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Hélio Oiticica – Um escritor em seu labirinto

1. Trabalhar com a obra de Hélio Oiticica é entrar em um labirinto. Esse já gasto lugar-comum para tratar seu trabalho e sua trajetória ainda se impõe como a principal forma de compreender os incontáveis meandros e quebradas de sua vasta produção.

Foi a forma escolhida por ele próprio para construir e definir sua obra e sua vida, anunciando a busca pelo grande labirinto desde o começo de sua trajetória. Em pouco mais de trinta anos de produção, pintura, escultura, instalações, performances, cinema, música popular, cenografia, jornalismo e literatura fizeram parte de seu universo criativo, trazendo em suas propostas e expressões o dado do labirinto como mote e mito. Labirintospovoaram sua linguagem, seus interesses e sua biografia, deixando para qualquer interessado diversas portas de entrada e saída. Nesse breve artigo, nossa entrada e recorte será o escritor Hélio Oiticica.

2. Oiticica foi um incansável produtor de textos. Textos dos mais diversos tipos, relativos aos mais diversos temas, com ou sem interlocutores explícitos. Eles foram escritos ao longo de praticamente toda a sua carreira, marcando um dos principais traços do seu trabalho: a relação intrínseca entre obra, vida e memória. Além de sua obra plástica, Oiticica construiu uma trajetória em que suas vivências e experiências pessoais transbordavam para o cerne de suas preocupações artísticas e intelectuais. Em julho de 1964, ano em que sua carreira tomou o atalho das ladeiras da Mangueira, ele afirma no texto “Poética secreta” que seus escritos se localizavam no polo oposto de seu trabalho plástico. Enquanto naquela época a busca de seus primeiros Bólides, Núcleos e Penetráveis era justamente se descolar do dia a dia, ficando “acima” do efêmero e dos eventos passageiros ancorados no cotidiano, na “poética secreta” de seus cadernos era justamente essa vivência “mesquinha” que deveria ser eternizada. Nesse mesmo texto, completava suas afirmações sobre a escrita reconhecendo que não era poeta, mas que “uma imperiosa necessidade me leva à expressão verbal” (Oiticica, 1964).

A experiência na arte e principalmente no mundo era um tema de ação e reflexão constante para Oiticica, definindo seus princípios éticos e suas preferências estéticas. Sua filiação aos postulados construtivistas e a participação no movimento neoconcreto no fim dos anos 1950, sua subida transformadora à Mangueira em 1964, seu contato com as drogas, sua opção pelo homossexualismo, sua permanência de quase dez anos em Nova York durante a década de 1970, sua relação conflituosa com o mercado e a crítica das artes plásticas e outros elementos ligados às suas escolhas pessoais eram trabalhados visceralmente em sua obra. A incorporação sistemática dessas experiências nos trabalhos realizados nos mostra um artista que viveu no limite da tensa relação entre arte e vida.

Os textos de Oiticica são resultado de uma prática corrente em sua trajetória artística, em que cada obra era acompanhada de uma intensa produção textual autorreflexiva desde os seus mais tenros anos. Os trabalhos realizados (ou não realizados, porém projetados) eram produzidos simultaneamente à sua reflexão teórica escrita. Um dos principais conhecedores e estudiosos de sua própria obra (talvez o maior), Oiticica constituiu de forma metódica e solitária o maior acervo documental sobre seu trabalho. Ele, como outros da sua geração, manteve a crença na autoexplicação e através da prática do arquivo pessoal investiu na fabricação de sua própria posteridade. Com essa estratégia, reproduzia um pensamento de Glauber Rocha, um dos seus interlocutores mais instigantes ao longo da vida, que, segundo Rogério Duarte (parceiro de ambos), afirmava: “Inventaria-te antes que os outros te transformem num mal-entendido” (Duarte, 2003: 13). A perspectiva do arquivo enquanto uma forma de depositário da “verdade” sobre a vida e a trajetória intelectual de alguém foi levada a cabo por Oiticica de forma rigorosa. É o arquivo não só como lugar de memória, mas também como local de autoridade sobre os usos dessa memória.

Sobre os escritos relacionados aos seus trabalhos artísticos e de seus pares, já bastante difundidos, percebe-se em sua maior parte que, a partir de uma variedade de textos explicativos, verdadeiros guias com “instruções de uso”, o interlocutor em evidência é alguém claramente interessado em seu processo criativo. Ao lado dos textos técnicos, que tratam especificamente das trajetórias de concepção e realização das obras, encontram-se reflexões teóricas sobre os aspectos formais e estéticos de seu trabalho e de terceiros. Para ficarmos em alguns dos mais conhecidos escritos desse tipo, podemos citar os textos “Metaesquemas”, de 1957-58, “Cor, Tempo e Estrutura”, de 1960, “Anotações sobre o parangolé”, de 1964, “Esquema geral da novaobjetividade”, de 1966, e“O aparecimento do suprassensorial”, de 1968.[1]

Além dos artigos e ensaios em que se dedicava ao seu processo de criação e às consequências de suas obras, Oiticica também escreveu outros textos que se inseriam em outro(s) tipo(s) de registro(s). Esses textos não versam sobre críticas de arte nem são manifestos ou propostas de trabalho. Na própria classificação do autor, são textos práticos em que o processo de escrita sai da esfera do teórico da arte e aporta no espaço arriscado do ficcional. Contos, poemas, memórias, crônicas e outras formas híbridas são alguns dos escritos que Oiticica produz incessantemente ao lado de seus estudos e reflexões acerca do campo da arte e da cultura mundial de seu tempo. Aqui, novamente, a metáfora do labirinto se apresenta em sua obra. Ele escrevia em cadernos e mais cadernos de notas e textos fragmentários, batia à máquina relatos urgentes e desordenados, criava neologismos em diferentes línguas e registrava ideias embrionárias em todas as direções, gerando um mosaico de estilos e referências, de temas e influências. Viveu permanentemente fazendo cópias datilografadas na máquina de escrever, criando pastas, formatando e revisando esses textos, documentando, selecionando e guardando originais, em um processo autodevorador no qual “[…] tudo que ele escreve é, portanto, integrante do corpus de sua obra. Seu arquivo é inseparável dela” (Figueiredo, 2002).

Em um levantamento inicial desses textos práticos, destacam-se alguns fundamentais como o já citado “Poética secreta”(1964), “Auto I”(1969), sua série de contos (1969), “Londocumento” (1969), “Futesambol(ão)”(1970), “Barnibilônia” (1971), “Homage to my father”(1971), poemas como “Acqua”(1968), “Margintropicália”(1968), “Abbey Road”(1970), “Orelinha” (1970) e “Úbber Coca”(1972), hipertextos jornalístico-poéticos como “Lamber a gilete”(1972), “Leork” (1972), “Clouds in my coffee”(1973), “Bodywise” (1973), além de muitos sem título e de diversas cartas e artigos para Torquato Neto, Daniel Más, Waly Salomão, Haroldo de Campos, Carlos Vergara e Lygia Clark, entre outros.

Essa relação de Oiticica com o universo da literatura e da poesia – da leitura e da escrita em geral – sempre foi intensa. Neto de um gramático e precursor do anarquismo no Brasil – José Oiticica – e filho de um cientista entomólogo e fotógrafo de vanguarda – José Oiticica Filho –, sua formação intelectual foi rigorosa (inclusive tendo sido praticamente educado de forma privada, por sua família, com uma breve passagem por colégios norte-americanos quando o pai recebe uma bolsa da Fundação Guggenheim na década de 1950). Mantendo-se até o fim da vida como um leitor diferenciado, era fluente em francês e inglês e cruzava gêneros e autores, indo da filosofia à poesia, acumulando referências e desenvolvendo apropriações estilísticas e teóricas para suas próprias incursões no exercício da escrita. Não é à toa que alguns dos maiores interlocutores de Oiticica ao longo da sua carreira foram em sua maioria ligados às letras e ao universo da literatura e da crítica, como Rogério Duarte (na época poeta e filósofo), Torquato Neto (poeta, jornalista e letrista), Waly Salomão (poeta, ensaísta e letrista), Haroldo de Campos (poeta, tradutor, crítico e ensaísta) ou Silviano Santiago (poeta, crítico, romancista, tradutor e ensaísta). Essas amizades criativas, essas interlocuções intelectuais balizadas no campo da escrita e do discurso literário faziam com que Oiticica ampliasse constantemente seu arcabouço intelectual e suas influências, além de permanecer envolvido com as questões relativas a esse universo. O Paideuma concreto (Pound, Mallarmé, Joyce, Souzândrade, Maiakovski), Gertrude Stein, Nietzsche, Freud, Lévi-Strauss, Henri Bergson, Octavio Paz, Husserl, Guy Debord, Merleau-Ponty e Marcel Duchamp são alguns dos autores e leituras que o artista plástico adquiriu ou aprofundou a partir desses contatos.

3. Entrando pela porta da escrita no labirinto criativo de Oiticica, não devemos perder de vista a intensa relação do seu trabalho de artista plástico com a palavra. Ao lado de Rubens Gerchman, ele foi um dos principais precursores dessa abordagem no país. Suas obras já incorporavam, desde os anos 1960, a palavra como elemento constituinte dos usos e significados que ela pode gerar no campo das artes plásticas. Sem dúvida, os mais famosos trabalhos de Oiticica com as palavras são seus Parangolés, cujas frases-poemas trazem, como demonstrou Luciano Figueiredo em trabalho recente, o papel da poética como um aspecto estrutural de sua obra. “Do meu sangue do meu suor esse amor viverá” (1965), “Da tua pele brota a umidade da terra do teu gosto/o calor”(1967), “Teu amor eu guardo aqui” (1967) e“Incorporo a revolta”(1968) são alguns dos “poemas” que Oiticica girava nas suas famosas capas ao lado de passistas da Mangueira. Outros exemplos de obras de Hélio Oiticica que se utilizavam da palavra como elemento constituinte foram o Bólide Caixa 22 “Mergulho do Corpo” e o Bólide-Caixa (ou Poema-Caixa) 18,como o feito em homenagem a Cara de Cavalo.

Aliás, é notório que foi a partir da sua subida à Mangueira em 1964 que Hélio Oiticica deu uma guinada em sua carreira, impregnando sua arte e sua vida com as experiências de fazer parte da comunidade da favela, de sua escola de samba e do cotidiano dos bandidos e malandros locais. Oiticica chegou à Mangueira através de um convite do artista plástico Jackson Ribeiro, assistente de Amilcar de Castro na feitura dos adereços e carros alegóricos da escola de samba.[2] Os Parangolés,o penetrável Tropicália e diversos trabalhos de Oiticica feitos após esse momento de descoberta da Mangueira são diretamente influenciados pelo seu universo de samba e marginalidade, precariedade material e potência desestabilizadora da ordem. Durante quatro anos seguidos (1964-1968), participou da ala de passistas “Vê se entende” em desfiles de Carnaval e apresentações da Mangueira, conheceu diversos morros cariocas, visitou amigos em prisões e não parou de criar obras em um dos seus períodos mais profícuos como artista plástico. A permanência da Mangueira na trajetória de Oiticica é decisiva em diversos momentos posteriores de sua vida. Diversos escritos, mesmo feitos em Londres e Nova York durante os anos 1970, tratam de forma visceral e delirante os seus tempos de Mangueira, de convívio com o morro e sua população, com as drogas e a bandidagem, e principalmente com a escola de samba.

Em dezembro de 1968, poucos dias antes do AI-5, Hélio Oiticica embarca em um navio para Londres com Torquato Neto. O intuito era a realização de sua famosa exposição na White Chapel Gallery, ocorrida em 1969. Em Londres Oiticica produz uma série de escritos e contos, ampliando sua produção. Em uma carta a Lygia Clark, escrita dois meses antes de ele partir para Londres, pode-se constatar seu crescente interesse pela escrita:

Estou escrevendo muito, com certas influências: de Rogerio [Duarte], no início, do Ginsberg etc., mas creio que há coisas no que escrevo: são textos poéticos mesmo quando tratando de arte: não gosto mais de teses ou descrições filosóficas: construo o que quero com a imagem poética na máxima intensidade segundo o caso.

Após um ano de exílio na Europa, volta ao Rio de Janeiro em 1970. No final do ano, obtém uma bolsa da Fundação Guggenheim e parte para Nova York no ano seguinte. A partir de sua ida, Oiticica passa a deslocar sua criação plástica para a produção incessante de projetos e sugestões de trabalhos para terceiros, colocando a escrita no centro do seu processo criativo. Com poucas exposições e muitos trabalhos elaborados e não realizados, sua estada em Manhattan trouxe à tona uma série de obras que se realizavam nos próprios textos de elaboração. Cadernos, gavetas, fichários, arquivos, tudo isso se transformava em parte ativa da sua obra. Surgem os Héliotapes, as Proposições, os Poemas visuais, trabalhos em que a palavra é o cerne da questão, seja reificando sua importância ao atribuir valor de obra a entrevistas realizadas (caso dos Héliotapes com Haroldo de Campos e Julio Bressane), seja situando a escrita de uma proposta de trabalho como própria parte da obra (caso das Proposições de Oiticica para nomes como Carlos Vergara, Silviano Santiago, Neville de Almeida e Waly Salomão), seja assumindo a linguagem do poema como parte integrante de sua obra visual (caso do trabalho Mangue Bangue).

4. De acordo com uma perspectiva teórica da crítica literária contemporânea, a literatura é, antes de tudo, uma experiência, um estar no mundo. O ato de escrever é uma ação fronteiriça, localizada no tênue espaço do entre, do devir, enfim, do fora. A experiência do fora, se vista como uma prática, será encontrada nos textos de Oiticica em que ficam claras suas intenções “literárias” e suas interlocuções com o campo da escrita. Textos em que a ideia de uma fabulação e da existência desse fora se fazem mais presentes, como é o caso dos seus “contos” e alguns de seus “poemas”, e textos cuja escrita dá conta de seus diálogos e influências intelectuais e literárias, espécie de hipertextos em que se podem traçar alguns percursos do pensamento e estilo de Oiticica.

Na série de textos de Oiticica, destacam-se aqueles cujo intuito claro era o ato da escrita enquanto fabulação, e não apenas como prolongamento do trabalho plástico que ele desenvolvia paralelamente em outros planos de criação. Surge assim para o campo da crítica literária uma nova seara de trabalhos e reflexões acerca desse novo “autor”, estrangeiro às hostes das letras, mas participante ativo de um destacado setor do campo da literatura brasileira dos anos 1970. Isso é demonstrado, por exemplo, através da sua intensa interlocução com dois autores de destaque desse período (cada um com suas especificidades), Haroldo de Campos e Waly Salomão. Em um trecho de uma das cartas de Hélio Oiticica a Lygia Clark, escrita no efervescente ano de 1972, ele relata seus últimos contatos em Nova York com a literatura e com os irmãos Campos, afirmando estar “[…] lendo à beça as coisas que eles enviam” (Figueiredo, 1998: 219). Foi em Nova York, com Haroldo de Campos – frequentador assíduo das universidades e da academia norte-americanas no início dos anos 1970 –, que Oiticica gravou um dos seus Héliotapes, ampliou suas leituras de Ezra Pound e Souzândrade (o “Inferno de Wall Street”foi um dos textos que mais desdobramentos tiveram na obra de Hélio em Nova York, sendo inclusive o mote para seu filme experimental Agripino é Roma-Manhattan) e se aproximou de intelectuais do porte de Marshall McLuhan e Quentin Fiore (de quem se tornou amigo pessoal). Já com Waly Salomão, o poeta baiano sempre deixou claro em suas entrevistas e depoimentos que foi Hélio, ainda em 1970, o responsável pela sua “profissionalização” ao ler seus primeiros escritos e incentivá-lo a investir na poesia, propondo inclusive a publicação de um livro (que sairia em 1972 com o título Me segura que eu vou dar um troço, pela José Álvaro Editores). Waly foi um dos que acompanharam de forma estreita os trabalhos e reflexões de Oiticica através de uma constante troca de cartas poéticas durante os anos 1970.

A relação intensa com a leitura e seu interesse permanente pelas ações dos intelectuais ligados ao campo literário deu a Oiticica a possibilidade de essas interlocuções romperem o limite da mera influência para se transformarem em ações concretas no campo da escrita. Apesar da maior parte de seus textos ser crivada dessas influências – formando esse hipertexto do pensamento intelectual de sua época e de todas as outras que lhe interessasse –, alguns escritos assumem muitas vezes caráter autônomo, afastando-se dos comentários e reflexões cotidianas para demonstram luz própria. Esses textos se destacam do resto de seus outros escritos por assumirem uma proposta abertamente poética ou ficcional.

5. Por que Hélio Oiticica escrevia textos poéticos? Como forma de nos guiarmos neste labirinto de letras, podemos partir dessa pergunta generalizante para mergulhar no impulso criativo de Hélio Oiticica em relação à escrita. Mas como debater qual o estatuto de seus textos se Oiticica não se insere no campo da literatura? E, admitindo-se que esses textos tinham um caráter “fabulador”, qual o papel que a escrita e suas interlocuções com o campo literário detêm no seu processo criativo?

O primeiro passo, o do porquê, pode ser pensado a partir das reflexões acerca da escrita literária como uma experiência fundada no âmbito do fora enquanto prática criativa e questionamento radical desse fazer literário (Levy, 2003: 18). A discussão incide justamente nesse aspecto de uma escrita labiríntica, que se manifesta desordenadamente, aceitando a presença do delírio. Uma escrita que permite o surgimento da fabulação e da formação de novas línguas e espacialidades, apontando para uma experiência literária específica – e radical. Oiticica parte dos textos medidos e ponderados da crítica de arte para a aventura sem controle do texto fabulador, enraizado nas suas vivências cotidianas em diferentes temporalidades de sua trajetória.

Partindo de um tema de Gilles Deleuze, a literatura e o ato de escrever podem ser vistos aqui como saúde. A ideia de saúde decorre da relação entre a experiência do homem no mundo e o seu esgotamento diante dessa experiência radical, sanada apenas na vazão da prática fabuladora, na descoberta da prática criadora do fora (Deleuze, 1997). Como exercício de reflexão, apresento uma hipótese relativa a essa problematização da prática da escrita, proposta pelo filósofo. Houve para Hélio Oiticica um momento em sua trajetória de vida em que “estar no mundo” torna-se uma descoberta violenta e visceral, divisora de águas e desencadeadora de heróis e fantasmas. É a experiência de subir e viver intensamente por quase cinco anos ininterruptos (1964-1968) o morro da Mangueira, que defino como um (ou o) momento em que ele “viu e ouviu coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota” (Deleuze, 1997: 14). Vale registrar que no mesmo ano em que Oiticica subiu à Mangueira, seu pai, figura ativa em sua formação, faleceu. Segundo Lygia Pape, amiga íntima do escritor nesse período e em outros de sua vida, esse momento foi uma virada em todos os sentidos para o artista plástico, corroborando essa hipótese. Em depoimento a Paola Bernstein Jacques, ela afirma que

Hélio era um jovem apolíneo, até um pouco pedante, que trabalhava com seu pai na documentação do Museu Nacional, onde aprendeu uma metodologia: era muito organizado e disciplinado. Em 1964, seu pai morreu. Um amigo nosso, o Jackson, então, levou o Hélio para a Mangueira […]. Foi aí que ele descobriu um espaço dionisíaco, que não conhecia, não tinha a menor experiência. […] Aí ele começou a incorporar essa experiência do morro, aquilo começa a fazer parte dos conceitos dele, da vivência dele. As barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio do “morro”, que passou a invadir tudo: sua casa, sua vida e sua obra (Jacques, 2001: 27).

Uma das hipóteses do porquê Hélio Oiticica investia na escrita de textos com um caráter fabulador se liga a esse esgotamento em relação à sua vivência na Mangueira descrita brevemente por Lygia Pape. Ela é revivida por ele constantemente através da escrita sobre o tema, sobre suas experiências relativas ao uso das drogas, à descoberta do sexo e principalmente ao mergulho no universo do samba e da marginalidade. Vale ressaltar que essas transformações se registraram, sobretudo, no âmbito do corpo de Oiticica, influenciando definitivamente seu processo criativo nas artes plásticas e sua visão de mundo. Não é à toa que esses dois “conceitos”, experiência e corpo se tornariam vitais para a sua obra dali em diante – vide o texto-chave para esse período de vida do artista plástico intitulado “A dança na minhaexperiência”(1964).

Assim, através da escrita, do ato de escrever sobre suas memórias e vivências físicas na Mangueira, quando se encontrava distante desse universo, Hélio Oiticica revive uma experiência que remete continuamente àquela que o esgotou, que o deixou doente. Ela desencadeia na literatura um processo de recriação de um espaço mítico, uma espécie de reterritorialização dessa experiência vivida na favela carioca através dos tempos. Se no primeiro momento foi seu corpo que absorveu sua intensidade, no momento do exílio, em que a Mangueira nada mais é que uma ausência, foi a capacidade de fabulação de Oiticica que a manteve viva. No momento em que o mito fundador da experiência perde sua potência explicativa, é através da linguagem que se reconstrói essa potência em um novo espaço e em um novo tempo. Não mais através da dança ou do corpo, mas sim através da escrita fabuladora. A Mangueira não é apenas uma memória nostálgica, e sim a experiência ainda em processo na vida de Hélio. Uma experiência vivida dessa vez na prática da literatura.

A literatura, porém, é não só o processo de criação da saúde, como também a tentativa de invenção de um povo. A literatura como saúde, como possibilidade de vida, consiste assim na invenção de um povo que falta (Deleuze, 1997). Em seus escritos explicitamente ficcionais, Oiticica constrói incessantemente a Mangueira, seus cheiros, suas cores, seus heróis, seus ritos, seus espaços de lazer e bandidagem, seus personagens, enfim, seu povo. Um povo que falta a Oiticica em Londres, que falta a Oiticica em Nova York. Um povo cuja experiência de reconhecê-lo e desejá-lo só pode ser satisfeita na escrita, na fabulação. Em “Auto I”,texto aparentemente de cunho autobiográfico escrito em Londres em novembro de 1969, ele descreve essas experiências como se estivesse vivenciando no presente e pratica a sua reinvenção de um povo. Citando seu trecho inicial:

A ponte desce como do cosmos sob o som-folia nas sombras subjetivas ou no odor que emana ou do morro ou do som-metal dos trens que correm das matas pelo mar da Central: porque as sombras embaixo são sombras ou o que sinto não sei. É cedo no ano para que o samba esteja quente mas as luzes e os sons tamborins-surdos me atingem.

Já em “Futesambol(ão)”, texto escrito no Rio de Janeiro em 1970, mais de cinco anos depois de sua primeira incursão à Mangueira, esse processo torna-se mais intenso. Nele, Oiticica descreve detalhadamente as sensações e impressões sobre “estar na Mangueira” em outro tempo. A invenção de um povo que falta é um processo permanente, visceral, delirante:

Antigamente o samba da manga era na cerâmica, logo do outro lado da linha do trem, da favela do esqueleto: de vez em quando pareciam-se ouvir os gritos da torcida no maracanão, logo abafados pela bateria de valdemiro: “não vem não coração – já cansei de ilusão…” e a romaria do buraco quente à cerâmica começava, pela curva: dona pequitita, red indian, vila do hélio turco, café paulista, doido pra chegar na entrada da candelária (que é o morro atrás da cerâmica): leite de onça melhor do rio: cerâmica de roberto paulino, haig’s; do outro lado o trem da central: posto de gasolina em frente à entrada da casa de miro e mais abaixo a ponte da estação de mangueira.

Seus textos de caráter biográfico não devem ser confundidos com uma busca da literatura enquanto “expressão de um eu interior”. Os escritos de Hélio Oiticica sobre a Mangueira – e outros temas como sua infância e sua ligação com o pai – não são uma expressão da sua alma ou simples relatos autobiográficos. Ao contrário da maior parte de seus trabalhos e declarações, são textos em que ele se anula como persona artística e figura pública. Sempre autoral e cioso de suas ideias e ações, “mentor supremo e pouco democrático da palavra” como aponta Silviano Santiago (2000: 136), suas narrativas literárias ou poéticas o colocam como mais um personagem dentre as ações que se desenrolam – um personagem no campo do entre. São as histórias e as sensações que ele viveu que fornecem as ferramentas para sua narrativa. “Hélio Oiticica” nesses textos é mais um personagem da Mangueira, e não o artista plástico vivendo uma realidade exótica digna de relato para os não iniciados. Assim como em 1964, as experiências viscerais da vida no morro e das suas histórias apagam sua formação burguesa e intelectualizada, a prática da escrita fabuladora torna-se um espaço onde o artista plástico e intelectual Hélio Oiticica desaparece, dando lugar ao surgimento do necessário e inesperado ele fabulador.

Seguindo os diversos caminhos possíveis desse labirinto, só podemos perguntar “o que” Oiticica escrevia na medida em que reconhecemos que ele como autor e seus textos como obra não pertencem aos cânones definidos na área da literatura. Ou seja, ele não só não é um autor, como seus textos não são vistos como uma obra. Daí a pergunta o que como chave na compreensão de seus caminhos no interior da linguagem. Parafraseando Michel Foucault em seu já incontornável ensaio O que é um autor (1969), proponho questionar, assim como ele questiona o que eram os “papéis que Sade produzia na prisão enquanto ainda não era visto como um autor” (Foucault, 2001: 269), o que eram então esses papéis escritos incessantemente por Hélio Oiticica, já que ele até hoje não é um autor. Assim como Foucault, perguntar o que era essa “obra”, o que eram esses cadernos e papéis sobre os quais, sem parar, durante seus dias de exílio, Oiticica desencadeava seus fantasmas e suas memórias. O ponto aqui não é reivindicar um estatuto de autor literário para Oiticica, mas sim uma nova abordagem sobre seus textos, inserido-os em um debate mais amplo, mais livre que o debate sobre sua obra no campo das artes plásticas.

É justamente essa inserção de Hélio Oiticica em outros campos que permite uma análise mais apurada das suas relações com a produção literária de sua época. Ele transitou intensamente nesse campo durante os anos 1960 e 1970 no Brasil e no mundo, apropriando de forma voraz seus elementos e conflitos. Em diferentes intervenções nesse período ele deixa claro – apesar de ter declarado “o que faço é música” – que eram a literatura e a poesia suas principais ferramentas de criação e reflexão estética. Alguns de seus textos, principalmente suas cartas e artigos, traziam o aspecto já referido de hipertexto, em que diacronia e sincronia coexistem em um mesmo plano de ação intelectual. Suas influências – Gertrude Stein (uma das principais leituras de Hélio), Mondrian, Nietzsche, Oswald de Andrade, Jackson Pollock, James Joyce, Paul Klee – eram trabalhadas a partir de suas interlocuções contemporâneas com parceiros e referências de seu tempo – Andy Warhol, Torquato Neto, Haroldo de Campos, Lygia Clark, Jack Smith, Waly Salomão, Glauber Rocha. Este trecho de carta-reportagem para o colunista e amigo Daniel Más, escrita em Nova York em maio de 1972, exemplifica bem esse tipo de escrita:

NEWS DO MÊS LOFT 4: a estadia de HAROLDO DE CAMPOS em New York Chelsea hotel foi fantástica: seguiu pra Cambridge dia 30: trabalho-estadia com ROMAM JAKOBSON, célebre linguista q foi amigo de MALEVITCH e MAIAKÓVSKY – dia 21, HAROLDO foi recebido em PRINCETON numa festa especial a ele dedicada por QUENTIN FIORE famoso designer gráfico e coautor de THE MEDIUM IS THE MESSAGE com MCLUHAN – HAROLDO fora isso transou muito por aqui e apresentou-me ao poeta OCTAVIO PAZ q dirige a publicação mexicana PLURAL para qual vou colaborar.

Oiticica mostra neste breve trecho seu fascínio com o universo da literatura, seus nomes, celebrações e revistas. Haroldo de Campos e Silviano Santiago – que lecionava em Buffalo nesse mesmo período – foram importantes para o aprofundamento da sua experiência literária em Nova York. A experimentação poética de seus textos, iniciada ainda no Brasil mas de forma esparsa, ganha corpo na cidade norte-americana, ao mesmo tempo em que ele se alimenta do convívio e da influência de intelectuais ligados a esse universo. Some-se a isso seu interesse permanente pela palavra e seu entusiasmo cada vez menor em relação ao meio acadêmico e comercial das artes plásticas, e encontramos nesse período um terreno fértil para um mergulho definitivo de Oiticica na escrita e na fabulação.

6. Projeto cães de caça, Núcleos, Penetráveis, Quase cinema. Esses são alguns dos trabalhos de Oiticica em que o labirinto, a possibilidade múltipla de caminhos, de se achar e de se perder são elementos estruturais. Neste artigo, o intuito foi dar um primeiro passo na inserção de sua produção escrita nesse percurso, como mais uma das entradas para esse grande labirinto que é sua obra e sua vida. O labirinto, nos textos, encontra-se nas suas linhas quebradas, na sua falta de pontuação, na sua descontinuidade de ideias em permanente construção, na sua fluidez entre um tema e outro, na linguagem cifrada dos códigos e referências de quem viveu o cotidiano fora da lei do mundo. Ler os textos poéticos de Oiticica é entrar nesse labirinto dentro do labirinto, é caminhar partindo do princípio de que o intuito não é se encontrar, mas justamente se perder. Assim como Oiticica teve de se perder nas quebradas da Mangueira e na barra pesada de Manhattan durante os anos 1970 para criar sua obra revolucionária, ele nos propõe uma escrita em que o leitor não é tratado como mero receptor de mensagens, mas sim como convidado para vagar por suas histórias e experiências, dividindo com o autor a sensação de que é preciso se perder para se encontrar, não saber para onde se vai para criar saídas. O mito do labirinto, recorrente na literatura mundial, é incorporado por Oiticica na sua prática criativa de forma visceral e decisiva. Os que quiserem se aventurar em seus textos poéticos e na sua produção literária, que tenham sempre isso em mente: quanto mais se entra, mas difícil sair. Produzindo durante décadas em silêncio um mar de escritos, um emaranhado de referências, um tortuoso percurso de aprendizado e leituras, e guardando todos em seus arquivos, Oiticica deixou para a posteridade talvez esse seu último labirinto: a descoberta por parte do mundo de sua poética secreta.

 

Referências bibliográficas

 

David, Catherine. “O grande labirinto”. In: Hélio Oiticica – Catálogo. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica/RIOARTE, 1997.

Deleuze, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

Duarte, Rogério. Tropicaos. Rio de Janeiro: Azougue, 2003.

Favaretto, Celso. A invenção de Helio Oiticica. São Paulo: Edusp, 2000.

Figueiredo, Luciano. Lygia Clark – Hélio Oiticica, cartas 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

_____. Hélio Oiticica: obra e estratégia. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/RIOARTE/MAM, 2002.

Foucault, Michel. “O que é um autor?”.In: Ditos e Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

Jacques, Paola Bernstein. Estética da ginga – A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/RIOARTE, 2001.

Levy, Tatiana Salem. A experiência do fora – Foucault, Blanchot e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

Salomão, Waly. Hélio Oiticica – Qual é o parangolé? Rio de Janeiro: Relume Dumará/RIOARTE, 1996.

_____. Armarinho de miudezas. Salvador: Fundação Jorge Amado, 1993.

Santiago, Silviano. Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

 

[1] Sobre esses textos voltados para o universo das artes plásticas, já existem grandes trabalhos de análise publicados, como os de Celso Favaretto, Luciano Figueiredo e Guy Brett. Uma boa iniciação nos textos de arte de Hélio Oiticica é a coletânea Aspiro ao grande labirinto, publicada em 1986 pela Rocco e atualmente fora de catálogo. Sobre os trabalhos publicados a que me refiro, conferir bibliografia.

 

[2] Sobre a relação de Hélio Oiticica com a favela da Mangueira, existem bons trabalhos como o de Paola Bernstein Jacques (2001) e o de Waly Salomão (1996).