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Os tricksters nas fábulas de Wilson Bueno

Não poderia falar do escritor brasileiro Wilson Bueno sem antes mencionar o Portunhol Selvagem, movimento artístico que nasceu no final dos anos 90 na fronteira do Brasil com Paraguai, com o objetivo, aparentemente, de reunir, num único verso, num único parágrafo, os povos da fronteira, suas diferentes falas e culturas. Se tomarmos como referência as obras de Wilson Bueno e Douglas Diegues, dois autores centrais desse movimento, podemos afirmar que, nas narrativas e nos poemas de ambos, as línguas da fronteira do Brasil com o Paraguai se mesclam de diferentes maneiras, pois esses escritores passaram a se valer de um vocabulário rebuscadamente híbrido, que incorpora o português, o espanhol e o guarani. Bueno é o precursor, autor do clássico Mar Paraguayo, de 1992, e Diegues o escritor que mais sistematicamente vem explorando as possibilidades literárias do Portunhol Selvagem, inclusive coube a ele cunhar essa denominação. O Portunhol Selvagem, hoje, não está mais restrito à fala de uma única fronteira, na medida em que passou a acatar também palavras do inglês, do francês, do italiano, do alemão, entre outras línguas. Algumas dessas línguas, é verdade, fazem parte do dia-a-dia da fronteira Brasil/Paraguai, graças, por exemplo, à forte influência da colonização germânica e italiana.

Cachorros do céu (2005), livro de Wilson Bueno muito posterior a Mar Paraguayo e do qual falarei aqui, mantém, embora com muito menos radicalidade, a mescla de línguas mencionada acima, como podemos verificar, por exemplo, na história da galinha “Ingrid, a Ruiva”, com sua “boquita [espanhol] rosê”, ou na história de “Dog, o Facínora”. Não é, entretanto, essa mescla de línguas nas fábulas de Bueno que destacarei a seguir, mas sim os seus personagens, que, parece-me, estão muito próximos das narrativas indígenas da floresta amazônica. Wilson Bueno, já se vê, extrapola o hibridismo linguístico da fronteira com o Paraguai para nos oferecer, também, um hibridismo imagético, unindo a fábula tradicional à fábula indígena.

Como lembra o pensador francês Jean Baudrillard, num ensaio intitulado “Animais”, fazer um animal falar é uma ilusão, já que “eles não falam”. Apesar disso, houve uma época em que alguém os fez falar, “com todos os significados, uns mais inocentes que os outros. Eles faziam o discurso moral do homem nas fábulas”.

Em Cachorros do céu, no entanto, como adverte o estudioso brasileiro Ivo Barroso no texto de orelha do livro, “embora os personagens sejam todos animais de uma floresta hipotética, e falem como em Esopo ou La Fontaine, tudo o que dizem é antiético ou no mínimo bizarro, (…)”. Ou seja, este livro “é um fabulário, mas no mau sentido da palavra, pois, nele, longe de os textos se revelarem morais, são escárnios desmoralizantes em si mesmos e desmoralizadores das intenções construtivas das fábulas convencionais”. Esse é o caso da história de “Rildo, o Rato”, em que lemos o seguinte:

Às duas horas da manhã, sob a gélida noite de Bloomsville, nasceu Rildo, o Rato, tão absolutamente enojado da própria ratazania que, diz a lenda, nasceu rato adulto – de pelagem cinza e dentes capazes de roer o reino (…).
Roam: Rildo, nascido rato inteiro, já surgia, cá para este mundo insensato, com a essência do rato (…). Assim, não tinha a – necessária – memória da infância e a mãe dele era só uma viscosidade (…).

Como não associar esse fenômeno do rápido amadurecimento de Rildo, o Rato, com o caso análogo de Macunaíma (ou Makunaíma, na grafia aceita entre os etnógrafos), o grande herói do povo pemon, que teria habitado a região fronteiriça entre o Brasil, a Venezuela e a Guiana, e cujas narrativas foram compiladas no início do século XX pelo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e reunidas por ele no segundo volume de Von Roraima zum Orinoco (1916-1917)? Afinal, assim lemos numa das lendas indígenas:

Quando Makunaíma ainda era menino, chorava a noite inteira e pedia à mulher do irmão mais velho que o carregasse para fora de casa. Ele queria segurá-la e abusar dela. Sua mãe decidiu levá-lo para fora, mas ele não quis. Então a mãe mandou a nora levá-lo: ela o carregou para fora, afastando-se uma boa distância da casa, mas ele a pediu que o levasse para mais longe. Então a mulher o levou para mais longe, para trás do morro. Makunaíma ainda era menino. Mas quando lá chegaram, ele se tornou um homem e abusou dela. (68)

As fábulas de Wilson Bueno, e sobretudo seus protagonistas sem caráter definido, parecem absorver a estrutura dos mitos e das lendas indígenas, e, nesse aspecto, seguem nitidamente os passos modernistas de Mário de Andrade, que as estudou e recriou. Talvez não por acaso, o início da narrativa Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, publicado em 1928, seja bastante semelhante à história de “Rildo, o Rato”, mencionada acima.  Porém, o estilo de Wilson é sóbrio e sua narrativa breve, pois se trata de uma fábula, enquanto Mário de Andrade opta por um fluxo narrativo mais amplo, caudaloso, adequado ao seu projeto de romance-invenção. Na versão de Mário de Andrade, lemos:

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o mumurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Se o incitavam a falar exclamava:
– Ai! Que preguiça! …
E não dizia mais nada. […].
Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por baixo do berço, o herói mijava quente na velha, … Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Mas o que talvez mereça ser destacado aqui é a dimensão de trickster, que o rato e outros personagens de Bueno parecem compartilhar com o herói pemon, reiventado por Mário de Andrade.

Segundo Lucia Sá, “apesar de cultuado e celebrado pelos pemon, Makunaíma (ou Macunaíma) não pode ser descrito como ‘bom’ e ‘generoso’”. Macunaíma seria um trickster (termo originalmente criado para se referir à literatura indígena da América do Norte, mas atualmente aplicado a heróis do mundo todo), ou seja, um herói e vilão ao mesmo tempo. Aliás, de acordo com Koch-Grünberg, “o nome do supremo herói tribal, Makunaíma, parece conter como parte essencial a palavra Maku = mau e o sufixo aumentativo Ima = grande. Assim, o nome significa ‘o grande mau’, que calha perfeitamente ao caráter funesto deste herói”.

Segundo a leitura que proponho, os animais das fábulas de Wilson Bueno, como certos personagens indígenas, entre eles o já citado Makunaíma, seriam também tricksters, pois, como estes, também apresentam características incongruentes: são heróis (que tornam o mundo seguro para os seres humanos) e bufões egoístas (que agem de maneira comicamente inapropriada). Não podem ser considerados nem bons nem maus, porque são “ao mesmo tempo um vilão e uma vítima”, como ressalta a estudiosa brasileira Lúcia Sá ao analisar os personagens indígenas.

Portanto, ainda que normalmente encontremos, nas narrativas tradicionais, nas fábulas ou contos de fadas, elementos do tradicional dualismo entre o bem e o mal, não se deveria esperar encontrar nas fábulas de Wilson Bueno o mesmo dualismo, contra o qual seus textos justamente se insurgem. Vejamos, por exemplo, a história de “O Sapo Papudo”, de Bueno, que conseguiu, com sua lábia, enganar a todos, até mesmo a girafa, sua namorada, que ele por fim trocará por outra. O sapo, seguro de seu poder de persuasão, cortejou uma cobra, mas ela não se deixou seduzir pela conversa dele e acabou engolindo-o. A partir desse episódio “canibal”, é a própria cobra, que se formou em “Direito, optando pela nobre especialização em Criminalística” (ela mesmo uma criminosa), quem conta a história.

E o que dizer dos parentes da talentosa rã, protagonista do conto “A Rã Memorável”, que, logo após a sua morte, transformaram sua obra hermética em best-seller, para usufruir financeiramente dela? Nesse caso não é o protagonista da fábula que possui caráter estranho; são seus parentes, que se comportam de maneira nada exemplar, tirando proveito espúrio, digamos assim, da obra herdada.

O fato é que os bichos de Bueno não revelam, nas antifábulas em que atuam, os preceitos morais tão convencionais e explícitos, como os que encontraríamos em fábulas mais tradicionais, menos ameríndias. Tampouco é possível dizer que essas antifábulas sejam amorais. Elas, assim como Macunaíma, de Mário de Andrade, poderiam ser lidas sob uma perspectiva alegórica, e, nesse caso, não seria equivocado talvez supor que iluminam, a seu modo, a identidade nacional dos brasileiros, que seria justamente paradoxal, ainda em gestação.

No prefácio que escreveu para Macunaíma, Mário de Andrade afirma que, certa vez, quando estava pensando na identidade do povo brasileiro, topou com Macunaíma, “um herói surpreendentemente sem caráter”. Obviamente, Mário de Andrade conhecia muito bem a cultura indígena, a ponto de intuir o significado do caráter plástico do trickster, que lhe permitia adaptar-se, justamente por ser plástico, maleável, às mais diferentes situações, favoráveis ou desfavoráveis. É assim que Makunaíma, ou Macunaíma, atravessa o mundo, um mundo desconhecido e em constante transformação que também o transforma para sempre.
A ideia de caráter como traço marcante e definitivo de um povo, ou como aquilo que o diferencia dos demais povos, foi assim exposta por Mário de Andrade, que ao mesmo tempo insistia na “elasticidade” do caráter nacional:

o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo eminente, ou consciência de séculos tenha auxiliado, o certo é que esses têm um caráter. Brasileiro (não). Está que nem rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas, ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral. Daí a gatunagem sem esperteza (a honradez elástica e a elasticidade da nossa honradez), o desprezo à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas famílias. E sobretudo uma existência (improvisada) no expediente (?) enquanto ilusão imaginosa feito Colombo de figura-de-proa busca com os olhos eloquentes na terra um Eldorado que não pode existir mesmo.

Essa noção “elástica” de honradez não é estranha, como sabemos, às criaturas das antifábulas, ou fábulas ameríndias, de Wilson Bueno. Seus protagonistas são, por isso mesmo, tanto indígenas quanto brasileiras, não estando implicado, nisso, nenhuma recriminação ao seu comportamento, à maneira das moralidades tradicionais. Assim, lemos em “O Lobo Sutil”:

cansado, faminto e desgarrado da mantilha, por puro instinto de sobrevivência, depois de buscar em vão seus pares por toda a Floresta, se aproximou, cauteloso, da aldeia, e, com a severa humildade que mora no coração de um lobo interessado em não morrer, se fez cândido amigo de um pastor caduco.

Se, à primeira vista, o lobo-trickster revela possuir plasticidade de caráter, adaptando-se plenamente a uma situação que lhe é adversa, ao final, porém, ele demonstra ter caráter muito definido, o de predador. Então, cheio de caráter, o lobo devora o velho pastor, ao se reconhecer lobo novamente.

Talvez se possa, numa espécie de balanço final, distinguir dois tipos de caráter, ou de falta dele, nas narrativas que comentei acima. Existe uma falta de caráter que parece provir de uma ignorância de si mesmo, daí o protagonista estar sempre imitando outros seres, outros animais (o que não deixa de ser engraçado), para preencher um vazio interior. Existe também a falta de caráter que é ditada por razões pragmáticas, pela necessidade de se transformar e de se adaptar sempre, como única garantia de sobrevivência num ambiente inóspito ou desfavorável.

Mencionei acima o humor dessas fábulas ameríndias. No que diz respeito a isso, podemos atribuir o humor, inicialmente, ou, sobretudo, ao seu aspecto paródico: a antifábula é uma caricatura da fábula tradicional, de onde ela parte, para, em seguida, começar a dialogar com o universo indígena, que ela incorporará, segundo tentei mostrar.

Em algumas fábulas de Bueno, os animais possuem um caráter bem definido. Mas isso sucede, como diria Mário de Andrade, por pura “gatunagem”. No conto “O Ganso ou a Vida”, o diálogo entre o protagonista e um pato exemplifica a assertiva anterior:

— Seo Ganso, por que o senhor não entra de vez para a Ordem dos Patos, já que ganso não passa de um pato disfarçado? (…). – Não, seo Pato, ganso sou e ganso morrerei. Honro o ganso meu pai e a gansa minha mãe, que não eram, nenhum deles, patos nem marrecos, mas gansos, seo Pato.

Aliás, ser Ganso e não pato faz, nesse conto, como diz o ganso, “– uma baita diferença, seo Pato. Aqui na aldeia, ao menos, ninguém come ganso. Agora pato e marreco, todo mundo sabe, são um baita prato”.

O fato é que os bichos de Wilson Bueno, embora tentem extrapolar sua animalidade, pois o conceito de fábula o exige, ao passarem a falar e agir como seres humanos, terminam, na maioria das vezes, revelando a natureza que lhes é própria, como verificamos, por exemplo, no conto “Danação do Ser”, no qual o urubu “era só um urubu e urubu seria sempre, até o último de seus dias”; ou, ainda, em “Coisas da Vida”, em que “a Sweet Snake, nhóct!!! cravou as presas, as duas, na jugular da outra cobra que, no afã enfezado de se mostrar cobra, esquecera de que conversava com uma cobra de verdade”.

Por fim, Sérgio Medeiros lembra que o final frustrado é um traço peculiar de muitas narrativas das florestas, denominadas por ele de “narrativas sem fim”. Wilson Bueno parece ter incorporado essa característica na composição de suas fábulas ameríndias, ou antifábulas. No fecho do conto “Dog, o Fascínora”, o Macaco simplesmente sai correndo do Dog, “coisa que, aliás, faz até hoje nesta história”. Já a fábula “O Sapo e o Sonho” começa e termina com o sapo apaixonado pela mesma rã, sem ter feito nada para concretizar a relação entre os dois.

 

Dirce Waltrick do Amarante. Professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina/ Brasil.
* Lido, em novembro, no Congresso Internacional “Literatura Brasileira no Contexto Latino Americano”, na Universidade Livre de Berlim.


 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).