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Um pintor no samba

Como cheguei à Mangueira – eis a pergunta que todos me fazem; foi o escultor Jackson Ribeiro, meu grande amigo, quem para lá me levou em fins de 1963, para assistir a um ensaio.

Imediatamente senti que, para mim, não bastava “assistir”, e sim “participar” do samba, do seu ritmo, do seu mito.

Ao contrário do que poderia parecer, não há entre a minha arte como pintor e essa expressão popular um abismo intransponível, pelo contrário, toda a minha evolução artística caminha para o que chamo de uma expressão mítica essencial na arte. Há como que um cansaço do que é excessivamente intelectual e a busca do que é “expressivo” na arte.

Jackson Ribeiro, nordestino acostumado à “vida dura” e cuja escultura vanguardista jamais perdeu o seu calor de origem, seria o elemento que fatalmente me introduziria aí.

Para mim, havia um impulso interior forte que me induzia ao ritmo, à dança.

Como pintor, havia eu chegado ao que chamo de “pintura no espaço”.

Da arte concreta à neoconcreta (correntes da arte abstrata que se caracterizaram pela geometrização formal e busca de um espaço novo na pintura), caminhar para uma expressão própria, levando a cor além do limite do quadro. A pintura não se dá aqui, dentro do quadro, mas em estruturas especiais, que podem ser Núcleos, Penetráveis e Bólide.

Em 1964 criei também, dentro disso, o que chamo de Parangolé, que seria a cristalização mais original dessa experiência. A participação do espectador, nas obras de que falei, chega no Parangolé a um elemento mais corporal e apela instintivamente ao ritmo: o espectador corre ou dança com a obra, pois esta não é apenas contemplativa, mas pede dele a participação direta. Penso mesmo em um “espetáculo-Parangolé”, que seria realizado durante uma exposição continuamente, já que para mim uma “exposição” seria diferente do que se costuma supor: a participação dos espectadores já pode dar uma ideia da forma que assumiria.

Qual a relação disso tudo com o samba da Mangueira?

Antes de tudo, devemos nos lembrar de que o indivíduo, principalmente o artista, se constitui em uma totalidade, um bloco inteiro de personalidade, em que as partes, apesar de às vezes antagônicas, são indivisíveis. A relação, pois, que há entre uma atividade e outra, longe de ser ditada por conceitos exteriores, vem de dentro, desse núcleo que é a personalidade. Fatalmente, na minha experiência, seria eu levado a essa busca do ritmo, da dança na sua forma mais mítica, que é a dança popular, baseada mais em ritmos que em coreografias.

A Mangueira, para mim, é como se existisse há 2 mil anos: como expressão, o seu samba possui algo de arcaico, como se nascesse da terra; não me impressiona tanto a “tradição”, mas o arcaísmo que contém a sua expressão. Na sua maneira de ser há algo que nos leva às origens das coisas.

Foi o grande passista Miro quem me introduziu nos primeiros passos do samba; seu pai, Pedro da Dinda, um dos fundadores da Escola (pandeirista, sapateador e compositor excelente), e sua mãe, Dona Didi, que faz cabeleiras e perucas com habilidade de uma verdadeira artesã; um dos seus irmãos é também compositor. Vê-se, pois, aí, uma verdadeira família de artistas, empenhados em fazer o que fazem benfeito, da melhor maneira possível. Não é esse um dos requerimentos da arte?

Gosto muito de ensaiar com Miro: seu ritmo possui imaginação, inventividade intrínseca; sua personalidade é contagiante de simpatia, o que influencia também a sua dança.

Nos desfiles de domingo de Carnaval, Miro faz trio com outros dois grandes passistas da Mangueira: Maria Helena e Jair; é talvez em conjunto, o que há de melhor em passistas na Mangueira.

Eu desfilo com a tradição do samba: Nininha, já mais velha, com samba rebolado absolutamente genial; nela está todo o ritmo da raça negra, toda a sua expressividade latente; o contágio da sua euforia faz dela uma das maiores preferências dos que assistem ao desfile − há quem venha só para vê-la.

Ultimamente, tenho ensaiado também com quem será futuramente “Mestre-Sala” da Escola (Mestre-Sala é o que faz par com a “Porta-Estandarte”). Robertinho da Mangueira, menino de 17 anos e um verdadeiro gênio da dança. A dança do Mestre-Sala difere da do passista: é baseada na Porta-Estandarte, que deve desfilar ao seu lado, ao passo que a do passista é mais baseada na invenção rítmica em relação a ele mesmo. Isso não impede, porém, que a imaginação funcione. Esse menino é a prova disso (vejam as fotos) [2]: seu jogo de corpo é insuperável e, ensaiando com ele, ganhei muito, principalmente no que se refere aos braços. Ao Robertinho estou ensinando pintura, em troca do que me ensinou.

Também outro componente da Mangueira é minha aluna de pintura: Rosemary, filha de um dos fundadores do samba do Estácio, Oto da Zezé. Rosemary, belíssima mulata, desfila com as mais belas roupas de destaque da Mangueira. Este ano, o seu majestoso traje foi bordado por um grande compositor da Escola, Helio Turco; por aí se vê como se faz uma fusão de atividades artísticas dentro dessa cultura que é a nossa, de origem europeia.

Há aí, a meu ver, mais unidade e mais força expressiva. É a dança, porém, que estabelece a ligação entre as duas culturas: o elemento mítico que está nela, que faz parte integrante da sua estrutura, é o apelo à participação de todos nessa expressão cultural. É o ritmo seu elemento fundamental, o liame sutil e objetivo dessa participação geral. Por ele são todos introduzidos à dança.

Nada mais lógico que, ao se aproximar a minha arte do mito, da vivência mítica essencial, encontrasse eu na dança uma relação objetiva e fundamental.

A criação do Parangolé nasce dessa necessidade do que chamo de “nivelamento cultural”; é uma aproximação da arte com o seu elemento mítico. Não se trata de um folclorismo superficial que até agora só tem servido de demagogia na arte, mas de uma vivência expressiva das origens, dentro dessa evolução da arte de hoje, onde poderia enquadrar a minha experiência.

Das expressões populares, é o samba das escolas o que mais me interessa como elemento de unificação cultural. É impossível dar aqui a ideia da riqueza de inspiração do seu ritmo, das suas músicas, da majestosa plasticidade da encenação dos seus desfiles: assistir a um deles equivale a uma emoção única em toda a vida.

Participar então, nem se fala.

Rio de Janeiro, 1965


Notas:

[1] Manuscrito inédito do autor, enviado gentilmente a Sibila por Luciano Figueiredo, artista plástico e diretor do Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro-RJ.
[2] Luciano Figueiredo informa que Hélio Oiticica provavelmente tinha a intenção de publicar este texto, dada esta indicação que remete a algumas fotos, embora o artista não tenha especificado quais seriam.