longamente por ela gerada. Para matar-se então pelo álcool de forma eficaz, ou seja, breve, deve-se, não com ele embebedar-se, mas dele embeber-se. Basta, assim, em vez de ir para o bar, parar numa farmácia ou num mercado e adquirir, por menos de uma boa dose, um bom litro de álcool hidratado a 96o GL, ou Gay-Lussac, modo afetado e afrancesado de dizer haver 96 partes de álcool etílico para 4 partes de água em tal solução. Daí ela ser uma solução: pois em tal concentração, o álcool combustível é isso mesmo. Deve-se, então, abrir o recipiente (cuja tampa de plástico não exige abridor nem força) e despejá-lo sobre a cabeça. Assim que o líquido se esgotar ou atingir os sapatos (o que vier primeiro), risca-se um fósforo ou acende-se um isqueiro. Por isso o suicida por combustão precisa, necessariamente, estar munido de um isqueiro ou de fósforos. Além de hoje haver cada vez menos fumantes, tornando a possibilidade de encontrar alguém que os possua antes de o álcool evaporar bastante pequena, o fato de se estar encharcado de álcool, cujo odor é tão inconfundível quanto o de um banheiro público, não facilitaria pedir emprestado. Verdade que se poderia fazê-lo antes de despejar o álcool na cabeça, mas isso não aumentaria a quantidade de fumantes. Em todo caso, tão importante quanto a posse de um isqueiro ou de fósforos é a existência próxima de alguma mureta. Pois o álcool impede, paradoxalmente, que o palito de fósforo por ele molhado ou o isqueiro idem se acendam. Um pequeno grande cuidado é, portanto, deixar o isqueiro ou os fósforos fora dos bolsos e longe do corpo. Uma mureta ao lado da entrada da farmácia (ou do mercado) é, assim, uma magnífica solução. Basta, por fim, esticar a mão depois de derramar o álcool sobre o corpo. Deve-se, outrossim, consultar a previsão do tempo, a fim de evitar dias de muita chuva ou muito vento. A alternativa, incendiar-se em lugar fechado, macula a individualidade afirmativa do gesto, pois transforma a autoimolação num incêndio, o que será uma grande amolação para os que ficam, que ficarão então menos comovidos e mais incomodados. Cagar-se-ia enormemente na saída.

2. O tiro

Uma forma bastante popularizada mas não verdadeiramente popular de se suicidar é por um tiro. A culpa da popularização é do cinema. Já a culpa da relativa impopularidade são o custo e a relativa dificuldade de se conseguir uma arma, ao menos fora dos EUA, centro mundial tanto de produção de filmes quanto de cenas de suicídios por armas de fogo quanto de vendas de tais armas. Em todo caso, o problema maior de tal popularização não tão popular do suicídio por tiro é a verdadeira vulgarização concomitante do erro. Pois a arte de massa é adepta do clichê, e o clichê aqui é o tiro na têmpora. Erro fatal, pois muitas vezes não mortal. Ocorre que o osso temporal, ou seja, da lateral da testa, é relativamente espesso e, portanto, razoavelmente duro, fato compreensível, além de justificável, pois tem a função de proteger o nobre órgão que é o cérebro, incluindo o cérebro que nada produz além de pensamentos baixos, intestinais. Falando em baixeza cerebral, o chão do cérebro é o céu da boca. O cérebro, de fato, repousa atrás do nariz, o que talvez explique a particular sensibilidade do grande órgão para odores nauseabundos. Ocorre que o osso mais fino da cabeça é, justamente, o palato. Daí o modo correto de se matar por um tiro ser meter o cano do revólver na boca. Mas, atenção: há de se atentar para o ângulo correto. Ao contrário do sexo oral executado no órgão masculino ereto (pois o exemplo não serve para o sexo oral realizado no órgão feminino nem para o órgão masculino flácido), o que se visa atingir não é o fundo da garganta, o que poderia, além de não causar a morte desejada, acarretar uma indesejada tetraplegia, ou no mínimo uma paraplegia, por lesão medular à altura do pescoço, se a bala o atravessasse. Neste caso, o tiro sairia pela culatra, apesar de sair pelo cano, ou por causa disso. Para atingir devidamente o palato e, assim, fazer a bala cruzar o cérebro em sua máxima extensão, o ângulo entre o cano do revólver e o céu da boca deve ser, aproximadamente, de 45o.

3. O veneno

Forma realmente popular de se suicidar é por ingestão de veneno, principalmente entre as mulheres. A explicação para a popularidade do veneno está na antiguidade de sua utilização, no seu baixo custo e na sua farta distribuição. Já a circunstância de as mulheres o escolherem como modo preferencial de suicídio adviria de não demandar o emprego de força nem causar derramamento de sangue, além de estar associado, compreensivelmente, aos apetrechos de cozinha e à arte da culinária. Venenos, além disso, são comuns e baratos, por causa dos ratos. Os ratos, à diferença das baratas, a outra grande praga que acompanha como uma praga a história da humanidade, são mamíferos, daí os modos de ingestão e de funcionamento dos venenos de rato, ao contrário daqueles usados para insetos, servirem para humanos. Mas deve-se dar a devida atenção ao fato de haver mais de um tipo de veneno de rato no mercado, ou seja, nos mercados, incluindo os pequenos. O mais comum é um agente anticoagulante, causador de uma morte lenta, dolorosa e particularmente malcheirosa. Pois à falta de ferimentos, decorre apenas uma produtiva hemorragia intestinal que, por motivos evidentes, leva, antes de à morte, a uma relativamente grande produção de uma merda mortalmente nauseabunda, pela forte presença de ferro nessas fezes hemorrágicas. Deve-se, portanto, dar preferência aos venenos que usem estricnina ou cianureto. Favor consultar as especificações do fabricante na embalagem. Os que têm dificuldade de leitura ou de compreensão de texto podem pedir o auxílio do caixa. Se não houver fila, eles costumam ser solícitos, apesar do emprego de merda e de uma vida provavelmente idem.

4. A overdose

A pop e popular morte por overdose é, na verdade, uma variação do envenenamento. Uma das diferenças é que, enquanto o uso de venenos domésticos tem algo de suburbano (no sentido brasileiro, distinto do norte-americano), de pobreza cultural e mesmo de breguice, sendo, em suma, uma morte cinza (inclusive pela cor resultante do cadáver), a overdose é o envenenamento chique, moderno, urbano e rock’n roll; em síntese, uma morte colorida (também em consonância com o estado do cadáver, que costuma apresentar várias e variadas manchas entre o rosa claro e o roxo escuro, além de maquiagem, tatuagens, pintura de unhas etc.). A overdose, não obstante, divide-se na verdade em dois grupos distintos. Há, assim, a overdose por drogas e a por remédios. Trata-se, basicamente, de diferenças de estilo. A overdose por remédios tem um caráter menos outsider, mais pró-sistema (a começar do uso de substâncias legais), mais conservador, mais racionalista e cientificista, em suma, mais moderno ou mesmo modernista, enquanto a overdose por drogas é mais outsider, mais antissistema (a começar de se tratar de substâncias ilegais), mais “rebelde”, mais imaginativa e mais alternativa, em síntese, mais romântica e multiculturalista. Seja como for, se o resultado é o mesmo, distinto é o meio do caminho. Tudo depende das ações da substância sobre o organismo. No caso clássico dos barbitúricos e correlatos, como se trata de drogas de ação relaxante e/ou hipnótica, a morte passa por estados prévios de relaxamento e de sono, até que se atinja o coma metabólico ou se morra por asfixia durante esse sono letárgico, sufocado pelo próprio vômito (comumente, o uso de barbitúricos é feito junto com a ingestão de álcool). A vantagem, neste caso, está na própria ação do barbitúrico impedir que se tenha muita consciência do que se passa, mesmo se, a depender da dose, haja algum momento de esquiva lucidez quando do sufocamento. Seja como for, morrer no próprio vômito depois de uma vida imersa na sua própria merda tem certa justiça gastropoética. No caso das substâncias ilícitas, as diferenças são maiores. Por exemplo, na overdose por cocaína, morre-se por parada cardíaca, depois de momentos literalmente insuportáveis de excitação e ansiedade sem sentido nem direção, puro movimento vão, que no entanto parece poder resumir e sintetizar poderosamente toda uma vida de movimentos puramente vãos, enquanto na overdose por heroína morre-se de coma, pela imersão do sistema nervoso central num sono profundíssimo e tão completamente vazio quanto os movimentos da cocaína. A diferença é que, antes de se atingir tal estado, a heroína e suas aparentadas, como a morfina, geram a mais perfeita e completa satisfação com o vazio, conhecida como “nirvana químico”, razão de ser tanto do sorriso beatífico dos opiômanos quanto do uso dos opiáceos. É a morte que mais faz sentido, em todos os sentidos.

5. O corte dos pulsos

Cortar os pulsos é outra maneira notória de se suicidar, e notoriamente também mais associada às mulheres, ainda que um pouco menos do que os venenos. Nem por isso é simples. Para começar, parece funcionar melhor numa banheira, mas hoje, por uma questão de valorização do metro quadrado urbano, em consequência da especulação imobiliária e da explosão populacional, origem mesma desta minha obra, e também por falta de tempo, pois há incontáveis formas de se fazer merda no mundo contemporâneo, o uso de banheiras e a sua presença se tornaram eventualidades raras. Não se sabe ao certo, em todo caso, por que os cortadores de pulso têm tal preferência pelas banheiras. Talvez por privacidade, dado que a morte costuma ser relativamente lenta, talvez por conforto, pois a morte por hemorragia externa acarreta uma inevitável e compreensível distribuição de líquidos pelo corpo, o que a imersão numa banheira, paradoxalmente, dilui, talvez pela mornidão da água, que combina com a mornidão do sangue, talvez, enfim, pelo acréscimo da morte por afogamento à morte por sangramento, pois este leva, antes, ao desmaio.

6. O autoafogamento

O suicídio por afogamento emerge, portanto, como nosso próximo item. Ele tem algo de profundo e de profundamente artístico, particularmente de poético, ao menos desde a morte de Ofélia no Hamlet. O suicídio por afogamento, notadamente num rio ou lago com vegetação florescente, alia ao silêncio e à beleza idílica do entorno, a liquidez da água (elemento feminino por natureza, pois ondulante, curvilíneo e envolvente), além da languidez do gesto de lançar o corpo à sua superfície, o que, se realizado com a devida elegância, comunga com a delicadeza de um leve desmaio. Nada disso, note-se bem, obsta o suicídio por afogamento ao gênero masculino, incluindo seus representantes mais viris. Deve-se apenas ter o cuidado, neste caso, de dar ao gesto um toque mais áspero, preferindo, por exemplo, ao suave avanço pelas águas do rio desde a margem, o salto másculo de uma ponte. Em termos práticos, após a submersão, haverá em ambos os gêneros um espasmo reflexo fechando a laringe e impedindo a entrada de água nos alvéolos, com a vantagem adicional de iniciar assim o desligamento do cérebro por falta de oxigênio. Por fim, a falta extrema de oxigênio levará o mesmo cérebro, desinteligentemente, a tentar uma última inspiração. Movimento desesperado mas muito inspirado, encherá os pulmões de água e eliminará todo o oxigênio, além de diminuir bastante as chances de salvamento. Pois se o suicida por afogamento (com o perdão da rima fácil) tiver sido visto, corre sempre o sério risco de ser vítima de uma tentativa de salvamento por algum nadador ocioso, heroico e/ou alcoolizado que esteja à margem, principalmente se a suicida for uma mulher jovem e de belo talhe. Mesmo considerando que mulheres jovens e de belo talhe não devessem empreender o suicídio, pois ao contrário dos puros produtores de merda, aqui não há um puro ganho, mas também a perda da matéria mais rara da beleza, não se pode democraticamente proibi-las. Como, outrossim, tais mulheres, por definição, costumam atrair os olhares masculinos, principalmente de ociosos alcoolizados parados às margens de rios ou lagos antevendo a possibilidade de “pegar um peixe”, sugere-se fortemente que tais tentativas sejam feitas em lugares ermos. O maior risco de um ataque sexual em tais lugares fica necessariamente eliminado pelo fato de que a fuga se daria, então, para dentro da própria massa de água. Caso o perpetrador siga água adentro a suicida, esta deve, simplesmente, mergulhar mais fundo, logrando ao mesmo tempo escapar do merda do agressor e da agressiva manutenção de uma vida de merda.

7. O autoenforcamento

O suicídio por afogamento tem alguns nexos evidentes com a morte por enforcamento, além da rima. O nó do suicídio por enforcamento não está na corda. Cordas podem ser facilmente adquiridas em lojas especializadas, como as de materiais de construção e de esportes náuticos (onde são mais caras, mas mais elegantes). Em contrapartida, o nó de enforcar constitui um verdadeiro aperto cultural. Pois ao contrário dos antigos habitantes do campo, a massa urbanizada perdeu o contato e a intimidade com as artes rústicas e pragmáticas envolvidas no trabalho agropastoril, um dos motivos, aliás, da profecia de Leonardo. Pois indivíduos poucos dotados para a vida mental produtiva costumam, por certa lei das compensações, ser bem dotados para a vida corporal produtiva. Quando vivendo operosamente no campo, isso resulta em constante trabalho cotidiano; quando vivendo em relativo ócio urbano, em que mesmo os assalariados trabalham menos horas, isso resulta em crescente geração de merda. Além, obviamente, de menos intimidade e menor contato com as artes rústicas e pragmáticas envolvidas no trabalho agropastoril, como o uso de cordas. A alternativa é “dar um google”, com o cuidado de escolher a opção “imagens” no menu da home. Instruções teóricas sobre nós são possíveis, mas muito pouco práticas. Deve-se ainda lembrar que o peso é a massa acelerada pela gravidade. Ao contrário do que pensa o senso comum, e como demonstrou o herdeiro de Leonardo que foi Galileu, corpos de peso distinto caem à mesma velocidade, pois sob efeito da mesma aceleração. O que portanto muda, no caso de enforcados mais ou menos pesados, é, não a velocidade da queda, mas a força exercida sobre o sistema fibras da corda/fibras do pescoço. Pois a força sim, é aqui proporcional ao peso. Por isso, quanto mais pesado o candidato, melhor o resultado. Pois a morte por enforcamento pode se dar por ruptura das vértebras e da medula cervicais, o que causa uma paralisia sistêmica, incluindo o diafragma, ou por obstrução das vias aéreas. O resultado é no final o mesmo, porém a ruptura da medula cervical é sempre preferível, pois elimina de imediato a incômoda sensação de constrição na região da laringe, o atrito da corda na fina pele do pescoço e a monotonia do entorno, ou seja, as quatro paredes de um quarto ou de uma sala, pelo fato, mais uma vez, de a maioria da população ser hoje urbana, sendo portanto raros os enforcamentos campestres, em robustos galhos de árvores sob verdes folhas ao vento.

8. A queda

Próximo mas distante da morte por enforcamento está o suicídio por queda. Próximo porque envolve, basicamente, as mesmas forças e os mesmo elementos, ou seja, a aceleração da gravidade e a massa/peso corporal, distante pela própria altura maior envolvida. Por evidentes motivos arquitetônicos, as preferências da morte por queda recaem em janelas, sacadas e viadutos (mas não pontes: não porque delas não se pule, mas porque se trataria, ao final, de morte por afogamento; ver item 5). A morte, neste caso, ao contrário do que pensa o senso comum (como regra errado, justamente por ser comum, em mais de um sentido), não se dá por aceleração, mas por desaceleração. A aceleração é necessária, na verdade, apenas porque, sem ela, é impossível promover a desaceleração. Corpos parados não desaceleram. Por outro lado, corpos bruscamente desacelerados sofrem rupturas, causadas, mais uma vez, não pela aceleração (o senso comum não entende nada), mas pela inércia. Há dois tipos básicos de inércia: a inércia da estática e a inércia do movimento. Enfim, qualquer semianalfabeto já ouviu ao menos falar que um corpo tende a manter seu estado, seja de estase ou de movimento. Por isso somos lançados para frente quando o caro freia. No caso de uma queda, é o próprio corpo que desacelera de encontro a algum obstáculo, comumente, uma calçada.  As vísceras, então, funcionam como os passageiros do carro, continuando seu movimento inercial para frente (ou para baixo) apesar de o tórax e a cabeça já terem freado. Isso leva a rupturas, notadamente dos órgãos mais soltos, como o coração, que costuma então rasgar as grandes veias e artérias aos quais está ligado, como a aorta. Também pode haver ruptura do baço e do fígado, entre outros. A morte por queda se dá, afinal (ou ao final), por hemorragia interna, sempre que a parte mais atingida não for a cabeça, quando então se dará por esmagamento craniano.

9. O trilho de trem

Forma clássica de suicídio moderno, consagrada ao longo dos dois últimos séculos pela Revolução Industrial, a morte nos trilhos de um trem hoje possui uma variação ainda mais moderna, a morte nos trilhos do metrô. Começando pelo final, a presença onipresente de câmeras, de seguranças e de bons samaritanos ou, no mínimo, de gente disposta a gritar histericamente, torna, no entanto, o suicídio no metrô relativamente difícil, apesar de à primeira vista bastante fácil, pois o metrô é acessível e seus trilhos, mais ainda. Em consequência, pode-se facilmente pular nos trilhos, porém o bom resultado depende de certo timming. A ansiedade, por exemplo, pode turvar os sentidos, fazendo com que o pulo se dê alguns segundos antes do que seria efetivo, ao permitir que se possa frear o trem. Mesmo porque, os trens de metrô têm sistemas de freios rápidos, em função da densidade das linhas e seus cruzamentos, ao contrário dos trens de superfície. Estes, portanto, ainda são os preferíveis. Não há câmeras nem seguranças nem multidões ao longo das linhas, principalmente longe das estações.

10. Suicide by cops

O suicide by cops, também conhecido como death by cops, copicide e blue suicide, este último em referência à cor mais comum dos uniformes policiais norte-americanos, não deixa de ter certa poesia: “suicídio azul”. Trata-se de uma modalidade tipicamente ianque, de grande impacto. É, de fato, a mais cinematográfica das formas de suicídio. Exige um tanto de planejamento, certo senso de espetáculo e alguma coragem, além de falta de timidez, pois se deve, antes, cometer ou ameaçar cometer um crime em local público. Isso levará ao cerco desse local pela polícia (daí ser mais praticado nos EUA, pois é necessário contar com a eficiência ou, ao menos, com a pronta presença de forças policiais). Basta, então, sair de arma em punho, recusar a ordem de deixar cair a arma e, por fim, apontar a mesma arma para os policiais. A morte se dá por fuzilamento. Uma possível variação à brasileira, que tenho aqui a originalidade de apresentar e sugerir, dar-se-ia pelo cruzamento de barreiras policiais. Como a polícia, no Brasil, na prática possui licença para atirar para matar sempre e quando queira, esta é uma modalidade que tem tudo para se desenvolver e ganhar adeptos pelo país. Em todo caso, em vez de um tanto de planejamento, certo senso de espetáculo e alguma coragem, exige-se somente um carro. Acrescento, ainda, uma proposta de nome: “morte cinza”. Nome tão poético quanto “morte azul”, e ainda polissêmico: pois se refere não somente ao uniforme de nossa polícia, como também à hora crepuscular ou noturna em que aumenta o número de barreiras policiais nas selvagens cidades brasileiras, para não falar da solidão desta variação nacional, em que o suicida morre sozinho em seu carro perfurado de balas, ao contrário do cenário midiático do original americano. Mas não se pode ter tudo. Além do mais, no final não faz diferença.

Término

O suicídio é uma atividade essencialmente democrática, pois ao alcance de todos: deveria, portanto, ser devidamente democratizada.  Os meios e modos de empreendê-lo são menos difíceis de obter do que o insumo sempre mais importante e menos bem distribuído, a informação, apesar de toda a propalada vulgarização da mesma em função dos novos meios de comunicação de massa e das novas mídias eletrônicas, incluindo internet e redes sociais. Pois estas não geram, na verdade, informação nova tanto quanto repetem e ecoam informações velhas ou conhecidas dos próprios usuários, que se orientam, como regra, não no sentido da busca e da pesquisa, mas do reconhecimento, da reiteração, da confirmação e da redundância. A internet é, enfim, uma grande cloaca virtual que ecoa, duplica e espelha o grande esgoto do mundo. Como disse Borges, os espelhos são cruéis porque dobram o número dos homens (apesar de também dobrarem o das mulheres). A internet é o grande espelho do mundo, com a única vantagem, afinal não desprezível, de a merda virtual não ter cheiro. Ainda assim, merda inodora não é ouro. Se o futuro existe, ele está no instrumento que opera na direção contrária ao espelho borgeano, o desduplicador de gente que é o suicídio, morte, além disso, tão inteligente que chega a ser filosófica, na insuspeitada opinião do grande Camus. Por isso mesmo, sou apesar de tudo cético quanto à sua possível e desejável adoção pela grande massa. A massificação do suicídio, derradeira utopia social depois da morte ou do suicídio de todas as utopias políticas, pode, porém, apesar de meu ceticismo, como toda boa utopia, ser difícil de implementar, mas não necessariamente impossível. Que este meu pequeno manual tenha, então, algo de um grande manifesto, e seja, para o quiçá crescente movimento do suicídio em massa, ao menos uma sombra do que foi o Manifesto de Marx e Engels para o defunto socialismo. Merdígeros de todo o mundo, desuni-vos do mundo e da merda! Vocês não têm muito a perder além da diuturna produção de merda que escoa de seus longos e sempre ativos intestinos! E o que importa, ao fim e ao cabo, não é a forma como se morre, mas o tempo que se demora para dar um basta a toda essa bosta. Suicidar-se é um direito. Resta saber se não será, também, um dever.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).