Um dos desfalques entre os lançamentos da 9ª Feira do Livro de São Luís (FeliS) foi o livro Da Terra das Primaveras à Ilha do Amor, do antropólogo Carlos Benedito Rodrigues da Silva. Publicada em 1992 como dissertação de mestrado em antropologia cultural, a obra, que traz como subtítulo “reggae, lazer e identidade em São Luís do Maranhão”, foi a primeira tentativa de compreender um fenômeno de dimensões épicas: a migração do gênero musical da ilha caribenha da Jamaica para São Luís do Maranhão. Grande feito, numa época em que a ordem na academia era ignorar uma realidade que então já entrava por olhos e ouvidos de todos.
Durante a FeliS de 2014, por ocasião de uma mesa de debates da qual ele participava ao lado dos jornalistas Otávio Rodrigues e Karla Freire, provoquei Carlão, como é conhecido o antropólogo – um simpático rasta de porte avantajado – para que republicasse a obra pioneira na Feira do ano seguinte. Naquela altura nem como delírio me passava pela cabeça ser convidado para assumir a curadoria da FeliS em 2015. Era puro interesse de amante do reggae, desejoso de que o livro superasse o estigma de ghost book, uma obra que todo mundo sabe que existe, mas ninguém vê.
Carlão topou a parada, se comprometendo a atualizar o livro, que sairia pela aguerrida editora Pitomba. Veio a Feira e o livro ficou de fora, estando o lançamento confirmado para dezembro deste ano. Nada a lamentar, considerando que, além de limado de eventuais excessos da linguagem acadêmica (foi todo reescrito, me diz o editor Bruno Azevedo), o livro ganhou ainda a reprodução fac-similar das três edições do tablóide o Tambor, publicação dedicada ao público regueiro de curta carreira, mas de suma importância no contexto da época. A reedição atualiza ainda o acervo iconográfico da obra, enriquecendo uma das mais ricas fontes de apreensão do fenômeno, sua dimensão visual.
Certo sabor de academia, apesar do esforço dos editores em torná-los o mais próximo possível de uma reportagem jornalística, é o único senão às duas abordagens sobre o reggae no Maranhão que se seguiram ao livro de Carlos Benedito. São eles Onde o reggae é a Lei (Edufma, 2013), da jornalista Karla Freire, e O Reggae no Caribe Brasileiro (Pitomba, 2014), do músico e comunicólogo Ramusyo Brasil. Veterano da cultura pop na ilha, Ramusyo, um paraibano radicado em São Luís desde os 6 anos de idade, foi um dos líderes da lendária banda de rap TA Calibre.
Imagino que seja tarefa inglória converter teses e dissertações universitárias em textos palatáveis ao leitor comum, mesmo diante de um tema pertencente ao âmbito da cultura de massas, como é o caso. Portanto é preciso enfrentar certa aridez do terreno em muitos momentos – mais presentes no livro de Ramusyo Brasil do que no de Karla Freire – para ter acessos aos desdobramentos da história do reggae no Maranhão a partir de sua capital, rebatizada Jamaica Brasileira, para desespero dos membros da Academia Maranhense de Letras.
Juntos, os três livros se complementam ao focar suas lentes sobre uma história iniciada há mais de trinta anos, quando os primeiros discos do gênero começaram a ser tocados em alguns dos sistemas de som – as chamadas radiolas – que animavam bailes populares da periferia de São Luís. Ainda não se falava em reggae, era tudo “música internacional” mesclada a gêneros caribenhos como merengue e bolero.
Essa é uma das pontas que é preciso juntar para se entender de uma vez por todas que o reggae não chegou a São Luís como resultado de nenhuma estratégia comercial. Nada de indústria cultural até aqui. Tudo aconteceu de forma espontânea, o que torna o fenômeno ainda mais curioso. Se não entendiam as letras nem conheciam o contexto, porque gostavam tanto a ponto de, aos poucos, o reggae se tornar absoluto naqueles espaços? De onde vinha a identificação que com o tempo levaria à apropriação do gênero, convertendo o reggae de “invasor” em expressão da cultura popular da cidade de São Luís?
É aí que entram os estudos e interpretações presentes nos três livros. Preferível não adiantar muitas coisa, reservando ao leitor o prazer da descoberta. Depois dessas leituras, será possível entender porque, nas noites de vento forte, o grave de um contrabaixo ainda invade os ouvidos de turistas e nativos, vindo sabe-se lá de onde. Ou porque em um rápido passeio pelas ruas do centro histórico é possível deparar com uma infinidade de pessoas estampando no peito a foto de Robert Nesta Marley, o maior ícone do reggae em todos os tempos. Aliás, foi ele quem um dia afirmou em tom profético: o reggae vai cobrir a terra como a água cobre os mares.
Fernando Abreu é poeta, autor de Relatos do Escambau (Exodus, 1998), O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003), Aliado Involuntário (Exodus, 2011) e Manual de Pintura Rupestre (Sette Letras, 2015, com lançamento previsto para dezembro de 2015)