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A VANGUARDA COMO ESTEREÓTIPO: UMA ANÁLISE DA POESIA DE AUGUSTO DE CAMPOS

Tomado em seu conjunto, em termos tanto históricos quanto estéticos, o modernismo liderado por Mário e Oswald de Andrade terá afinal suas conquistas mais realizadas em Bandeira, Drummond e Cabral, entre outros, nos quais as vastas novas possibilidades linguísticas e temáticas deixam a fase da experiência para adquirir densidade e plasticidade capazes de dar conta, poeticamente, da cultura brasileira contemporânea, que a própria poesia moderna ajudava, ao mesmo tempo, a moldar. O que, à parte suas próprias obras, nos legou o concretismo de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari?

Dado que a poesia brasileira, hoje, é fundamentalmente verbal, e assim tributária de outras tradições modernas – como o próprio modernismo, a linguagem cabralina, o beat, o tropicalismo e a language poetry, entre outras –, e dado, ainda, que em meio ao mar de poesia visual que transborda da internet não há praticantes de verdadeiro destaque –, a pergunta é pertinente. Pois para além dessa falta de mestres, que realizem, para a história da arte, a nova linguagem criada pelos inventores (para completar a classificação de Pound), nesse caso os próprios inventores, mais cedo ou mais tarde, viram-se em situações improdutivas. Décio Pignatari há muito abandonou a poesia. Haroldo de Campos, no fim a vida, abandonou a poesia contemporânea (depois de uma reaproximação ao verso livre, que gerou ao menos um grande poema como Finnismundo, sua última criação é uma longa – e longamente enfadonha – sequência de decassílabos heróicos rimados em terzas dantescas, A máquina do mundo repensada). Já Augusto de Campos abandonou – desde muito cedo, aliás – o rigor.

Não abandonou a aparência do rigor. Mas um rigor aparente é um rigor aparente. O que pode parecer à primeira vista um juízo rigoroso demais é, ao contrário, firme e plenamente demonstrável pela análise de seus dois livros mais representativos, as extensas antologias Viva Vaia e Despoesia, empreendida a seguir. [1]

A obra de Augusto de Campos, inicialmente divulgada, ao longo dos anos 1950, 1960 e 1970, em edições do autor e revistas como Invenção, foi primeiramente coligida em Viva vaia – poesia 1949-1979.[2] Seu percurso se inicia, no fim dos anos 1940, seguindo os pressupostos da “geração de 45”. Portanto, no início da antologia nos deparamos com longos poemas verbais muito distantes dos meios e modos do modernismo de 22. Nada de síntese, nada da implosão do eu lírico, nada de coloquialismo. Mas muitos decassílabos heróicos, muitas referências ao “poeta”, muitos versos na segunda pessoa do singular (para não falar de muitas passagens simplesmente incompreensíveis). Tais características perpassam as longas séries inaugurais que são O rei menos o reino (1949-1951), O sol por natural (1950-1951), Ad augustum per angusta (1951-1952) e Os sentidos sentidos (1951-1952).

O rei menos o reino constitui-se de um poema longo em cinco partes, e mais dez poemas autônomos. Sua parte 3 é este soneto, sem rimas, mas em decassílabos heroicos e sáficos, e com direito a um latinismo arcaizante como “dulcamara” (doce-amarga) perto do final:


Do que há de ouro na palavra dolce
Levo-me aos teus cabelos, não a ti.
Cabelos que iluminam quando morres
Um rosto ainda mais claro do que de ouro.

Dos teus olhos molhados água o mar
Que o teu olhar detém e duas conchas
Enterram. Que outra seda enterraria
O que há de azul entre os olhos e o mar?

Do que há de morto na palavra outono
Galgo teu corpo – não a ti – teu corpo
Mais alvo de o fechares contra mim.

Dulcamara, porém, que fazes do ar
Quando começo: – Mar… – apenas vento?
– Amara amara amara mar e amarga.

Para efeito de comparação, eis outro soneto da mesma época, na verdade, do ano anterior (Vinicius de Moraes, A pêra, 1948):


Como de cera
E por acaso
Fria no vaso
A entardecer

A pêra é um pomo
Em holocausto
À vida, como
Um seio exausto

Entre bananas
Supervenientes
E maçãs llanas

Rubras, contentes,
A pobre pêra:
Quem manda ser a?

Revitalizando a forma soneto, há no poema de Vinicius todo o aprendizado do alto modernismo, ou seja, o tema não “poético”, o vocabulário seco, substantivo, os versos diretos e curtos (logo, o ritmo acelerado), o objetivismo, a ausência do eu lírico, os cortes abruptos (“À vida, como”), a polissemia (esse mesmo “como”, conjunção que no contexto evoca o verbo comer), a rima incomum (“pêra / ser a”), o coloquialismo (“Quem manda ser…”). O soneto de Vinicius parece ter sido escrito hoje (não fosse a falta de poetas capazes dessa riqueza-leveza). O de Augusto de Campos, bem antes de Oswald de Andrade.

Ainda em O rei menos o reino, assim começa o poema 5:

ANGÚSTIA: eis a flor marcada a ferro
Que um vento solitário, o DESESPERO
Incrustou numa pedra nua, o TÉDIO.

Nada que não possa ser encontrado no século XIX entre os seguidores de Baudelaire. Segue-se um poema cujo título (que poderia ser de Thiago de Mello) é “Canto do homem entre paredes”:


As paredes suportam meus pulsos de carne.
As paredes se encaram.
As paredes indagam seus rostos à cal
E me riem perdido além do labirinto. […]
E as paredes são uivos mais fortes que os meus. […]
Fui eu quem as fechou? Se fecharam sozinhas?
Sabem que eu sei abri-las. Ignoro que sei. […]
Sonham que eu hei de abri-las. Ignoro mas sei.

A O rei menos o reino sucede O sol por natural, sem que se alterem tais características. Na verdade, como se trata agora de toda uma série amorosa dedicada a uma mulher, elas se acentuam:

Solange Sohl, leoa sobre-humana
Encarcerada em uma jaula de ouro.
Solange Sohl, doutora e silenciosa
Sob o peso dos cílios.
Solange Sohl, fontana submersa.
Solange Sohl, senhora silandeira
Com o sonho tecido em seu regaço.
Solange Sohl, Solange Sohl, Solange Sohl…

Haverá, afinal, um primeiro salto qualitativo em Ad augustum per angusta. Nesta série de dez poemas, os versos longos, como os decassílabos e dodecassílabos anteriores, e as extensas estrofes de fôlego prosaico e temática lírica, dão lugar a rápidas estrofes (quadras e tercetos) em versos curtos (hexassílabos), em meio a rimas inusitadas e pinceladas de ironia, em que marca presença o tema da metalinguagem.

Onde estou? – Em alguma
Parte entre a Fêmea e a Arte.
Onde estou? – Em São Paulo.
– Na flor da mocidade.

Nenhuma se me ajusta.
Oh responder quem há-de?
Arte, flor, fêmea ou…? AD
AUGUSTUM PER ANGUSTA.

Ao alto [se chega] pelos [caminhos] estreitos”diz o latim do último verso. Portanto, a rima entre ajusta e angusta (estreito) é semanticamente um achado, além de irônica, no choque entre o coloquialismo do verbo português e o latim clássico do provérbio. Não se trata de um caso isolado: outros exemplos da série são férreo / mister e o, míngua / lapsus linguae etc. No entanto, ainda estamos longe da contemporaneidade verbal de Vinicius – e assim ficaremos, pois depois da derradeira série dessa primeira fase – Os sentidos sentidos (1951-1952) , Augusto de Campos se afastará progressivamente dos versos para ingressar na poesia visual.

Nessa nova série convivem a dicção “geração de 45” das anteriores com os primeiros ensaios de experimentalismo. Este se manifesta nas primeiras palavras-valises (aquamorta, aromaterna), algumas em mais de uma língua, no uso de substantivos como adjetivos (cuidados-orvalho), na fusão de figuras de linguagem, como descrição e metáfora (“olhar o desmoronamento grande / da tarde e o das palavras gordas”), como na primeira estrofe do poema que dá título à série:


A língua: a lânguida rainha melancálida
enrolada em seu bathbreathbanho palatino,
a sempitépida, a blendalmolhada e alqueblândulas
cobras corais como cópulas de oravoz.

Será, no entanto, apenas no último poema, “O poeta ex pulmões”, que a unidade verbal e versal ver-se-á substituída por uma composição de fragmentos de palavras, que se articulam através de parêntesis, apóstrofes, anteposições, preparando a linguagem afinal desenvolvida a seguir em Poetamenos (1953) e “Bestiário para fagote e esôfago”(1955).

A série Poetamenos, com sua fragmentação sintática e vocabular, junto à pretensa multiplicidade de leituras de fragmentos impressos em diversas cores, mas condenados à leitura linear das palavras impressas na página, nos seus momentos mais simples não parece poder se justificar, e nos mais complicados, não justifica o tempo necessário para decodificar o texto. No primeiro caso está o poema que dá nome à série. Em que alguns poucos sufixos alterados (como o –edo de rochedo para aedo, resultando em rochaedo) são marcados por uma cor distinta, quando seriam igualmente distinguíveis por recursos gráficos tradicionais como a itálico ou o negrito, o que reduz o uso da cor a mero preciosismo (pois não há correlação entre a impressão em cor e os timbres das palavras, já que palavras sonoramente semelhantes aparecem em duas cores diferentes – como estro, em amarelo, que é uma assonância de menos, em roxo).

“Bestiário para fagote e esôfago”, em lugar de uma série, é um poema longo, e o melhor da fase pré-concretista. Levando ao extremo o recurso da tmese, ou corte de palavras, ao mesmo tempo em que articula os fragmentos resultantes com rigor e precisão, estrutura-se (e desestrutura-se) em polissemias e ambiguidades de caráter irônico, para dessacralizar a figura do poeta e do próprio autor (nomeado na última linha). Ao mesmo tempo, aponta para uma dimensão visual, pois tanto o fagote quanto o esôfago do título são estruturas tubulares, mas não perfeitamente cilíndricas, cujo formato é evocado, em duas dimensões, pelas formas das estrofes.

Na série seguinte, Ovonovelo (1954-1960), encontramos os primeiros poemas concretos, que são aqui, basicamente, de dois tipos: caligramas (como o que dá título à série) e os por mim chamados de poemas sofísticos.

Caligrama, como se sabe, é uma “representação figurativa do conteúdo de um texto, mediante arranjo dos próprios caracteres tipográficos com que é composto.” À precisa definição do Aurélio falta ressaltar que tal representação não se dá de modo orgânico, digamos assim, mas inteiramente artificial: o texto é forçado a se encaixar numa forma pré-determinada, por divisões e espaçamentos arbitrários de frases ou palavras.

Notar o espaçamento maior entre as letras nas duas primeiras linhas, bem como os espaçamentos forçados entre as palavras nas demais, visando a arredondar a forma dessa primeira estrofe (o que se repete no resto do poema). Não obstante, há aqui alguma impregnação da forma no próprio texto, através do campo semântico de palavras como ovo, novelo, folhos, dentro, centro, além de uma descrição baseada num cerrado jogo paronomástico que é um exemplo de poesia verbal bem realizada: “ovo // novelo // novo no velho // o filho em folhos // na jaula dos joelhos // infante em fonte // feto feito // dentro do // centro”.

A maior parte dos poemas da seção Ovonovelo constitui-se, porém não de caligramas, mas, como referido, de poemas “sofísticos”.

Segundo Décio Pignatari, “o poema [concreto] é forma e conteúdo de si mesmo, o poema é” [3]. Para Eugen Gorimger (citado por Haroldo de Campos), “o poema concreto […] é ‘uma realidade em si, não um poema sobre’”.[4] Assim, enquanto um verso sempre versa sobre algo, o “poema em si”, se por um lado leva à aporia – pela contradição fundamental de sua pretensa autonomia face à referencialidade do signo verbal –, por outro leva a um sofisma estético.

[O] discurso sofístico não é um discurso do ser, não é um discurso filosófico. Somente persuade, pois, não significando algo externo a si, apenas manifesta o que ele próprio é. [5]

Sofisma estético, portanto – pois, neste caso, ele não é filosófico. Ou, então, mantra poético. Pois num mantra o ritmo, também vazio de conteúdo referencial, é necessário para ocupar, pela repetição de uma fórmula, o lugar mental de outras palavras – o que o mero silêncio não faria –, logo, de quaisquer ideias (ou seja, de quaisquer relações mentais com o mundo, preparando então o contato com a “transcendência”). Reza assim o texto do poema “Uma vez”: “uma vez // uma fala // uma foz // uma vez / uma bala // uma fala // uma voz…”. Em“Corsom”selê: “som sem cor // cor sem som // som com som // cor com cor // som sem som”. Enquanto a palavra “vida” repetida dez vezes constitui todo o texto do poema “Vida”. A não-separação entre as repetições (“vidavidavidavida…”) apenas aumenta a semelhança com um mantra – que não fica comprometida pela “aparição”, en passant, de ecos de “vi da vida”, nem pela evocação anagramática de dádiva, muito menos pelo arranjo da linha formada pelo texto em uma espiral.

Depois dos poemas sofísticos (ou “mântricos”), surpreendentemente é a vez do poema que representa, no extremo oposto da referencialidade, o “salto participante” de Augusto de Campos, “Greve” – datado de 1961, quando a poesia concreta tinha apenas cinco anos, e enfrentava as primeiras grandes dificuldades postas diante de uma linguagem que se orgulhava de ser pouco – ou mesmo nada – referencial. Assim, sob pressão do momento político, o concretismo viu-se constrangido a tentar esse famoso “salto participante” – que, mais do que salto, seria um tropeço num emaranhado de contradições.

Pignatari tentaria resolvê-las teoricamente:


A poesia concreta é a primeira grande totalização da poesia contemporânea, enquanto poesia “projetada” – a única poesia conseqüente de nosso tempo. […] A poesia concreta vai dar, só tem de dar, o pulo conteudístico-semântico-participativo. […] É preciso jogar os dados novamente. [6]

“Consequente”, no contexto dos anos 1960, era uma das palavras-chave da esquerda (ao lado de coerente). Significava o contrário de “alienado”. Consequente, portanto, era o gesto que tinha engajamento político-social. Ao dizer que a poesia concreta é “projetada” e por isso “consequente”, Pignatari está se referindo à sua poética, posto que haveria aqui um controle das consequências, isto é, das variáveis, além de lucidez história quanto à história dasz formas. Mas ao dizê-lo assim prepara o terreno para afirmar que, portanto, sob um ato de vontade, a poesia concreta, por projetada, pode se tornar “consequente” também no sentido “conteudístico” (e político). Não pôde.

“Greve” é, portanto, um bom exemplo do “salto participante” justamente por ser um poema constrangedor (como o equivalente de Haroldo de Campos, “Servidão de passagem”). Pois “Greve” não convence absolutamente como poema engajado, ao materializar seu grito de butique. A ideia de um texto em papel semitransparente, sobre outra página em que se repete inúmeras vezes a palavra GREVE em caixa alta, é brilhante, pois captura graficamente o momento político, no qual as manifestações de rua pairam como uma presença constante por trás de todo discurso ou artigo. O problema é o texto sobre a transparência, cujo final diz: “grita grifa grafa grava / uma única palavra” (isto é, GREVE). A falsidade está denotada pelo exagero: pois uma greve é apenas um mal necessário. Não é o paraíso na terra, a ser desejado como se anseia pelo Messias.  Por outro lado, o poema tampouco convence como poema metalinguístico, sua outra leitura possível – tendo em conta o tema da renúncia à poesia, desde então tão caro ao autor (apesar de jamais praticado).

Na seção seguinte, Cidade / Acaso / Luxo (1963-1965),  estão duas das mais conhecidas criações de Augusto de Campos – “Cidade city cité” e “Luxo” –, sendo a primeira, provavelmente, um de seus mais famosos e melhores poemas (e de toda a poesia concreta).

No site pessoal do autor se encontra uma versão em animação gráfica do primeiro, na qual as raízes vocabulares que o compõem pulsam num fundo negro, enquanto a enorme palavra-valise que é o poema original desliza da esquerda para a direita pela tela. [7] Há cores, há palavras soltas pulsando, tudo parece muito “digital”, mas o acréscimo é perda. Pois o poema era e continua sendo a longa palavra composta, originalmente impressa numa extensa tira de papel: atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultiplicorganiperio
diplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade. A grandeza do poema está em que, aproveitando a lição de Joyce na “voz do trovão” do capítulo 1 do Finnegans wake, Augusto de Campos logrou transformar o que era a maior onomatopeia da história da literatura, mas que se limitava a reproduzir o som de um trovão, numa síntese fônico-semântico-pragmático-visual de uma megalópole.

O palavrão acima se justifica. Pois a longa palavra-poema reproduz da cidade, em termos sonoros, sua cacofonia; em termos semânticos, sua natureza urbana; em termos pragmáticos, o fragmentário de sua experiência (na sucessão de palavras cortadas encadeadas); e em termos visuais, a infindável skyline feita de uma sucessão interminável de edifícios (nas diferentes alturas das letras sobre o “horizonte” da linha – aspecto que fica comprometido na versão animada para computador). Trata-se de uma verdadeira lição de coisas da linguagem concreta: com dois gestos, um de cortar (palavras terminadas em –cidade), outro de colar (as raízes vocabulares que restam), e alguns substantivos, constrói-se um dos melhores poemas conhecidos sobre a urbe.

No entanto, a partir daqui o trabalho de Augusto de Campos derivará, por um longo período (1964-1970), para as artes plásticas. Pois a colagem, à qual passa a se dedicar, é uma linguagem consolidada, e o fato de ser eventualmente praticada por um poeta conhecido não faz com que deixe de ser o que é, nem que passe a ser o que não é. Começando pelos Popcretos (1964-1966), Augusto de Campos os referirá, porém, como “expoemas” e “concreções semânticas”. Mas como disse Shakespeare, “What’s in a name? That which we call a rose / By any other name would smell as sweet”. Tais “expoemas”, de fato, apesar do nome, cheiram demais a cola para poderem ser considerados outra coisa além de colagens. A mais evidente, digamos, é “Olho por olho”, simplesmente uma colagem de recortes de revista com imagens de olhos humanos eventualmente misturados a algumas bocas e encimados por símbolos gráficos:

 

O “poema” seguinte, “SS”, pretende ser, na concepção do autor, “a fala da tribo, detalhes-detritos da realidade, o caos antropofágico brasileiro redestruído pela manchetomania de um anarquiteto”: porém, apesar dessa verborrágica pretensão, é apenas uma colagem de letras e palavras recortadas de jornais e revistas, na qual a presença de um duplo ss é eventualmente realçada, por repetição, através da escolha de palavras como esso, miss, soviete supremo, sos. Pretenso híbrido entre ready-made e montagem einsensteiniana, resulta numa colagem pop bastante datada. O terceiro dos Popcretos, “Psiu”, é uma variação compacta de “SS”, enquanto o quarto, “Anti-ruído”, é uma variação “culta” (feita a partir da colagem de prefixos de palavras mais “nobres”).

Qualquer dúvida quanto à derivação de Augusto de Campos para as artes plásticas é necessariamente dirimida por sua produção seguinte, os Profilogramas (1966-1974). Profilo, perfil, grama, grafia: grafia de perfis, perfis grafados, o fato é que se trata apenas e tão somente de fotomontagens, que nada dizem para a história da poesia (e muito pouco para a das artes plásticas).

Fotomontagens de perfis, naturalmente. Mas não só. Enquanto os “Profilogramas” de números 1 e 2 são, de fato, a sobreposição dos perfis de Maiacóvski e Pound (1) e de Webern e Cage (2), os seguintes são montados a partir de fotos de frente de Souzândrade e de Pagu. Aqui, trai-se mais do que o perfil do título da série. Pois enquanto os dois primeiros funcionam como um jogo, pelo qual eventuais proximidades artísticas dos pares retratados são evocadas pela aproximação gráfica de seus perfis – e a consequente evidenciação “eisensteiniana” do que têm em comum –, os dois últimos são banais. Principalmente o terceiro, Sousândrade, cujo pretensioso subtítulo é fotopsicograma, mas não passa da fusão de uma foto do rosto do próprio com a de um grupo de homens sentados, provavelmente corretores da bolsa de valores de Nova York (evocação óbvia das partes mais famosas da obra mais famosa do autor, O Guesa errante).

Depois de seis anos como artista plástico, Augusto de Campos retornará à poesia com Equivocábulos (1970), dos quais nos concentraremos num dos mais conhecidos, “Rever”. Justamente, o melhor (no site do autor, como no caso de “Cidade”, há uma nova versão do poema, com cores e movimento, que nada acrescentam à econômica forma original; ao contrário, comprometem a nitidez de sua realização). “Rever” utiliza a mesma linguagem proposta meia década antes, em 1966, por Pedro Xisto, nos melhores “Logogramas”(como o famoso “Zen”), em que uma só palavra é o texto, eliminando assim todo e qualquer elemento discursivo para coisificar essa palavra num todo orgânico, em que significado e significante determinam-se mutuamente, e fundem-se indissoluvelmente.


[8]

O verbo rever é, em si, um palíndromo, palavra (ou frase) que pode ser lida invariavelmente da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Assim, sua forma lexicalizada parece traduzir motivadamente, e não aleatoriamente – como é da condição das línguas naturais –, seu significado. Pois rever significa “ver pela segunda vez”, enquanto a palavra rever é em si mesma ver duas vezes, palindromicamente, ao ser lida da esquerda para a direita e vice-versa. Se não bastasse, rever também significa “voltar a ver”, e é voltando a leitura que se “revê” o mesmo verbo ver em rever.

O giro de 180º do e e do r finais iconiza, no poema, a palavra, que deixa de ser um símbolo verbal para ser um signo com uma relação formal causal com o que significa. O problema é que o verbo em si não representa, logo, não soluciona, nenhum problema poético. Porque já é um problema solucionado. A perfeita relação semântico-formal palindrômica que justificaria o poema preexiste no verbo em estado de dicionário, incluindo a precisa simetria da letra v e o número ímpar de caracteres, que deixa esse v simétrico no centro da palavra, como no centro do ato de rever jaz o que está sendo revisto – o que a intervenção poética, então, apenas evidencia.

Mas talvez o maior senão de “Rever” seja uma intervenção extravocabular, digamos assim, do autor: o fato de a palavra estar impressa duas vezes, em duas páginas consecutivas, fazendo com que seja lida-vista numa face e relida-revista na outra, no que é, afinal, uma redundância explicativa – mesmo porque, a transparência natural do papel, à contraluz, teria o mesmo efeito, como aliás acontece no caso de “Zen”.

A diferença com “Zen” é, enfim, cabal: aqui a estilização dos caracteres latinos convencionais gera uma relação entre as partes (sintaxe) complexa, em que o quadrado da esquerda, com sua diagonal, é a imagem especular do da direita, enquanto o quadrado do centro, com sua linha horizontal, é a síntese de ambos, numa estrutura dialética que resulta na grande carga semântica acima discutida.

Pedro Xisto afirmou que pretendia, com o poema “Zen”, originalmente representar a simplicidade de um famoso altar visto no Japão. Porém, confrontado com sua perfeita realização e o enorme poder de síntese da palavra-poema, referia-se a ele como um “poema feliz”: não no sentido da alegria, mas do sucesso, do logro, ou seja, da pertinência – assim como se diz “um lance feliz”, no qual intenção, ação e resultado, num único gesto, fundem-se enquanto se realizam. O “Rever” de Augusto de Campos é da mesma “natureza”, mas não da mesma qualidade, do “Zen” de Pedro Xisto. E sua grande diferença reside em sua grande semelhança: pois ambos são a evidenciação de um significado num significante que parecia já traduzir o primeiro antes da intervenção, o que aliás é a causa desta última – como se a língua histórica, no caso destas palavras, fosse em si mesma poética. Daí que a diferença entre os poemas reside, afinal e necessariamente, na própria diferença entre as palavras. Ou seja, nas respectivas relações significado-significante.

Como a palavra zen tem um significado muito mais complexo do que o da palavra rever, o resultado de uma intervenção equivalente deve ser proporcionalmente mais complexo. Analisando-se rapidamente o poema “Zen”,[9] pode-se perceber de modo inequívoco o que está aqui envolvido em termos de linguagem poética mínima – e, em outro sentido, máxima. É o que faz a seguir Philadelpho Menezes, um de nossos melhores críticos contemporâneos de poesia:

O casamento perfeito entre o design do signo verbal, sua sintaxe e sua semântica, se dá no poema “Zen”, […] onde a leitura linear da palavra zen é substituída pela visão de conjunto geométrico da forma plástica, nos remetendo à imagem de um templo oriental visto de frente, ou sugerindo, pela conformação rigorosamente simétrica, a estrutura do pensamento oriental desenvolvido sobre a composição dos opostos complementares, a simplicidade na formulação e a própria escrita chinesa, ainda hoje parcialmente pictográfica. [10]



Considero “Zen” um prodígio informacional. Pois agrega, em paralelo à sua estrutura tripartida, três tipos ou níveis de informação: a vocabular, ao ser a própria palavra zen estilizada; a pictórica ou diagrâmica, ao sintetizar a representação plástica de vários elementos da arquitetura religiosa japonesa (como as verticais das colunas, os quadrados das paredes e as diagonais dos telhados – ponto de partida de Xisto); e a conceitual, ao traduzir graficamente importantes preceitos do zen-budismo (a harmonia entre opostos – indicados pelas diagonais espelhadas –, o caminho do meio – na linha central horizontal –, a dialética da unidade).

A poesia sempre buscou aproximar nome e coisa nomeada. Essa busca, histórica, porém historicamente considerada utópica, foi portanto concebida como a busca da melhor maneira de fracassar (Paul Valéry: “A poesia é uma hesitação entre o som e o sentido”). Mas apenas porque ela seria ou deveria ser “o lugar onde os nomes e as coisas se fundem” (Octavio Paz); “a aplicação da palavra à coisa” (Pound); “[a linguagem em que] a palavra se torna coisa” (Sartre [sobre Mallarmé]). Uma crença ou pretensão antiga, expressa já no primeiro livro da Bíblia: “E todo nome que Adão pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome” (Gênesis, 2, 19). Daí a poesia ser referida, idealmente, como a perdida “língua” adâmica, em contraponto às línguas naturais, ou históricas, que são babélicas (isto é, arbitrárias, convencionais). É neste sentido que a linguagem de alguns dos “Logogramas”(pois Xisto, na verdade, usa mais de uma linguagem na série), assim como no subsequente “Rever”, representa bem mais do que parece à primeira vista em sua economia extrema.

Pois o que caracteriza a linguagem poética é, fundamentalmente, o fato de o significante perder seu caráter de mera convencionalidade para materializar seu significado. Como não se trata, porém, de substituir a convencionalidade histórica pelo puro arbítrio do poeta, tal materialização se dá, idealmente, a partir da evidenciação de elementos prévios do significante – como se, afinal, este não fosse na verdade meramente convencional, mas guardasse marcas, índices, de uma relação ideal significante-significado.

Muitos mecanismos e métodos distintos são usados para tal evidenciação, com maior ou menor eficácia, notadamente na própria poesia concreta (que não tem este nome por outro motivo), como a caligramia de “Ovonovelo”, a repetição de um caractere para registrar a ideia de movimento no “Velocidade” de Ronaldo Azeredo (numa sucessão de vvvvvv que afinal lembram uma onomatopeia de histórias em quadrinhos), ou o uso de tipologias motivadas.

Um poema tipológico – como o nomeio – é aquele em que o desenho particular de um tipo de letra participa da gênese e da realização do poema, de tal forma que esse tipo se consubstancia idealmente ao texto – que não pode, portanto, ser impresso em outro tipo de letra, ao contrário dos demais poemas. Assim, um soneto de Camões impresso em qualquer dos infinitos tipos existentes é o mesmo soneto de Camões, enquanto um poema tipológico não pode se impresso em outro tipo sem que a informação poética que o constitui se perca.

Há, no entanto, os poemas falsamente tipológicos, ou seja, impressos num tipo de letra incomum, “especial”, mas que não guarda nenhuma relação estrutural com o texto: neste caso, muda-se a letra e tampouco se muda o texto. Pois aqui a tipologia “especial” reveste, epidermicamente, o poema – que por isso continua existindo, invariável, num tipo mais neutro. É o caso dos poemas da seção seguinte da obra Augusto de Campos autor, os Stelegramas (1975-1978).

Stelegramas
: fusão de estela (stela, em latim), placa de pedra com uma inscrição, e telegrama. Uma placa de pedra com uma inscrição é algo bem sólido (se não em termos linguísticos – pois a pedra, como o papel, aceita qualquer coisa –, ao menos em termos físicos). Bem mais sólido, em todo caso, que essas estelas telegráficas de Augusto de Campos. Pois dos oito Stelegramas, apenas dois, isto é, 25%, ou um quarto, não são poemas em versos disfarçados por uma tipologia rebuscada e arbitrária. Ou seja, seis deles, ou 75%, são poemas em versos disfarçados por uma tipologia rebuscada e arbitrária, ou falsos poemas tipológicos.

Não há espaço, aqui, para reproduzir todos eles em suas respectivas tipologias “especiais”. Mas há espaço para reproduzir, por exemplo, o texto trocadilhesco de “O quasar:” “pensa no quase amar do quasar quase humano”. Quase amar do quasar? E por que ele seria quase humano? Afinal, trata-se apenas de uma estrela que emite ondas em frequência de rádio, como aliás inúmeros outros corpos celestes (sendo o mais espetacular o pulsar, pela regularidade de seus pulsos, que, estes sim, parecem uma monótona transmissão em morse de um mesmo caractere). Além de trocadilhesco, “O quasar” vem numa tipologia “moderna”, em que cada letra é feita de vários pontos brancos num fundo negro, talvez para evocar estrelas no céu. Seja como for, tal tipologia não tem qualquer relação interna com o texto, do qual é mera vestimenta (servindo, portanto, para tentar inscrever uma relação significado-significante em um texto poético pobre delas). O mesmo vale para “Miragem”:

“incerto ser incerto / que me olha tão distante / e está tão perto / miragem que em mim mira / deste deserto / eu tento tanto tântalo / sonhar mas desperto”: miragem que em mim mira é o tipo de aliteração que “mostra o andaime”, como diria João Cabral. Como em “Ivo viu a uva”, percebe-se que se trata de uma aliteração a uma distância maior que a de dois oásis num deserto. Já eu tento tanto tântalo é melhor, pois parte de uma convincente forma coloquial, “eu tento tanto” – que mais do que aliteração, é uma paronomásia –, para lhe incorporar, num crescendo sonoro e temático, o nome (Tântalo) da personagem mitológica condenada a passar a eternidade com sede, à beira de uma fonte que se afasta quando ele tenta alcançá-la. Aqui importa registrar que o texto, impresso num tipo com um óbvio efeito ótico, em que cada letra é feita de várias linhas finas paralelas, tem para com essa tipologia uma relação anedótica: o poema tematiza uma miragem, logo, é impresso numa tipologia “ótica” (para não falar na disposição forçada dos caracteres formando um retângulo, essencialmente caligrâmica). O mesmo vale para a maioria dos Stelegramas, nos quais as palavras, além de impressas em tipos “especiais”, são espaçadas de um modo igualmente “especial” que não guarda relação estrutural com o texto em si.

Comparar aclara. Portanto, comparemos esses poemas de Augusto de Campos com um dos melhores poemas tipológicos que conheço, o “Ond” de Marcelo Tápia.[10] Poema em que o tipo de letra, além de informar o texto em si mesmo e sua conformação na página, também determina, motivadamente, o próprio modo de leitura, transformando-o num ato que, afinal, realiza o poema.

O puro arbítrio do autor, estendendo o conceito de poema tipológico ao máximo, limitou-se à própria escolha do tipo. Porque a partir dessa escolha, seu arbítrio em relação às demais variáveis do poema seria restringindo pelas determinações do próprio desenho da letra. Esse desenho estiliza um pedaço de corda. Sendo as serifas as pontas soltas dessa corda, sua incorporação radical impõe que sejam essas “pontas” a determinar a posição das letras na página. O poema toma forma, então, quando cada letra é disposta seguindo as posições e orientações dos traços final e inicial de cada par de letras. Assim, o o inicial de como, primeira palavra do poema, não se alinha ao c, mas fica-lhe abaixo, enquanto o n de onde, a segunda palavra, fica acima de seu o inicial. Eventualmente, algumas letras acabam tombadas em 90º, outras de cabeça para baixo, sempre em função da junção dos traços finais e inicias das mesmas. O que por sua fez informa o texto e determina o ato de leitura, numa relação orgânica, em que os vários níveis de informação e estruturação se retroalimentam até resultar na composição final.

Não foi de fato o autor quem pré-determinou a forma final do texto na página, isto é, a estrutura do poema: ela surgiu da disposição de cada letra conforme era possível ligá-la à antecedente como em um pedaço de corda retorcida, que é afinal a palavra. Daí que, abandonando-se o tipo, o poema desaparece, substituído por uma frase – “como ondear um mar sem tontear-me o onde?” – que está no poema, mas que não é o poema. Porque o poema diz o que faz, e faz o que diz, e é o que diz e faz, tanto na forma quanto no ato de leitura, que impõe o oscilar da cabeça. A forma do poema é a de uma onda. Ou melhor, duas: se imaginarmos o mar visto de cima, o poema desenha as reentrâncias da onda morrendo na areia; se imaginarmos o mar visto de lado, ou seja, de dentro de um barco que corta as águas, o poema traça o perfeito perfil das ondulações.

Quanto ao seu texto, como convém a um poema marcado em sua materialidade gráfica pela tipologia, é autorreferente: “ondear o mar”, sendo da natureza do mar se ondear, nada mais é do que reproduzi-lo – isto é, reproduzir suas ondas. O que, afinal, “tonteia” (como fazem as próprias ondas): dadas as posições das letras, para ler o poema deve-se jogar a cabeça de lá para cá, inclinado e desinclinando o pescoço, ao mesmo tempo em que se inclina e desinclina a página (o poema foi originalmente impresso numa lâmina solta). Como ondear um mar sem tontear-me o onde? A resposta é o próprio poema: não se pode. Além da rigorosa relação semântico-tipológico-estrutural, há aqui mais simplicidade, elegância e beleza gráfica do que nos poemas tipológicos de Augusto de Campos.

Voltando aos Stelegramas, é preciso observar que, sem eles, não existiriam nem “Ond” nem outros poemas tipológicos que sucederam o trabalho de Campos. No entanto, o mero pioneirismo não é suficiente para dar a um dado trabalho qualidades que não possui. E os Stelegramas – com as exceções de “O pulsar” e de “Po a poe” – não possuem relações estruturais entre texto e tipologia que justifiquem esta última. Transformando assim a tipologia em mero adereço, o que por sua vez é a mais perfeita negação do rigor construtivo em geral e dos pressupostos da poesia concreta em particular.

Resta fazer uma observação sobre “Memos”. Pois “Memos”, a despeito de ser mais um poema tipológico falso ou falseado, é não somente um grande poema, como também o primeiro exemplar de uma outra vertente fundamental da obra de Augusto (vertente que marcará cada vez mais presença, a partir daqui, substituindo os próprios poemas tipológicos, e a que chamei de poesia “aquadradada”, como se verá adiante). Sob a tipologia mais exuberante de todos os Stelegramas, “Memos” é, na verdade, um verdadeiro tour de force poético, baseado em três versos que estão entre os melhores do autor (e aos quais o arranjo não-linear do poema acrescenta mais – e mais complexos – conteúdos):

como parar este instante luz que a memória aflora mas não sabe reter
amargo este momento a mais que a memória morde mas não consegue amar
e passas sim passa assim passa memória assassina do momento que pas

Tudo começa pelo fato dos três versos terem o mesmo número de caracteres sem os espaços entre as palavras (56). Retirados esses espaços, e divididos por um número inteiro (no caso, 4), cada verso resultou em várias linhas curtas (14), contendo fragmentos aleatórios do verso de partida. Se grande parte dos “pedaços” resultantes não tem sentido semântico, como eins, isqu, egue, epas, impa, aparecem, entre tais fragmentos de 4 caracteres, palavras inteligíveis como para, flor, nãos, amas, eter, amar, temo, amor, amem, em meio a uma terceira categoria, os híbridos, que são quase inteligíveis, como eluz, riaa, snão, ssim, omen – reproduzindo-se assim à perfeição como, do caos quase-amorfo do inconsciente, afloram à superfície da consciência as ideias-palavras que, afinal, reconhecemos e manipulamos.

Além disso, no centro de cada grupo de fragmentos resultantes da divisão dos versos aparecem, respectivamente, as palavras memo, mori e oria, ou seja, a divisão em eco da palavra memória, tema do poema (divisão em eco, porque a última sílaba de cada fragmento é repetida como a primeira do próximo: assim, em vez de simplesmente me-mo-ria, temos memomori, bem como morioria – de tal modo que sua reunificação forma, não mais memoria, mas memomorioria, forma recorrente surpreendentemente apropriada de grafar tal palavra). Resta acrescentar que, das três colunas, as duas últimas, circularmente, começam e terminam com o mesmo fragmento (amar e epas), enquanto a primeira forma em seus extremos uma afirmação, como éter, que parece um comentário irônico da memória sobre si mesma.

A forma final do poema é, evidentemente, a da direita. Em que tudo o que está acima descrito (e materializado na [minha] versão à esquerda) foi revestido por uma quantidade gigantesca de tipos de letra, na verdade, quase um tipo para cada fragmento de 4 caracteres, numa exuberância kitsch que nada acrescenta aos conteúdos semântico e estrutural-funcional do poema. Não fosse essa epiderme tipológica artificiosa, “Memos”, ao lado de “Cidade”, de “Coisa” e de “Coração / Cabeça” (ver adiante) seria um forte candidato a compor o conjunto dos melhores poemas de Augusto de Campos (assim como o dos melhores da poesia concreta – aqui sim no sentido lato: ou seja, não-cronológico).

Com os poemas (poucamente) tipológicos dos Stelegramas termina o primeiro grande período da obra de Augusto de Campos, conforme antologiado no volume Viva vaia. Quinze anos depois, uma segunda coletânea, Despoesia,[11] cobrirá toda a sua produção entre os anos 1980 e 1994 (com exceção de “Não”, poema-xerox de edição autoral, e das excursões em holografia).

Em meio à reiteração de várias linguagens já presentes na primeira coletânea, Despoesia é um volume repleto dos cacoetes, truques e arbítrios a que afinal se reduziram, quase que completamente, as defesas por rigor, construtivismo e invenção explicitadas pelo autor durante décadas. Rigor pressupõe submissão a procedimentos precisos e estritos. Aliado ao construtivismo, impõe que se parta dos elementos internos de cada texto, que o constroem, para chegar a uma estrutura final que – através de procedimentos inovadores – afinal materialize a inventividade. Mas o que tudo isso tem a ver com meras fórmulas, que como fôrmas podem ser e são aplicadas aos mais diversos e distintos textos? Num deles, “Pós-soneto” (p. 105), o autor se confessa cansado da poesia: “quando eu sabia fazer poesia / […] / agora que eu cansei […]”. Veremos o quanto isso é verdade.

Por exemplo, no poema em homenagem a sua mulher, “Ly”, esse cansaço é evidente. Seu texto resume-se a esta banalidade: “eu e você uma só pessoa”. Como, então, travestir uma frase tão banal num poema de “vanguarda” (conforme ainda advoga o autor), e sem muito trabalho (dado o cansaço)?

Transformando em fórmula a lição de “Memos”. Ou seja: contando o número de caracteres da frase (descontados os espaços entre as palavras), e vendo os números inteiros positivos pelos quais é divisível. “Euevocêumasópessoa”: a frase fica, assim, com 18 caracteres. 18 é divisível por 2, 3, 6 e 9. Como se trata de um poema de amor monogâmico, que envolve duas personagens, escolha-se o número 2. Como resultado, a frase ficará dividida em 9 linhas de 2 letras cada, dispostas, portanto, numa mancha retangular – logo, geométrica – e difícil de ler, dadas a divisão aleatória das palavras e a ausência de espaços entre elas (geometria e dificuldade que facilmente falseiam rigor e inventividade; notar que o e de você não está acentuado, gerando um segundo eu na quarta linha, o que justifica muito pouco, ou nada):

Se esse truque aritmético-geométrico fosse usado exclusivamente em tal poema, não seria um truque, seria uma solução. Porém, trata-se do mesmíssimo procedimento não só usado pela primeira vez em “Memos”, como invariavelmente aplicado, a partir daqui, a distintos – e incontáveis – textos: de fato, trata-se de um truque, de um cacoete, de uma fórmula, de uma fôrma. Ou do exato oposto de rigor, construtivismo, invenção – e economia. Tantos são os poemas assim tratados, que afinal se inserem numa longa série por mim chamada de “aquadradada”, já que suas formas finais, invariavelmente a partir de uma só frase, ficam sempre entre o quadrado e o retângulo.

Página 23 (“Afazer”): “excesso de exser poesia afazer de afasia”. Para azar do autor, tal frase de partida, descontados os espaços entre as palavras, para seguir a fórmula, resultou em 34 caracteres, múltiplos de um número primo, e assim divisíveis só por ele – 17 – e por 2. O resultado seriam longas 17 linhas de 2 letras, ou meras 2 linhas de 17 caracteres, o que não pareceu interessar. Como sair do impasse? Por um dos caminhos mais fáceis, isto é, mantendo arbitrariamente dois e apenas dois dos espaços da frase, que somará assim 36 dígitos, lindamente divisíveis por 6: “excessodeexser poesia afazerdeafasia”.

 

Juntando-se agora o último ingrediente, isto é, o fermento de uma letra rebuscada e “cheia” (para não falar do fundo negro), chega-se à forma final do “bolo”, devidamente quadrada:

Página 79 (“Fiaminghi”): “desafia a cor afia a luz desafia a luz afia a cor desafia a cor afia a”. Descontados os espaços, a frase tem 54 caracteres. O que é igual a 9 x 6:

Aqui, o truque para o “aquadradamento” final não foi uma tipologia kitsch, mas a manipulação dos espaços entre as letras em maiúsculas: pois se trata de um falso quadrado, feito de 6 linhas de 9 elementos:

Há uma incompatibilidade de base entre a linguagem concreta e o poema longo (que não cabe detalhar aqui). Como Augusto de Campos pretendeu, neste caso, escrever um poema longo – pois a ideia é reproduzir a estrutura de um quadro do abstrato geométrico-modular que é Fiaminghi –, repete a frase 8 vezes, ao longo de 6 estrofes-quadrados, apenas a iniciando em lugares diferentes.

Página 99 (“Nãomevendo”): “não me vendo não se venda não se vende”. Sem os espaços, tem-se 30 caracteres, ou 6 x 5:

Desta vez, o quadrado final foi novamente conseguido pela tipologia “gorda”:

O poema parte, como já referido, de uma coincidência das formas verbais: não me vendo, isto é, ver, vender e vendar. Mas, convenhamos, estes homônimos em particular são tão óbvios na língua portuguesa que costumam ser encontrados nos ensaios imperitos dos poetas aprendizes, deliciados com a própria “descoberta”.

Página 101 (“Poesia”): “não é philatelia não é philantropia não é philosophia não é egophilia é somente poesia”. A frase, sem os espaços, soma 72 caracteres, ou 9 x 8. O que explica a esdrúxula opção pela grafia arcaica, com phph no lugar dos ff: pois se grafada com ff, tal frase teria 67 caracteres, um número primo, logo, não divisível em números inteiros. O poeta cansado, para não desperdiçar uma frase (“não é filatelia não é filantropia não é filosofia não é egofilia é somente poesia”), somou-lhe 5 caracteres pelo uso arbitrário da grafia antiga, e conseguiu seus belos e “aquadradados” 72 caracteres:

Mas como, mais uma vez, o autor preferiu aqui o quadrado ao mero retângulo, eis a velha tipologia “gorda” de volta (por que tantas vezes quadrados, e algumas retângulos, é uma questão esotérica demais para minha compreensão):

Ezra Pound, tantas vezes idiossincrático e tantas vezes brilhante (mas cujo apoio a Mussolini não pode ser resumido a mera idiossincrasia – ou à ignorância política ad hoc), diria que a melhor crítica de poesia se faz não pela análise, por mais rigorosa, mas pelo próprio procedimento poético. Sendo Augusto de Campos um notório e radical poundiano, em respeito a isso adotei, paralelamente à análise rigorosa, tal procedimento. Assim, para a prova dos nove – como se ainda fosse necessário – de que se trata apenas de um truque fácil, fiz eu mesmo meu poema “aquadradado”.

Primeiro pensei numa frase: “a terra lavada de sol o rosto lavado de suor”. Depois, achei-a banal demais, e aumentei sua complexidade: “lavra a pá o pó da terra a palavra a terra do pó” (isto é, a condição humana). Tem-se agora duas inversões perfeitas marcando a comparação (lavra pá / palavra;  pó da terra / terra do pó), recorrências sonoras precisas ( / ) e divisibilidade exata (36 caracteres, ou 6 x 6). Mas mesmo a primeira frase já é poeticamente mais significativa do que, por exemplo, “eu e você uma só pessoa”. Portanto, poderia bem ser “tudo bem no ano que vem” (18, divisível por 2 e 9). Enfim, fiquemos com a frase menos banal. Eliminei-lhe os espaços (“lavraapáopódaterraapalavraaterradopó”) e dividi seus 36 caracteres em seis linhas iguais:

Eis meu poema perfeitamente augustiano. Cuja mancha retangular vertical, cortada pelas linhas horizontais das letras, “reconstrói” uma miniatura de um campo arado visto de cima. Pura sorte, já que apliquei uma fórmula, um truque, um cacoete, uma fôrma, a uma frase qualquer.

A fórmula redunda necessariamente em fragmentos de palavras que são, na verdade, ruídos, pois dizem ou não dizem do que diz o poema, logo, se contradizem. Por exemplo, eu poderia explicitar que em meu poema aparecem pão, aterra, pala, ala, ater, ate e ter, além de avra, ra, rado etc., algumas do campo semântico do poema, outras não, algumas com sentido, outras não. Do que se conclui que, quando se juntam letras, formam-se palavras…

Em todo caso, posso agora aquadradar meu poema de vez, escolhendo um tipo mais “cheio”, como em “Nãomevendo”, que pode, ainda, receber um fundo negro, como “Afazer”, ou então usar um tipo “temático”: neste caso, fazendo cada caractere lembrar uma hortaliça vista de cima a certa distância da horta.

Os poemas “aquadradados” de Augusto de Campos comportam ainda uma variação um pouco mais complicada, pois não verdadeiramente complexa (ao se valer dos mesmos mecanismos básicos), que são os poemas em losango, com destaque para “Geraldo” – na verdade, uma composição entre um poema aquadradado e outro em losango. Uma frase de 95 caracteres é dividida em duas, de 63 e 32. A de 63 resulta num retângulo de 7 x 9; a de 32, em um losango em PA (progressão aritmética) de base 2, com linhas de 2, 4, 6, 8, 6, 4 e 2 caracteres (mera variação da divisão simples dos poemas “aquadradados”). O losango é, então, encaixado no retângulo maior.

O segundo truque mais usado em Desposia é o que chamei de “gordura numérica controlada”. Gordura, evidentemente, nada tem a ver com rigor, construtivismo ou economia (ocorre que a obra coligida em Despoesia pouco tem a ver com economia, construtivismo ou rigor). Esse segundo truque é ainda mais fácil, pois não requer sequer a tabuada do nove. Basta escolher uma letra qualquer, e repeti-la para ocupar os espaços entre as palavras. Depois, aumentando a adiposidade do poema, intercala-se uma linha inteira dessa mesma letra entre cada linha do texto.

Comecemos com um exemplo em l, “Inestante” – aliás, uma exceção quanto às linhas extras (p. 29):

O texto é, como sempre, bem simples, segundo convém ao cansaço do autor: “os livros estão de pé na es [tante] / a vida cada vez mais dis [tante] / morrer já não é bas [tante] / escrever é quase tão desgas [tante] / este instante já é outro ins [tante] / os livros estão de pé na es [tante]”. Simples e em versos metrificados: o primeiro tem 9 sílabas métricas, sendo portanto um nonecassílabo; o segundo tem 8, sendo um octossílabo; o terceiro, 7, um popular heptassílabo, ou redondilha maior; o quarto, 10, um decassílabo etc. Aqui o problema reside, então, m travestir, sem muito trabalho, um cansado texto em tradicionais versos rimados num poema vanguardeiro.

O autor optou primeiro por eliminar as sílabas contendo a rima: um poema de “vanguarda” não precisa de rimas (apesar de nem sempre conseguir evitá-las); depois, já que o primeiro verso fala em livros, e como os ll na tipologia escolhida lembram, lado a lado, lombadas de livros, encham-se e preencham-se os espaços entre as palavras com ll, em números variáveis, desde que resultem numa forma final retangular (de novo). Tudo passa a parecer uma estante. Não obstante, uma estante inteiramente ensebada pela gordura do procedimento. Gordura que impregnará internamente vários poemas, e assim, externamente a eles, o próprio livro, por sua repetição.

Exemplo em t, agora com a devida linha extra entre cada verso (“Tvgrama I”, p. 109):

“ah mallarmé / a carne é triste / e ninguém te lê / tudo existe / pra acabar em tv”: aqui, a ideia é que os tt evoquem cruzes num cemitério. Bonito. Mas nada rigoroso, construtivo, inventivo – apesar das aparências – e muito menos econômico.

Exemplo em m (“Cançãonoturnadabaleia”, p. 113):

“a brancura do branco / a negrura do negro / ródtchenko maliévitch / o mar esquece / jonas me conhece /  só ahab não soube / a noite que me coube / alvorece / call me moby”: o texto, menos “cansado” que os da maioria do livro, é por isso mesmo melhor que essa maioria. Pois se trata de um monólogo de uma baleia culta, que ao final se revela a Moby Dick de Hermann Melville.

Primeiramente, para falar de sua solidão em meio à imensa monotonia do mar, ela evoca, visualmente, a alternância da “brancura do branco” (a espuma das ondas, as nuvens no céu) e da “negrura do negro” (o mar e a noite), citando em seguida dois artistas plásticos da vanguarda russa do início do século que adotaram tais procedimentos, Maliévitch (o criador da pintura em branco sobre fundo branco) e Ródtchenko (fotógrafo “abstrato” e artista gráfico que fotografava em preto e branco). Então, explicita a indiferença do mar, que a “esquece”, para depois evocar um nostálgico momento melhor, e ainda por cima bíblico, quando teve a companhia de Jonas (“me conhece”). Segue-se um lamento explícito – apesar de metonímico – pela insensibilidade da perseguição moderna, da pura vontade técnica versus a pura força da natureza, personificada no capitão Ahab, da obra de Melville (“só ahab não soube”). Tudo isso em meio a sofisticadas recorrências sonoras, como entre “maliévitch” e “mar esquece”, ou entre “que me coube” e “call me moby”. Pena que o autor tenha “embelezado” e ocultado gordurosamente esses belos versos numa profusão aleatória de mm que, claro, servem para “aquadradar” o poema e evocar as ondas do mar (principalmente acrescentando a impressão em branco – espuma – sobre fundo negro). Mas o que tal evocação adiposa, repetida ao longo de tantos poemas, tem de rigor, construtivismo, invenção e, principalmente, economia?

Repetindo o procedimento poundiano de crítica prática, cunhei o meu próprio poema “gorduroso”, escolhendo a letra o (em homenagem a Edgar Allan Poe, que escolheu a mesma letra, porém em função de seu som, para embasar a criação de “The raven”). Como um o é redondo como um olho, a palavra tema, escolhida a seguir, foi esta. Sua necessária multiplicação, decorrente do uso da fórmula, me fez pensar numa multidão. Daí, foi rápido.

Primeiro, um texto “seco”, “esperto”, ligeiro, com frases-variações do tema escolhido: “olho a multidão / olhos na multidão / multidão de olhos / em terra de cego”. Depois, foi só encher de oo tanto os espaços entre as palavras quanto uma linha inteira entre cada verso, com o único cuidado de que todos no final tivessem o mesmo número de caracteres, para obter a forma aquadradada:

O número de repetições da “letra-tema”, entre cada palavra, é sempre externo ao texto, apesar de Augusto de Campos se esforçar em distribuí-la com alguma simetria. Neste caso, aproveitando-me do fato de os olhos andarem aos pares, melhorei a arbitragem dessa geometria, com o uso somente de 2 oo ou de seu múltiplo, 4 (na quinta linha, na palavra olhos ladeada à direita por apenas 3 repetições[oolhosooo], a quarta repetição está antes do s). Eis, em todo caso, meu poema “gorduroso-icônico-geométrico”, que também ganhou uma versão em tipologia “especial” e cor idem (“cinza-urbano”), em fundo devidamente negro:

Notar que na última palavra, cego, da frase “em terra de cego”, há a única não-repetição pareada de oo em todo poema, “iconizando” e “presentificando’, assim, o resto elidido do provérbio: “quem tem um olho é rei”.

Além das séries de poemas “aquadrados” e “gordurosos”, também integra Despoesia o famoso poema “Pós-tudo”, alvo de um dos muitos – e muito ruidosos – embates do autor, dessa vez com o ensaísta Roberto Schwarcz (1985). Este apontara no poema, entre outras coisas, sua arrogância e autopropaganda, enquanto Augusto de Campos acusou o crítico de não saber lê-lo. Pois o poema conteria uma salutar dose de autoironia, na possível leitura da palavra ria, ao centro, pela ligação de três caracteres de três linhas distintas, seguindo verticalmente o fim do verbo mudar – a despeito de o conjunto do poema ter uma leitura linear, tradicional. De fato, o problema maior e intransponível de “Pós-tudo” é ser um fraco poema em versos, apesar de (mal) disfarçados por uma tipologia rebuscada e arbitrária, na linha dos piores Stelegramas.

quis
mudar  tudo
mudei  tudo
agorapóstudo
extudo
mudo

Trata-se, incontornavelmente, de um poema constituído de frases. Frases perfeita e simplesmente gramaticais, centradas em dois verbos, querer e mudar, e na primeira pessoa do singular – portanto, não na categoria neutra e substantiva do infinitivo. Tais frases, além disso, se não têm todas a mesma medida (número de sílabas tônicas), mantêm-se na faixa habitual dos versos em português, que historicamente variam do monossílabo ao dodecassílabo. Trata-se, em suma, de um poema em versos livres, centrado na pessoa do poeta, ou seja, no eu lírico. Não por acaso, seu tema é um dos mais tradicionais da poesia lírica: a própria poesia do autor (o chamado poema metalinguístico). Completando sua caracterização como poema lírico, é devidamente rimado (tudo / extudo / mudo).

Sim, há alguns duplos sentidos, depois de tudo, mudo de novo (mudar outra vez, e outra vez emudecer), ou extudo que, sem o hífen, lembra estudo (isto é, penso em mudar de novo) etc., o que não basta para impedir que se trate de versos comuns, além de banais. Ou seja: nada que possa ser modificado por uma tipologia “especial” – ou por uma disposição gráfica mais ou menos arbitrária (quis e agora não fazem parte de verdade de suas duas colunas de paronomásias):

Integra ainda a antologia mais uma variação do ubíquo poema “Bomba” – já aparecido em letra-set, depois em silkscreen, holografia etc., e agora na reprodução impressa de uma animação em computação gráfica… Trata-se de um poema de realização tão complexa quanto impecável, como demonstram, por exemplo, as longas dezesseis páginas a ele dedicadas em Poesia visual – vídeo poesia, de Ricardo Araújo.[12] O único senão é que o poema não se sustenta. Pois explora as recorrências entre os vocábulos poema e bomba (as letras o, m, a, a relação de inversão visual entre p e b etc.), a partir de uma frase de Sartre, “le poème est la seule bombe” (“o poema é a única bomba”), por sua vez derivada de outra metáfora de Mallarmé, de origem política. O ponto fraco de toda a construção é justamente seu alicerce ser uma metáfora-ideia (e não, por exemplo, uma metáfora descritivo-comparativa). Mais exatamente, uma metáfora-opinião. Poemas podem ser “bombas” na opinião de Sartre, assim como livros ser “bombas” na opinião de Mallarmé, mas são apenas opiniões. E o poema explora e esgota as relações dos significantes poema e bomba de uma maneira que só se justificaria caso tais relações traduzissem materialmente relações objetivas de significado. Se isso é verdade, por exemplo, no caso de “Rever”, não o é em “Bomba”. O que o implode numa sofisticada, complexa e trabalhada idiossincrasia, pela qual se constrói um poema-bomba (na disposição centrífuga das letras das duas palavras), com tal aparato visual-estrutural que tudo se passa como se poemas fossem de fato bombas – quando, na verdade, poemas são poemas. Neste sentido, “Bomba” afinal resulta numa completa contrafação – pois se utiliza da linguagem da palavra-coisa dos melhores “Logogramas” e de “Rever” (ou do “Velocidade” de Ronaldo Azeredo) para fabricar o falso rigor de uma relação que, na verdade, é de outra natureza: não episthéme, conhecimento (descrição de uma relação objetiva), mas apenas doxa (opinião). A frase de Sartre não escamoteia seu caráter de metáfora (e opinião) da metáfora original. O poema não faz outra coisa (Augusto de Campos imprime a frase de Sartre e a de Mallarmé como epígrafe, o que nada tem de contraditório com a escamoteação do poema  – que é de linguagem: acontece que, sem tais frases, justamente por se tratar da ilustração de uma opinião, o poema sequer poderia existir).

Não obstante, Despoesia conta, em meio aos seus 41 poemas, com duas grandes criações. Mesmo se numa delas, o belíssimo poema “Coisa” (pp. 106-107), o texto multilíngue e multirrecorrente, feito de fragmentos, citações, nomes e rimas raríssimas, mas ainda assim fluente e sonoro (“this funny thing / coisa acaso i ching / lauzeta little wing / l’olors bernart che move / o sol cala o sol chove / cole dante jimi guido arnaut / em que aur aer air ar talking about / il sole qual a chave / o que for called love / chiamato amore / dói / para que eu trove”), esteja completamente afogado pelo adereço de uma tipologia tão arbitrária quanto kitsch, como seria de esperar.

A outra grande criação de Despoesia é o par “Coração / Cabeça”, exemplo da linguagem concreta aplicada simultaneamente com grande rigor e beleza despojada, “intrínseca”, ao fazer uso de uma sintaxe inteiramente não-gramatical – de caráter funcional-existencial, se se pode dizer assim.

cor(em(come(ça(minha)beça)ça)meu)ação

“Coração” parece pulsar para fora, a partir do centro em (minha), numa sucessão de diástoles marcadas pelos pares de parêntesis, ao mesmo tempo que parece pulsar para dentro, numa sucessão de sístoles marcadas pela “contração” do tamanho das letras, enquanto o texto pode/deve ser lido tanto do centro para fora quanto de fora para o centro, ganhando e perdendo, inversamente, sentido: “minha cabeça começa em meu coração”; “coração em meu começa cabeça minha”.

“Cabeça” é em tudo semelhante, apenas para ser em tudo contrário: “Meu coração não cabe em minha cabeça”; “cabeça em minha não cabe coração meu”.

cabe(em(não(cor(meu)ação)cabe)minha)ça

As dicotomias e ambiguidades entre razão e emoção, o eu e o mundo, o dentro e o fora, o de dentro para fora e o de fora para dentro, os pensamentos que se expandem e os sentidos que se introjetam, o coração que pulsa e a cabeça que ecoa, estão contemplados, integrados e sintetizados nesse par de poemas feito das palavras mais simples e da estrutura mais complexa (tanto internamente quanto nas inversões dos elementos do par). Ao lado de “Cidade”, da primeira fase do concretismo, e de “Memos”, este é, com certeza, o mais forte candidato a ocupar uma das posições mais altas na obra de Augusto de Campos.

A lamentar, apenas, o vezo ou vício “visualista” que não consegue se conter, e aqui traveste a simples e limpa beleza semântico-estrutural do poema com uma enorme carga de tipologia e cor que nada lhe acrescenta, mas quase tudo compromete: além da clareza e da leitura franca, também a simplicidade e a beleza, quase afogadas. É como se o autor não confiasse no poema e em sua estrutura/sintaxe poética, tendo de vesti-los, revesti-los, travesti-los de “poesia visual” com elementos que, por adventícios, verdadeiros penduricalhos gráficos, resultam no recorrente kitsch que marca indelevelmente sua obra.

Kitsch também fortemente presente nas dezesseis “intraduções” que completam a antologia. “Intraduções” são aquelas traduções de próprio punho que Augusto de Campos igualmente compromete pelo afã “visualista”. Assim, uma estrofe de “O corvo” de Poe ganha um “vanguardista” travestimento em computação gráfica, com letras em “profundidade” e fundo negro. Afinal, trata-se de um corvo… Mesmo se, para poder distribuir o texto no formato que aqui interessa ao “intradutor”, sacrifiquem-se a estudada métrica e o incomum ritmo do original – que associados à sua intrincada estrutura rímica e à concepção do conjunto, tornaram-no um clássico moderno. E ainda que afinal se trate apenas de uma ociosa “ilustração” tipológica do peso sombrio da cena (executável com apenas um comando por qualquer um que conheça a função “extrusão” de programas gráficos):

Augusto de Campos, além de orgulhosamente explicitar, na orelha da primeira edição de Despoesia, o pequeno número de seus poemas (então) recentes, também tenta insistentemente, página sim outra não, redecretar a morte da poesia – pois com ela morta e enterrada, fica o poeta cansado dispensado de mais trabalho: “um som que não soa” (p. 17), “poesia, afazer de afasia” (p. 23), “quanto mais / poeta menos / dizer” (p. 25), “escrever é quase tão desgas [tante]” (p. 29), “poetas / chega de poesia” (p. 31), “agora pós tudo / […] / mudo” (p. 35), “agora que cansei [de poesia]” (p. 105), “renuncia à doce idiotia da poesia” (p. 131). A pergunta inevitável que fica é: não seria então mais indicada a digna aposentadoria do silêncio?

As publicações subsequentes a Despoesia tornam, portanto, parte importante de seu discurso apenas isso, discurso. Ao mesmo tempo, em termos propriamente poéticos, nada acrescentam a uma linguagem já consolidada (como se não bastasse, muito da atividade poética de Augusto de Campos se concentra hoje em refazer velhos poemas com novos recursos – indicando a insuficiência das versões anteriores ou enfraquecendo o que já estava pronto).

A criação mais recente dada a público pelo autor, na verdade, não apenas confirma e reforça o quadro geral da obra, como também indica uma piora ou intensificação do uso leviano de recursos digitais e estéticos, resultando em um kitsch ainda mais indefensável. Trata-se, segundo o próprio autor, de

Uma homenagem ao grande poeta barroco, D. Luis de Góngora y Argote (1561-1627) para celebrar os 450 anos de seu nascimento. O texto é a tradução da Estrofe XXIV do seu poema Polifemo y Galateia.[13]

Mas se se trata de uma tradução – ou de uma “intradução”… –, resta explicar por que seu texto, fazendo uso dos recursos mais óbvios e batidos da computação gráfica (hoje usados até em folhetos de comida delivery), além de estar em amarelo, foi colocado sobre uma esfera azul e esta, sobre um quadrado magenta, formando um conjunto medonho. Teria algo a ver com a imagem de uma salamandra sobre uma pedra, como o texto “arredondado” sobre a esfera azul? E seria esta uma evocação da esfericidade do sol, também citado? Não sei, nem me interessa, pois duvido que possa existir qualquer argumento realmente sólido para justificar isto:


.

Tampouco se pode justificar o próprio texto da tradução, em um português impossível. Sim, Góngora era barroco, nem por isso ilegível.

Em conclusão, há em Augusto de Campos muito mais aparência de rigor do que rigor real – que, no entanto, também existe (assim como existem e coexistem o máximo do kitsch com grande beleza gráfica). A aparência de rigor não seria tão ruim, ou mesmo ruim em si, ou a priori, não fossem a exigência e a pretensão do próprio Augusto de Campos. É ele, portanto, bem vistas as coisas, seu crítico mais irredimível. Ao mesmo tempo, é também ele que transforma assim grande parte de seus poemas em contrafações de um rigor apenas pretendido. Sua obra respiraria melhor livre de seu discurso. Pois então seus poemas aparentemente tipológicos, assim como seus poemas forçadamente aquadradados, que perfazem grande parte dela, poderiam ser lidos e julgados pelo que são, exemplos da linguagem ou do estilo de um autor. Se devem, porém, ser lidos, analisados e julgados sob a lente impiedosa do máximo rigor construtivista, como pretende o próprio Augusto de Campos, como regra não logram, infelizmente, sobreviver ao teste. (27 de fevereiro de 2012)


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Notas

[1] Segundo o site do autor, na seção “obras” (http://www2.uol.com.br/augustodecampos/obras.htm), consultado em janeiro de 2012, após Despoesia, suas edições são, na verdade, reedições: Poesia é risco (“antologia poético­-musical, de o Rei menos o reino a Despoemas, em colaboração com Cid Campos, Rio de Janeiro, Polygram, 1995”); Clip-poemas, (“16 poemas-animados digitais – exposição Arte Suporte Computador, São Paulo, Casa das Rosas, 1997”); Anthologie – despoesia (“préface et traduction de Jacques Donguy, Romaville, France, Al Dante, 2002”); Não (“com cd-rom clip-poemas, São Paulo, Perspectiva, 2003”).

[2] São Paulo, Duas Cidades, 1979. Das obras do período, ficariam de fora apenas os poemas-objeto Poemóbiles e Caixa preta, em parceria com Júlio Plaza.

[3] Teoria da poesia concreta, São Paulo, Duas Cidades, 1975, p. 43.

[4] Idem, p. 73.

[5] M. Helena de Moura Neves, A vertente grega da gramática tradicional, São Paulo, Hucitec, 1987, p. 39.

[6] Décio Pignatari, A situação atual da poesia no Brasil (tese apresentada ao II Congresso de Crítica e História Literária, Assis, São Paulo, 1961), in Poesia concreta – literatura comentada, São Paulo, Abril, 1982, s. n. p.

[8] Caminho, Rio de Janeiro, Berlendis & Vertecchia, 1979, p. 202.

[9] “Poesia semiótica: design de signos ou chave léxica?”, em Poética e visualidade – uma trajetória da poesia brasileira contemporânea, Campinas, Unicamp, 1991, p. 80.

[10] Primitipo, São Paulo, Massao Ohno, 1982, s. n. p.

[11] São Paulo, Perspectiva, 1994.

[12] São Paulo, Perspectiva, 1999, pp. 37-53.

[13] “‘Intradução: Salamandra de Gôngora’, por Augusto de Campos, em 03/01/2012”, http://www.musarara.com.br/intraducao-salamandra-de-gongora.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).