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GERTRUDE STEIN: UM FRACASSO MODERNO

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A arte moderna tem por objeto ela mesma. O que já se insinua em Van Gogh, com suas pinceladas visíveis como pinceladas. Se saltamos de Van Gogh a Mondrian, de pinceladas que não mais escondem sua natureza de pinceladas, mas ainda se agrupam de forma a imitar objetos reais, como casas, pessoas, árvores, chega-se a manchas de cor que são apenas manchas de cor, quadrados que são apenas quadrados, linhas que são apenas linhas. Antes de Van Gogh e Mondrian há, naturalmente, Cézanne, a composição da composição, o referente não como objeto, mas como sujeito. O objeto é a própria obra. Não se trata de arte sobre a arte, ou seja, de metalinguagem, ou da “arte pela arte” do esteticismo. Trata-se da arte para a arte. Numa palavra, autonomia. Autos-nómos: lei própria. A arte como ciência (pragmática) da estética. A arte como conhecimento da arte.

Entre vários começos, isso se inicia com Poe (uma geração anterior a Cézanne) e o par O corvo / A filosofia da composição. O poema mais “romântico” da história é o menos romântico da literatura. Pois fruto, não da alma sensível do poeta, mas do controle das variáveis do poema. Sua construção começa pela escolha da letra o, por ser a mais grave, não pela gravidade da dor do personagem enlutado. E foi num jogo construtivo de círculos concêntricos a partir do o que Poe chegaria a todas as demais variáveis do poema, formais (poéticas), semânticas e narrativas (o corvo foi primeiro pensado como um papagaio, pois ele precisava de um ser falante – a fim de realizar para o personagem a gravidade sonora do o, que levou à gravidade ominosa da palavra nevermore –, sem poder, porém, introduzir outra pessoa, para sustentar a programada solidão extrema da cena). As famosas notas de Eliot a The waste land tem natureza equivalente, assim como as teorizações das várias vanguardas, chegando, no caso brasileiro, ao discurso sistemático de Cabral sobre sua obra, condensado no neologismo “antilirismo”. Se o poema de Poe fosse lido ingenuamente, seria lido erradamente. Se a arte das vanguardas não fosse discutida, descrita e afirmada, seria incompreensível, além de inaceitável (a autonomia moderna da arte nasce, de forma apenas aparentemente paradoxal, vinculada à necessidade de sua análise, vale dizer, de sua crítica).

A arte como ciência e consciência da arte deriva, por sua vez, da arte como des-ilusão. Todo artista sempre soube que arte é artefato. Da Vinci, século XV: “A pintura é coisa mental”. E treino manual e técnico, a ser praticado nos ateliês de artes e ofícios. Técnica que, até o século XIX, esteve porém a serviço da imitação da realidade, logo, da ilusão figurativa (ou narrativa). O Inocêncio X de Velásquez é o retrato de Inocêncio X. O Inocêncio X de Francis Bacon é o retrato do Inocêncio X de Velásquez. Quando Poe escreve um perfeito poema romântico, ele o faz para demonstrar não se tratar de um perfeito poema romântico. A arte moderna é a arte da perda da possibilidade de ingenuidade. After such knowledge, what forgiviness?

Gertrude Stein talvez tenha sido a mais lúcida pensadora da arte moderna entre os autores de prosa de ficção. Basta ler as poucas passagens referidas por Flora Süssekind no conciso e igualmente lúcido ensaio incluído como posfácio à recente reedição dos contos de Três vidas (SP, Cosacnaify, 2008, 241 pp., tradução Vanessa Bárbara; a [bela] edição conta, ainda, com uma bibliografia comentada de Süssekind – “Sugestões de leitura” – e com um apêndice, trazendo fragmentos do segundo conto, Melanctha, já traduzido integralmente no corpo do volume, agora em versão de Caetano Veloso, o que pouco lhe acrescenta). Stein sabia, talvez mais ou melhor do que qualquer outro prosador moderno, das demandas impostas por uma arte verbal des-iludida. O problema, porém, é que nem todas as demandas podem ser satisfatoriamente satisfeitas.

Gertrude Stein é uma artista moderna que não segue exatamente o caminho inaugurado por Poe. Ela teoriza, é verdade, em textos e entrevistas. Mas, principalmente, incorpora ou tenta incorporar a des-ilusão da arte moderna à própria linguagem. Fazer isso na pintura tem um caminho evidente (ao menos depois de feito…): desfazer o ilusionismo tridimensional da perspectiva imposto à bidimensionalidade da tela, e em seguida desfazer o próprio figurativismo. Abstracionismo via cubismo. O problema que se coloca para a linguagem verbal é, porém, diferente. E maior.

Três vidas equivalem, na obra de Stein, aos Dublinenses de Joyce, sua verdadeira obra inaugural (1909). Mas enquanto Joyce parte de Ibsen, Stein parte de Flaubert, aquele dos Três contos. O que importa aqui não é, porém, o fato de se tratar igualmente de três narrativas curtas, ou de as narrativas de Stein tomarem claramente como modelo um dos contos de Flaubert, Félicité, ou seja, a descrição da vida e da pessoa de uma criada. O que importa é a aguda percepção lingüística de Stein sobre as questões construtivas da prosa. É surpreendente, dada a anemia conceitual dos autores contemporâneos sobre sua própria arte (e talvez apenas neste sentido eles sejam, de fato, pós-modernos…), ler uma escritora discutindo as respectivas naturezas, as necessárias relações e os possíveis usos da frase vis à vis o parágrafo. Mas não é surpreendente, dada a lição moderna inaugural de Poe.

A busca de Stein pela prosa moderna, ou pela modernidade da prosa, iniciada em Três vidas, teria seu resultado mais notório, não sem pertinência, em uma frase isolada.

 

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Gertrude Stein é conhecida por uma biografia extensa e uma frase curta. De fato, ela foi uma das mulheres certas na hora certa no lugar certo (um dos norte-americanos que fizeram a ponte entre os EUA e a Europa no início do século XX, ajudando a dar forma e peso às revoluções estéticas da época, e cuja lista vai da editora Sylvia Beach a poetas como Pound e Eliot), fazendo com que sua biografia sozinha pudesse justificar o interesse por seu nome. Mas ainda há a frase.

A rose is a rose is a rose”. Sua frase é justamente famosa porque sintetiza toda a modernidade. É o “to be or not to be” do século XX. Ela é aparentada, por exemplo, à reiterante pedra drummondiana, e também à afirmativa e intransitiva “flor é a palavra flor” de Cabral. Trata-se, nos níveis sintático e semântico (a frase de Stein o realiza em ambos) de afirmar a autonomia do verbo.

Se na Antiguidade o verbo era demiúrgico, ligado a Deus na tradição judaico-cristã e às musas na tradição grega, na modernidade o verbo é, muito ao contrário, uma das marcas da impotência humana. Fim da metafísica, fim do positivismo, fim da física clássica, fim dos grandes conceitos, fim da crença no poder elucidador da linguagem. O princípio da incerteza de Heisenberg e o fim das certezas de Wittgenstein se unem para tornar a linguagem intranscendente.

Logo, para adequá-la à autonomia materialista e anti-ilusória da arte moderna. Daí a frase de Stein não ser um lamento. Pois ela é, isto sim, o equivalente verbal do abstracionismo geométrico de Mondrian (culminância, por sua vez, do caminho aberto pelo cubismo de problematizar a perspectiva renascentista e, por fim, o próprio figurativismo): um quadrado amarelo é um quadrado amarelo é um quadrado amarelo, não uma parte do vitral de uma janela (como seria, por exemplo, em Veermer).

Mas enquanto a pintura é por natureza assemântica, feita de manchas informes e intransitivas de tinta, que precisam portanto ser organizadas para mimetizar um referente, a palavra é por natureza semântica. Ou seja: como escrever uma palavra sem referir algo externo a ela? Casa. Teresa. Eu. Sonhar. E se não se pode escrever sem apontar, no próprio ato de fazê-lo, para algo que não é o texto, como escrever um texto que seja apenas texto e não representação (ou ilusão de representação)? Como realizar a ciência da arte com a linguagem verbal? Principalmente com a mais referencial das linguagens verbais, a prosa?

A palavra significa a priori, ou em estado de dicionário. No caso de Mondrian ou Pollock, trata-se de não realizar a ilusão figurativa, deixando à tinta a condição de tinta, de cor. No caso de Stein, porém, trata-se não apenas de tentar desrealizar a “figuratividade” apriorística das palavras, mas também a ilusão dessa “figuratividade” apriorística. Seria apenas difícil, não fosse afinal impossível.

A linguagem é, modernamente, impotente para dar a ver qualquer realidade que não a da própria linguagem (Gadamer via Wittgenstein: “O ser que pode ser compreendido é linguagem”).[1] Em relação ao mundo, às coisas do mundo, tudo o que se pode fazer (máxima possibilidade além do calar de Wittgenstein e do silêncio de Beckett) é então nomear. Uma rosa é uma rosa é uma rosa não porque uma rosa seja de fato uma rosa (ela é uma rosa apenas para quem a vê assim: para um inseto, por exemplo, é comida), mas porque reiterar o nome dado a uma parte o mundo é tudo que se pode fazer depois de nomear uma parte do mundo, se se quiser dizer algo realmente pertinente sobre isso. O resto é opinião, como diria Nietzsche.

The sentence “Rose is a rose is a rose is a rose.” was written by Gertrude Stein as part of the 1913 poem Sacred Emily, which appeared in the 1922 book Geography and Plays. In that poem, the first “Rose” is the name of a person. Stein later used variations on the sentence in other writings, and “A rose is a rose is a rose” is probably her most famous quote, often interpreted as meaning “things are what they are.” In Stein’s view, the sentence expresses the fact that simply using the name of a thing already invokes the imagery and emotions associated with it. As the quote diffused through her own writing, and the culture at large, Stein once remarked “Now listen! I’m no fool. I know that in daily life we don’t go around saying ‘is a … is a … is a …’ Yes, I’m no fool; but I think that in that line the rose is red for the first time in English poetry for a hundred years”.[2]

“Nessa frase a rosa é vermelha pela primeira vez na poesia inglesa em centenas de anos”. De fato. Mas o sucesso, nos dois sentidos, da frase indica o fracasso do projeto de Stein. Pois se trata, na verdade, de um verso. Stein, porém, não pretendia enfrentar a modernidade da poesia, e sim da prosa.

 

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Quando dizemos poesia, dizemos poesia lírica. A poesia narrativa, isto é, a épica, foi simplesmente abandonada, não por acaso no início da Idade Moderna (o último grande poema épico em qualquer língua é Os Lusíadas, do século XVI). A função narrativa passa, então, a ser exercida pelo romance.

A relação entre a épica e o romance equivale à relação entre a tragédia e o drama – e ajuda a explicar o fim da épica e a paralela ascensão do romance (o primeiro romance, Dom Quixote, é assim contemporâneo, na mesma segunda metade do século XVI, do último poema épico; para reforçar a substituição, ambos acontecem no mesmo lugar, a Península Ibérica).

Romance é drama, épica é tragédia – na verdade, a tragédia é épica, no sentido de o teatro grego ser posterior à poesia, e tematizá-la. Em todo caso, se não existe mais a épica, tampouco existe mais a tragédia. Não que não haja mais grandes dramas no mundo. Tragédias, porém, não são grandes dramas.

Tragédias são situações em que o herói luta contra o destino adverso. Ocorre que o destino, tragicamente, torna-se ainda mais adverso pela própria luta do herói. Se numa narrativa não-trágica ainda há heróis, eles são, porém, heróis circunstanciais. Pois lutam, não contra esse destino cuja natureza é fazer o herói, inescapavelmente, lutar contra si próprio, e assim ser sempre derrotado, pois esse era, afinal, seu destino (daí ser trágico): mas, então, apenas contra circunstâncias adversas.

O fim da épica e da tragédia e sua substituição pelo romance e o drama marcam a culminância do longo processo histórico de introspecção e de individualização (e de introspecção porque de individualização) do homem ocidental, iniciado pelos próprios gregos (na comédia, contraponto da tragédia, e na lírica, contraponto da épica), intensificada pelos romanos (compare-se o Agamêmnon de Sêneca com a tragédia homônima de Ésquilo) e levada à sua máxima realização pela modernidade (daí o derradeiro grande herói trágico da literatura, Hamlet, ser também o primeiro grande herói moderno: um personagem trágico que parece ter lido Freud; na verdade, foi Freud que leu a modernidade introspectiva de Hamlet).

O abandono da épica e da tragédia leva, enfim, à ascensão do romance e do drama. Narrativa não-trágica, o romance é, na verdade, drama, ou seja, ação (no sentido etimológico grego). Descrição de fatos e feitos, de pessoas (palavra que tem a mesma origem de personagem, persona) e suas circunstâncias (parafraseando Ortega y Gasset: “o homem é o homem e suas circunstâncias”; ao menos, assim é o homem moderno).

Se a prosa de ficção é, então, a mais referencial das linguagens verbais, como torná-la autônoma, separada do referente, abstrata (do latim abstrahere, separar)?

O fracasso de Stein começa já em Três vidas. Não por não serem contos bem construídos e escritos. Eles o são até em demasia. Ou seja, na capacidade realista, ou século-dezenovista, de reconstruir personagens verossímeis, convincentes e consistentes de uma classe social distinta daquela da autora, com destaque para a Anna de A boa Anna (pp. 10-79). Mas Flaubert já o fizera em Félicité. E não era absolutamente o que Stein queria, ou seja, simplesmente imitá-lo (isto caberia a – muitos – outros escritores). Stein queria algo que Flaubert não quis, a narrativa que narra mas não narra, que ilude mas des-ilude, que refere mas é autônoma. Em Três vidas, o resultado é um certo hibridismo.

Em primeiro lugar, há essa prosa flaubertiana, pois consciente, já em Flaubert (contemporâneo de Cézanne), da necessidade de isolar, de fragmentar, de autonomizar a frase do parágrafo. “Uma frase que levanta pesados blocos de matéria”, nas palavras de Proust, e que em Stein se fragmenta ainda mais:

Melanctha Herbert buscava paz e tranqüilidade, mas encontrava apenas novos problemas.
[…]
Ele só aparecia de vez em quando para visitá-la.
Já fazia muitos anos que Melanctha não tinha notícias dele.
[…]
Melanctha não gostava dos pais, que de fato a consideram um verdadeiro incômodo. (p. 75)

Em segundo lugar, a isso se acrescem frases repetidas ou reiteradas (a reiteração – forma evidente de autonomização de uma frase – será uma das maiores constantes da literatura moderna, presente de modos variados em Joyce, Eliot, Cabral, entre tantos outros); em terceiro lugar, há um adjetivismo propriamente steiniano, que pretende suspender a narrativa, a ação e a descrição, pela presentificação do retrato, da apresentação: “Cuidou de Rose e foi paciente, submissa, apaziguadora e incansável” (p. 71); “Rose Johnson era uma preta legítima, muito alta, rabugenta, burra, infantil e bela” (p. 72); “Melanctha Herbert era uma mulata clara, elegante, esperta e atraente” (p. 72).

Em complemento à discussão do parágrafo versus a frase, Stein de fato discute a narrativa versus o retrato, e o passado versus o presente, visando a autonomia anti-ilusionista da arte moderna.

[As] observações que norteiam o comentário [de Stein] a respeito de Picasso funcionam igualmente como uma espécie de exposição sintética de alguns aspectos de seu método particular de escrita – a ênfase na simplicidade e nas linhas que, em Picasso, Braque, Masson, vêm e vão, misturam-se, desenvolvem-se e se destroem; a compreensão de que “uma coisa sem progresso é mais esplêndida que uma coisa que progride”, o que dimensionaria, igualmente, uma escrita baseada na insistência, na permutabilidade, no “beginning again”, na conjugação da noção de paisagem à de composição em movimento, à de um presente contínuo; e o elogia do século XX porque nele, na sua opinião, as coisas se viram destruídas como nunca antes, “tudo quebra”, “nada continua”, “tudo se isola”.[3]

Menos a própria linguagem verbal. O fracasso de Stein, talvez a melhor e mais sistemática tentativa nesse sentido, aponta então para uma aporia.

Ou várias. Em primeiro lugar, nem todas as linguagens são modernizáveis do mesmo modo (assim, falar no “cubismo” da prosa de Stein é uma impropriedade). Em segundo lugar, nem todas as linguagens são afinal modernizáveis, a depender do que se entenda por modernidade.

Aqui é preciso, então, afinar a afirmação inicial. A arte modernista tem por objeto ela mesma. Neste caso, há afinal uma lição de limitação e outra de permanência.

Pois a prosa de ficção é, de certa forma, a mais moderna das linguagens verbais, ao ser a primeira. Qual o grande contista grego? O maior romancista romano? Não há contistas gregos ou romancistas romanos porque a prosa de ficção não existia na Antiguidade. Ou na Idade Média (em que romance se refere a um tipo de poema narrativo):

Com o Decameron [século XIV], pela primeira vez na história das línguas novas derivadas do latim aparece a prosa literária. Construindo parágrafos longos e complicados, Boccaccio queria visivelmente imitar seus queridos autores latinos, sobretudo Cícero.[4]

Por um lado, em termos históricos, ao nascer com a modernidade, a prosa de ficção, ao contrário, por exemplo, da poesia lírica, já presente na literatura grega desde Arquíloco (século VII a. C.), cumpre uma função, o aggiornamento da própria função narrativa (que os vários povos e os vários tempos realizam de forma diferente, mas sempre realizam, do mito de origem em volta da fogueira à própria tragédia grega), o que explicaria sua perenidade. Philip Roth, talvez o mais importante romancista contemporâneo, não está muito longe na forma de Cervantes. Ao menos, está muito menos distante na forma do que está distante no tempo. Por outro lado, em termos lingüísticos, a linguagem verbal é por natureza referencial, logo, não-autonomizante, apesar mesmo do que tenha tal referencialidade de ilusória, a acreditar nos wittgensteinianos. O resultado é a permanência irredutível da ilusão figurativa na linguagem verbal, ao lado da permanência moderna da prosa de ficção.

 

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Haroldo de Campos enfrentou o problema sem na verdade enfrentá-lo, nas Galáxias. Pois a sua “prosa do significante” (logo, não do significado, ou da referência) não comporta uma verdadeira narrativa. Tampouco se constitui numa verdadeira poética (pois, em meus próprios termos, possui um dos elementos definidores da linguagem poética, a recursividade, mas não o segundo, a discrição – muito menos a interdeterminação de uma pela outra). Nem prosa de ficção, pois a reiteração dos significantes se dá à custa da narratividade, nem “prosa poética”, pois apenas parcialmente poética: enfim, prosa poetizada. Do ponto de vista de Stein, a mera poetização da prosa (caminho aberto por Joyce no Finnegans Wake) não pode ser uma solução, pois a materialidade lingüística adquirida se realiza ao preço da perda da narratividade. Daí Finnegans Wake ser menos romance do que Ulisses. Daí, afinal, porque Ulisses é muito mais influente no romance posterior: é como se os romancistas não pudessem reconhecer, no Finnegans Wake, um desenvolvimento de sua arte, como o é inquestionavelmente Ulisses, mas algo que está além ou fora do campo dessa arte. Algo semelhante se deu depois do cubismo e do abstracionismo, com o retour a l’ordre proposto pelo próprio Picasso. Neste sentido, o equivalente ao Finnegans Wake é a obra de Duchamp. Com a diferença de que Duchamp, ao contrário do próprio Finnegans Wake, entrou afinal para a corrente principal das artes plásticas, via arte conceitual (Duchamp repetido como farsa) – o que afinal explicaria grandemente a grande confusão das artes plásticas contemporâneas, que parecem poder adquirir relevância e sentido, tanto estéticos quanto sociais, apenas ou principalmente através de sua inserção mercadológica. Mas isto é outra (apesar de a mesma) história.

Stein jamais resolveria satisfatoriamente a questão. Há, porém, modos e modos de não se responder a uma pergunta. Há, por exemplo, o modo daquele que sequer faz a pergunta; o daquele que a faz, mas nada responde; o daquele que a faz e a responde, mas apenas aparentemente de forma pertinente; ou o modo do cientista que não pode comprovar sua resposta, porque consegue demonstrar tratar-se de uma resposta falsa. Ao provar que sua resposta é falsa (coisa bem diferente de afirmar que a resposta falsa é verdadeira, como Lamarck), ele mapeia a realidade. Se ainda não se sabe como tal coisa é, já se sabe melhor como não é. E saber consistentemente como não é ou não pode ser alguma coisa é um forma de conhecê-la. Gertrude Stein, afinal – ainda que não do modo que acreditava ou pretendia tê-lo feito – fez, talvez, a melhor ciência possível da arte narrativa contemporânea. A ciência de um fracasso. Ciência, também, de uma irredutível permanência (malgrado ela mesma). A permanência da referência narrativa, contra a busca pela autonomia utópica do modernismo, e contra a condenação à autonomia autista do relativismo.

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[1] Contra os wittgensteinianos, porém, a filosofia analítica mantém firme o desafio de afirmar a representatividade da linguagem através da ciência: “Há muitos filósofos analíticos de envergadura, em particular seguidores de Kripke, como David Lewis e Frank Jackson, que […] acreditam que a ciência natural nos dá essências e necessidades: que são, como dizem, de re [da coisa] e não de dicto [do discurso]. […] Essa disputa para saber se a ciência natural é especial hoje domina a filosofia analítica.” (Richard Rorty, “Gadamer e sua utopia”, in www.groups.yahoo.com/group/unesp2000/message/464?source1).

[2] Mina Loy, “Gertrude Stein”, in www2.english.uiuc.edu/finnegan/English%20256/gertrude_stein.htm.

[3] Flora Süssekind, “Sugestões de leitura”, p. 236.

[4] Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai, “Do Decameron de Giovanni Boccaccio”, in Mar de histórias — antologia do conto mundial: das origens à Idade Média, RJ, Nova fronteira, 1980, p. 198.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).