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POESIA GREGA ANTIGA E MODERNIDADE POÉTICA

            1.

Deparei-me, há pouco, com uma magistral lição de poesia. Não tenho, no entanto, vocação para didata (melhor assim, pois arrogar-me em didata seria antidemocrático: sou, portanto, perfeitamente democrático, apesar de ou porque pouco ou nada didático). Se ora a analiso é, em primeiro lugar, para meu próprio prazer, e em segundo, para meu próprio aprendizado.

          Trata-se de uma passagem de Sófocles, de uma de suas tragédias menos conhecidas, As traquínias. Mas se trata, também, de uma passagem de Flávio Ribeiro de Oliveira, seu tradutor do original grego. Aqui, talvez eu devesse me estender um pouco sobre certa concepção de tradução poética que privilegia, ocioso dizer que corretamente, a forma tanto quanto o “conteúdo” (uma forma da forma), significados tanto quanto significantes, e, paradoxalmente, criticar mais que eventuais excessos de “autoralismo” tradutório, como praticados, por exemplo, por Augusto e Haroldo de Campos e seguidores/imitadores, sem prejuízo de ocasionais acertos. Basta aqui dizer que a grande tradução é, afinal, e desde sempre, uma constatação, e resulta nisto: se a poesia de partida é poderosa, a poesia de chegada, ou seja, a tradução, não deve, idealmente, sê-lo menos.

            É precisamente o caso. A ponto de eu não usar aqui a passagem em questão para falar de tradução, mas de poesia em si. O fato de se tratar de poesia dramática não altera a análise dos versos. Mas lhes fornecem um belo contexto.

            2.

            Héracles está retornando à casa, depois de mais uma campanha militar, e como rei e chefe guerreiro, seu retornar é de fato um gerúndio. Ou seja, ele vai retornando aos poucos, à medida que seus aparatos, tesouros, arautos, animais etc., deslocam-se. Além disso, ele tem demandas a cumprir antes de terminar de retornar, como ser recebido pelas multidões dos lugares por onde passa e erguer altares para oferecer sacrifícios aos deuses. Com isso, a parte mais importante de seu butim, as mulheres escravizadas, chegam na frente. Nenhum problema, se uma das escravas não fosse uma verdadeira princesa, em mais de um sentido. Trata-se de Íole, filha de um rei derrotado, por quem Héracles está inteiramente rendido, pretendendo torná-la sua esposa, apesar de já casado com Dejanira. Tudo isso se desenrola e se desvenda nas primeiras cenas, com a devida ajuda de arautos e informantes. Dejanira, então, lembra-se de um recurso desesperado para situações desesperadoras, um “filtro amoroso” há muito guardado, com o qual tentará, agora, reaver o amor de Héracles.

Esse “filtro” consiste de um pouco de sangue de um centauro, Nesso. E remete ao próprio casamento de Héracles com Dejanira. Retornando depois das bodas na casa de seu pai, um rio sem ponte só podia ser cruzado nas costas do centauro, que transportava os viajantes um a um, contra a devida paga. Acontece que centauros, além de quatro patas, também possuem duas mãos. Mãos que ele usa, no meio da travessia, para bolinar a bela donzela. Ela grita, e Héracles, já postado na outra margem, atinge o peito do centauro com uma flechada. Felizmente, o centauro não morre antes de chegar à margem, e Dejanira não se afoga. Não tão felizmente, antes de expirar, o centauro a instrui em segredo para recolher e guardar um pouco do seu sangue, a fim de usá-lo quando precisar de um “filtro amoroso” – provando, assim, sua boa índole.

O “filtro”, porém, não era um “filtro”, ou seja, uma poção mágica, mas um veneno mortal, com o qual Nesso pretende se vingar a posteriori de Héracles. Dejanira, portanto, não tem culpa. Tampouco tem culpa, na verdade, o centauro. Pois havia uma profecia segundo a qual Héracles seria morto por um morto. E profecias, no mundo grego arcaico, cumprem-se.

Tragicamente, na pura acepção da palavra, tudo o que Héracles faz, enquanto acredita estar, portanto, destinado à imortalidade – pois como um morto o mataria? –, serve para realizar a profecia. Casar com Dejanira, atravessar o rio com Nesso, matá-lo, seguir com suas campanhas militares até se deparar com Íole e se apaixonar, levando-a para casa e instigando Dejanira a usar o “filtro” do centauro morto, toda sua vida é, em suma, a realização do profetizado. Não obstante, ele de fato a vive, e a vive como quer e pode. Não é contraditório: é trágico (o que não significa o que os jornais imaginam). Pois pertencente a um mundo em que o livre-arbítrio cristão não molda nem explica as ações humanas.

3.

Resumi a história da tragédia apenas para introduzir os versos que descrevem o momento em que uma túnica enviada por Dejanira a Héracles, impregnada pelo sangue de Nesso, adere à pele do herói e queima sua carne. A cena é a de um sacrifício de Héracles a Zeus. Ironicamente, portanto, a carne queimada não será, afinal, a do animal ofertado, um touro, mas a do ofertante, o touro humano que é Héracles.

Mas quando a flama do sacro rito ardia
sangrenta na madeira resinosa,
suor surgiu em sua pele e a túnica
cola em seus flancos bem justa em todas as juntas
(como a de quem labuta) e vem-lhe uma dentada
convulsiva nos ossos, que o devora
como veneno de cruenta horrível víbora.[1]

A parte dessa passagem que aqui me interessa analisar é a que começa com túnica, no fim do terceiro verso. Reproduzi os três versos iniciais para demonstrar como a aparição de túnica se dá em um contexto sonoro que a destaca, pois não há, anteriormente, nenhuma palavra acentuada em u. Mas haverá em seguida.

Venho afirmando reiteradamente que a poesia é a linguagem verbal recursiva discreta.[2] Recursivo é o mesmo que recorrente (todas as figuras de linguagem poética o são). Discreto significa comedido (ou com medida). O que não fica evidente em tal síntese, que pretende elucidar um mínimo o caos anômico (e anêmico) em que a poesia ora vegeta feliz e irrelevante, é a sua dimensão incontornavelmente semântica – que está aí referida como “verbal”.

Explico: semântico pode ser entendido como o oposto do abstrato. Abstrato, do latim abstrahere, significa separado. Em termos linguísticos, abstrato significa separado de um referente. A que se refere uma mancha de tinta? Apenas a si mesma. Daí poder haver a pintura abstrata (resultado da relação [sintaxe] entre várias manchas). A que refere a nota dó? Às demais notas da escala. De fato, a música instrumental difere da poesia ao ser uma linguagem recursiva discreta assemântica – ou abstrata. Já uma palavra é em si uma referência. Daí não haver poesia abstrata. Daí verbal significar o mesmo que semânti co.

Se a poesia é a linguagem recursiva discreta verbal, ou semântica (ao contrário da prosa, que não é recursiva, mas linear, nem discreta, ou seja, não feita de pequenas partes relevantes, necessárias para poderem ser recorrentes), a recursividade discreta deve incidir e operar na forma e na semântica: morfossemanticamente. Os versos acima são, por isso, uma lição magistral de linguagem poética.

4.

Começo pelo verso poeticamente principal, em que dois pares de palavras se relacionam, por recorrências internas, de modo múltiplo: “cola em seus flancos bem justa em todas as juntas”. Cola e flancos têm o mesmo par vocálico o-a, além de compartilharem o c e o l. Na verdade, cola está “colada” inteiramente, anagramaticamente, dentro de flancos. Ao mesmo tempo, justa e juntas são paronomásias, palavras de sentido distinto e forma igual, o que as aproxima, as ajusta, as mantém juntas. Por fim, cola se relaciona semanticamente tanto a justa quanto a juntas, enquanto flancos se relaciona a juntas (articulações). Tudo somado, ou mutuamente impregnado e recorrente, a figura poética resultante pode ser evidenciada desta forma:

Na parte superior, as linhas traçam as relações-recorrências formais. Na inferior, as semânticas. Numa versão a cores, tais relações ficam assim:

cola em seus flancos bem justa em todas as juntas

Notar o intercruzamento das notações. Enquanto cola e flancos estão em negrito, marcando sua relação formal, cola está em azul como justa e como juntas, marcando sua relação semântica. Como juntas, porém, também se relaciona semanticamente com flancos, está, ao mesmo tempo, em azul e em vermelho, daí estar, afinal, em roxo (pois juntas, em tal contexto, é polissêmica: se denota as articulações, impregna-se do sentido de juntar; sua polissemia está indicada pela cor composta). Por fim, justa e juntas estão ambas sublinhadas para marcar sua relação formal.

Considerando que se trata de cola, justa e juntas, além de flancos, as mútuas recorrências e/ou impregnações, que são também articulações (no sentido morfossemântico), não poderiam ser mais pertinentes. Mais poeticamente pertinentes. Dito de outra forma: tão pertinentes que nelas reside a densa poética do verso, que por sua vez centraliza a poética da estrofe, que por sua vez centraliza a narrativa trágica.

Aplico então a mesma notação aos demais versos da estrofe:

                                                    …e a túnica
cola em seus flancos bem justa em todas as juntas
(como a de quem labuta) e vem-lhe uma dentada
convulsiva nos ossos, que o devora
como veneno de cruenta horrível víbora.

            As cores indicam, claramente, as relações semânticas: daí devora, dentada e cruenta estarem no mesmo verde, enquanto convulsiva, veneno e víbora compartilham o mesmo alaranjado. Já a sobreposição entre as recorrências semânticas e formais fica evidente na reprodução em sequência das três últimas palavras, que compartilham a mesma marcante consoante fricativa v: daí estarem, também, em itálico. Daí estar igualmente em itálico devora – que compartilha, porém, a cor com o grupo precedente. Ossos é vermelha porque se relaciona semanticamente a flancos e juntas. Labuta aparece sublinhada para marcar sua relação formal com justa e juntas. Horrível está em itálico porque, formalmente, integra o grupo que contém a fricativa v. E túnica é roxo-escuro, sublinhada, em negrito e itálico, porque se relaciona de vários modos a várias outras palavras. Na verdade, são as demais palavras que a ela se relacionam: daí túnica preceder o início dessa densa teia de recorrências, que deflagra (assim como a túnica deflagra e determina a cena).

Em termos sintáticos, a passagem se organiza em torno de três enjambements. O primeiro, em “e a túnica / cola em seus flancos”, que serve para destacar túnica no fim do verso e no início do fragmento; o segundo, em “e vem-lhe uma dentada / convulsiva nos ossos”, que torna “e vem-lhe uma dentada” uma frase suficiente, para em seguida ser retomada em “convulsiva”, como a própria dentada que parece parar para em seguida se aprofundar; o terceiro, em “que o devora / como veneno”, repetindo e reforçando o procedimento do anterior.

5.

Se os versos em si pertencem, ao fim e ao cabo, ao tradutor, por havê-los assim criado no processo tradutório, seriam apesar de tudo uma contrafação se não existissem correlações equivalentes no original (o que é um bom modo de dizer tradução). Naturalmente, elas existem. Como meu grego, porém, não anda muito bem das articulações, arrisco-me a transliterar, como exemplo, apenas dois versos dessa passagem, a partir do original à página 74 (vv. 768-9):

               Pleuraissin artícolos, hoste tectonos

               quíton, hapan kat artron. Elte d´osteon

            São evidentes as relações formais entre artícolos e artron, entre tectonos e quíton, entre hoste e osteon e entre hoste e elte, assim como as relações formais e semânticas entre artron (articulações) e osteon (ossos), além de entre osteon e tectonos (trabalhador). Também os enjambements (ainda que necessariamente não os mesmos) “mordentes” estão no original grego, como nele está a sonoridade motivada, para não falar de anagramas como druos / hidros (vv. 766-7), que equivalem às paronomásias da tradução.

Naturalmente, não se trata de um caso isolado, de um acidente de percurso. A peça é repleta de momentos como esse.

brada que fora desertada e chora
ao tocar cada objeto que outrora usara, a pobre!

Nesses versos (p. 87), a sequência de rimas internas abertas, em a, ecoadas em cada palavra pela repetição da vogal (brada, desertada, cada, usara), junto ao ritmo marcado pela interpolação de palavras em o-a, mais graves (fora, chora, tocar, outrora), mimetiza à perfeição o som entrecortado e alto de um choro forte. O que em nada compromete a fluidez do ritmo e a naturalidade sintática das frases.

brAdA que fora desertAdA e chora
ao tocar cAdA objeto que outrora usArA, a pobre!

Não há nenhum motivo para que versos feitos hoje devam ser dramaticamente menos densos em suas relações formais e semânticas, assim como retoricamente mais frouxos em sua sintaxe. Mesmo porque, ao fim e ao cabo, não se trata mais do “fim das formas fixas”, do “fim das fronteiras” entre os gêneros etc. Não se falou aqui de forma fixa alguma. Trata-se, tão somente, de que a “pós-modernidade” ou o “pós-modernismo” poético se tornou uma desculpa democratista para a facilidade (cada vez mais “justificada” pela escolha do tema, de preferência “politicamente correto”). De fato, é muito fácil ser poeta hoje. Difícil é isso resultar e m uma poesia que não seja tragicamente desarticulada.

[1] Campinas, Unicamp, 2009, p. 75.

[2] “A razão da poesia”, in Eutomia – revista de literatura e linguística (UFPE). Acessível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/883.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).