Quando leio Jussara Salazar, tudo parece claro, límpido. Até quando não parece ser. Quando ouço Jussara falar, tudo parece natural. Até quando as coisas do assunto ali ditas possam ser assombrosas. Ou milagrosamente belas. Talvez isso seja uma tradução de excelência. Jussara tem a medida. A poeta faz poesia. A poeta faz. Faz mesmo. Mas nunca o mesmo. Desde que a vida é vida. Poesia de régua. E condão. Pode soar óbvio o que digo aqui agora. Mas andamos perdendo a mão, o olho, o foco. É preciso retomar. Reviver. Olhar para frente. Olhar para trás. Em tempos de muita produção, salta aos olhos o sol e o sal da poesia de Jussara. Sol negro, como as cabras cabralinas do Mediterrâneo. Sal que tudo seca, limpa, abre e germina. Poesia-mandacaru que descerra sua cortina em flor na folha exata. Poesia salutar. Natural. Natural porque pensada. Linguagem sentida. “Sintaxe salsugem”, linguagem limpa. Dorsal. E densa. Lágrima. Em movimento. Até quando um verso parece se emborcar de sentido, o ritmo e a imagética se encarregam do desafogo. Jussara enxuga a dor do sangue com as mãos do sensório e as mortalhas se vestem de vento. Tudo fica dito. Bugra é um livro preto. Mais: um livro negro. Do mar da noite. Da noite do mar profundo. Bugra. Salobra. Noturna. Consciência desiludida e bela. Vagas, vazantes e correntes galvanizam-se em palavras. Versos. Estrofes. Melismas e miasmas. Grades e gradientes. Entes. Lembrete do resquício, do cinza do sono da memória do preconceito e da ignorância. Livro que passa (tu)do a limpo. Mestiço. Bugre. Melhor: Bugra. Gênero que se transforma em epíteto. Quase natural, como o G no meio do nome. Ponto G da bugra. Do poema. Jussara vai ao centro, ao cerne, mas com procedimentos pessoais e atenta à tradição. Ecos e afetos de Ariano, aqui e ali, costuram versos pela pauta da oralidade. Analítica e frasal. Ascenso e Cabral. Bugra é um oráculo. Oral em acúmulo. Alma e história como peso e sombra do corpo. Pessoal e universal. Recobremos a pauta: aqui a pauta não é pauta, é assunto de lugar atemporal. É crítica. Sem premeditação. Sem mero holofote de falsa denúncia. Fogo e farol. Do coração. Da mente. Aqui a poeta faz o que poeta faz: poesia. Fazer. Faz o presente. Sem querer mudar o passado. As pautas aqui são familiares, vizinhas. Vividas. Vívidas. Lembradas sem estardalhaços. Rítmica da aposta de tudo que aborda. Sentidas. Lembradas. Lamentadas. Sentidos. Orações. Lamentos. Canções. Horizontes e poentes. Da voz. Sons e sentidos sempre fluidos, ainda que, por vezes, ásperos. Ruído rosa sensual. A memória é um rio de luz com casas, lugares, mata, pele, citações, “urros/ ressacas/ versos de góngora/ derrubando muros”. Páginas. “Pulsam/ pequenas/ explosões diárias”: imagens. Uma obra à parte. As suscitadas pelos versos, via ontológica fanopeia, mas também as iconográficas, que dialogam, mas gritam sozinhas, em beleza e horror. Jussara artista visual também lustra as garras em colagens digitais sobre retratos de Louis Agassiz, Felipe Augusto Fidanza, Alberto Henschel, Walter Hunewell, Johann Moritz Rugendas e Alberto Eckhout, além de desenhos e grafismos recolhidos em comunidades Guarani-Kaiowá, em sublime resgaste com um pé no pop. Pouco antes de partir, em 2003, Haroldo de Campos profetizou, por ocasião do livro Baobá, que Letícia Volpi, persona bissexta de Jussara Salazar, ficaria. Eis que esta também está aqui. Bugra reedita os grandes momentos dos livros anteriores Carpideiras, e O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros, sobretudo. Aqui cabe também certa constatação: num país com tantos sub-Haroldos, a poética de Jussara, aprendida e apreendida, finca lugar de destaque e importância no cenário da poesia de língua lusa contemporânea. Mesmo se levando em conta que hoje quase nada mais tem impacto, muitas vezes pouco importa, posto que quase tudo suplantado pelo lixão necro-hospitalar do banal, definitivamente, tudo isso visto em Bugra, não é pouco. Jussara faz a poesia parir de novo, ao menos por este instante.
BUGRA – POEMAS
JUSSARA SALAZAR
SOBRE AMANHECER NO AGRESTE
nessa aridez que tudo ocupa
terra semeada à faca_ iamanaka’ru
como se em terra sua
lança suas bordas afiadas
fere a pele de sua pele quando rasga
em si_ como se nasce_ sem água
essa terra que lhe serve de morada
e se lhe sustenta a epiderme_ é para
quando a sede que lhe bebe lhe serve
nas noites de frio espelhe-se
em galáxia de órion que vaga
lá do alto como a fruta violeta
_ a polpa breve
no céu da noite ao amanhecer
fúria
que o sol no catimbau floresce
_recrudesce_ em meio ao nada
VISÃO DE N.S. DA FEIRA DO ARCOVERDE
En roscas de cristal
serpiente breve não vês?
pois ouve
seu farfalhar quando
resbala uns
guizos preguiçosos
arabesco
vivo venenosos
rodeando o barro das
vasilhas e moringas
esticadas ao sol gongórico
entre pés
idas e vindas
os peixes
presos ao calcário
gasto há mil anos
pétreos sob o sol
em duro calvário
não despertam
nem
à castanha passagem
ruidosa passagem
de cabras e trens
um cão
o vento
o vento
os bois
o tempo
a água
pingando
na lata
as mulheres
os homens
a montanha xukuru
a mata
e a procissão das
vestes negras o
corpo santo que
atravessa ao dia
o corpo
ornado de velas
vai ardendo a
parafina
à revelia
tão morno
tão fria
tão morna latomia
tão morna latomia
tão morna latomia
enquanto um tambor
ressoa
o som tortuoso
a ladainha ao
longe não é
senão
a luta de um vivo
e de um morto
timão fiado
santos
santa
barrueca bendição
eu e
minha avó
ali
temos
cem anos
de sertão
um cão
o vento
o vento
os bois
o tempo
a água
pingando
na lata
as mulheres
os homens
a montanha xukuru
a mata
a terra castanha
como
as cabras
exibe suas
cicatrizes
sem
água
a terra
seu chão
eu e
minha avó
na solidão
ali
temos
cem anos
de sertão
O SAL
essa sílaba
mínima
marítimo oceano
um grão
cristal
pedra d’água
o sal
essa sílaba
para lavar pés
e derramar
sobre a cabeça
do santo
como o batista
um dia o fez
o sal
essa sintaxe salsugem
para a onda
levar
e trazer o cão
a escama
translúcida
essa bendição
o sal
de queimar o mar
das águas vivas
das pedras lavadas
das ervas nocivas
do encarnado
multitudinoso
rubro carnoso
oinopa ponton
homérico salobro sal
para sangrar o mar
para levar
a onda
para trazer
o corpo
e cobrir as conchas
o fundo do barco
como mínimos
diamantes
para te parir
por um instante
o sal
CALUNDU PARA O SOL ADORMECER
no claro-escuro da tarde
eles chegavam
com pés largos e corpos antigos
troncos enraizados
chão de alpendre batido
vozes de outro tempo
de um falar rouco
macio
como alento
chegavam devagar
para recordar navios
perdidos porões
mares latidos
um falar de tramas
para desfiar a palha
para traçar a palavra
para fugir do passado
um falar lento
manso
de tambor tocado
no claro-escuro da tarde
eles chegam
com palavras sopradas do mar
o mar de longe
que os cuspiu
sem sereias e cantos de odisseu
o mar de perto
que os pariu
ao estalar de açoite
ainda é o
mar da noite
fumo
juta
ferro na brasa
diáspora
agora suas falas vivem
ao pé da porta da casa
no claro-escuro
da tarde que os guarda
e sustenta
seus pés largos
escuros
no capitel
sem esmo troncos
nem amarras
CURRAL DOS AVESSOS
DOIS PÁSSAROS COMO CRUZES
em revoada na velha fotografia
DOIS PÁSSAROS AQUILOMBADOS
raízes ancestrais de um mar imaginário
ENQUANTO UMA GRÉCIA GRITA
nas velhas paredes de um relicário
DOIS PÁSSAROS NENHUM VOO
casa vazia um calvário