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POESIA E CRÍTICA NA GRANDE CONFUSÃO CONTEMPORÂNEA

Diálogo seminal com Alfonso Berardinelli

Esta é a primeira entrevista que fiz com o grande ensaísta Alfonso Berardinelli, atualmente um dos críticos mais respeitados e polêmicos da Europa, quando de sua primeira viagem à Argentina, [ver nota sobre Berardinelli ao final da entrevista]. Tinha entrado em contato com sua crítica durante os anos em que estudei, na Itália, a poesia italiana das últimas décadas, e tive a sorte de conhecê-lo pessoalmente em um congresso organizado por Carlos Giordano, professor argentino com quem eu trabalhava na Universidade de Rende. Tempos depois, fui vê-lo em sua casa, em Roma, e, assim como antes me tinha admirado com sua lucidez e liberdade de juízo crítico, nessa visita apreciei sua sinceridade amistosa, sua simpatia e sua abertura humana, que lhe permitiam entabular comigo, muito inferior intelectual e culturalmente, um diálogo de igual para igual, onde o importante era a busca conjunta, através de uma argumentação sempre aberta a novos pontos de vista. Em Poesia non poesia, Berardinelli escreveu: “Até meados dos anos 1970, terminada a época do compromisso e do experimentalismo, na poesia italiana, a consciência histórica estava reduzida a zero, recomeçava-se a escrever em um presente que já não reconhecia nenhum privilégio ao passado moderno” [pode-se ler “compromisso” como “engajamento”, e “experimentalismo” como “vanguardismo”, e aplicar a afirmação à poesia brasileira (Sibila)].

 

Pablo Anadón [ver dados ao final]

 

Nota adicional de Sibila: É nada menos do que bastante surpreendente como as agudíssimas e claríssimas considerações de Berardinelli sobre a situação dos poetas, da poesia e da crítica na Itália atual se aplicam ipsis litteris ao Brasil.  Não se pense, por um momento, que isto significa qualquer modernidade brasileira. Muitíssimo ao contrário…

 

Pablo Anadón: Recentemente, em sua visita a Córdoba, Edoardo Sanguineti nos dizia que, em sua opinião, a poesia hoje vive “um grandíssimo triunfo, sem precedentes na história” [1]. Como o sr. vê a situação da poesia na sociedade e na cultura contemporâneas?

Alfonso Berardinelli: Bem, como primeira reação, não me parece que este seja um momento de grande triunfo. Se se pode falar de triunfo, é com certeza um triunfo ambíguo, mais aparente do que real. Existe um elogio difundido da criatividade. Na realidade, parece-me que esse aparente e difuso interesse pela poesia se expressa, pelo contrário, em uma tangível indiferença. Se formos ver as tiragens e vendas dos livros de poesia, ficaremos bastante desconsolados. É muito difícil vender livros de poesia, inclusive dos autores mais famosos. De vez em quando, alguma iniciativa editorial consegue movimentar o mercado; mas se tem a impressão de que, por debaixo desses fenômenos momentâneos, que induzem a um certo otimismo, na verdade é bastante escasso o grau de interesse real, de curiosidade e de cultura específica (porque, se a poesia não é acessível a todos, como o próprio Sanguineti diz, falando de sua própria escrita, evidentemente requer cultura, não pede apenas uma genérica declaração do valor da poesia). Creio que o amor pela poesia em geral, ou a estima, ou a valorização pública, e inclusive teórica e filosófica, da poesia, na verdade é muitas vezes um fato mais negativo que positivo. Trata-se, por outro lado, na minha opinião, de amar, de ler e entender de verdade os poetas, cada poeta singular. Não existe a poesia, existem os poetas; poetas que devem ser lidos e entendidos. Muitas vezes, ao contrário, a ideia de poesia, inclusive nos próprios poetas, cria uma espécie de boa vontade, ou ênfase, ou enfatuação retórica, quase mitomaníaca, que não faz bem à poesia. A poesia, diferentemente de muitas outras atividades culturais, é algo que requer uma grande e particular atenção ao concreto, ao singular, não às grandes categorias. Afogar os poetas na categoria da poesia, amar todos os poetas enquanto tais, não distinguir, por exemplo, os maus poetas (que se multiplicam, por razões culturais) dos verdadeiros poetas, é algo profundamente negativo, no meu entender. Também a filosofia, nesses últimos tempos, está particularmente enamorada da poesia, porém fala dela em termos muito gerais, com os quais podemos estar todos de acordo (continuamos crendo, como humanistas, que a poesia com maiúscula, a grande Poesia, é um fenômeno humano essencial para a própria sobrevivência da sociedade), que adquire um tom oficial, abstrato. A verdadeira pedra de toque está na capacidade de ler os poetas individuais, compreendê-los de verdade, buscar seus textos, ir das traduções aos originais, aprendê-los de memória, fazer com que os poemas realmente entrem na mente, na vida concreta de uma pessoa concreta. Então, desse ponto de vista, o “triunfo da poesia” pode ser assimilado a esse genérico triunfo do estético, das belas formas, que muitas vezes é o contrário do respeito, da compreensão da verdadeira arte.

 

PA: Completaram-se vinte anos do movimento de maio de 1968: o sr. poderia fazer um balanço da influência desse movimento, tanto no plano social e político quanto no literário e cultural?

AB: 1968 foi muitas coisas. Em geral, fala-se dele como um fenômeno de mudança dos costumes sociais, de revolta juvenil, misturado a certa música, o pop, o rock… Não se deve esquecer (como fazem muitos jornalistas de pouca memória, ou que não o viveram) que 1968 foi, essencialmente, o último momento em que muitas ideias da modernidade, em particular a de revolução, de vínculo entre razão e revolução (uso uma velha expressão de Marcuse) tiveram ainda consequências radicais, e uma influência de massa na maior parte dos países ocidentais. Quer dizer, 1968 não foi tanto, ou não apenas, sobretudo nos primeiros meses, um fenômeno de costumes, de renovação dos costumes (a revolução sexual, a democratização das instituições, uma maior importância das mulheres), quanto uma rebelião contra o sistema cultural, contra o sistema educativo, uma crítica da escola e da universidade. Mas justamente porque, nos anos anteriores, uma série de pensadores tinha usado e abusado, às vezes, de termos como “sistema” e como “estrutura”, para indicar a globalidade dos fenômenos, o problema da cultura e da universidade se convertia em um problema global, de sistema. Portanto, tratava-se de criticar ou sabotar o sistema educativo, a escola e a universidade, criticando e sabotando, ao mesmo tempo, todo o sistema social, que era o capitalismo (ou, segundo expressões então frequentes, tardocapitalismo ou neocapitalismo). Passou-se, assim, da crítica das instituições culturais à crítica de todo o sistema social. O sistema social era, já então, um sistema globalizado. Hoje se fala muito de globalização; maravilho-me um pouco com essa espécie de excitação em torno do termo, porque a globalização é um fenômeno a que se faz referência já no Manifesto do Partido Comunista [1848], de Karl Marx, e seguramente 1968 pode ser explicado e descrito sobretudo como fenômeno globalizado e globalizante. Os estudantes que se rebelavam em Berkeley, na Califórnia, nas universidades norte-americanas, pareciam-se extraordinariamente com os estudantes que se rebelavam em Frankfurt, em Berlim, em Paris e em outras universidades europeias. Dava a impressão de que uma geração inteira tinha todas as ideias em comum, ainda que animada por pequenas divergências, como frequentemente sucede nos grupos subversivos, ou de rebeldes e revolucionários. Mas o que contava era que o grande gigante do imperialismo, os Estados Unidos, estava combatendo contra o Liliput dos países subdesenvolvidos, o Vietnã, e não conseguia vencer essa guerra. Tinha-se uma visão global da estrutura social e política de todo o planeta, e as ações dos estudantes se sentiam conectadas imediatamente a este cenário internacional. Pouco depois se passou, e foi o começo do final, a uma recuperação cada vez mais ortodoxa, cada vez mais tradicionalista, das temáticas revolucionárias do marxismo, da Terceira Internacional; logo, da releitura de Marx passou-se à leitura de Lênin, de Mao, voltou o stalinismo, formaram-se partidos de tipo bolchevique de diferentes tendências, mas todos, em geral, neo-ortodoxos (uma neo-ortodoxia leninista, uma neo-ortodoxia trotskista, una neo-ortodoxia maoísta…). E essa foi, efetivamente, a última – e ilusória – explosão de uma ideia de revolução como possibilidade (hoje o vemos claramente), de desarticular a estrutura de uma sociedade e modificá-la desde suas raízes: fazer tabula rasa e recomeçar de zero. A ilusão provinha do fato de que, de imediato, esse movimento não tinha levado suficientemente em conta o fracasso, as aberrações que essas tentativas já haviam produzido em outros países. Na União Soviética isso era evidente, também na China estava sucedendo algo do gênero, ainda que no Ocidente ainda não se soubesse dessas coisas com clareza. Naturalmente, essa globalidade e essa centralidade absoluta da política, essa crítica da cultura que se convertia em crítica política militante, e que fazia também que o crítico da cultura devesse se converter em uma espécie de ativista de partido, de pequenos partidos, terminou por devorar inteiramente todos os problemas culturais, e também, certamente, os problemas da literatura. A literatura era vista como algo sem interesse algum, ornamental, burguês, individualista, idealista, e passível de ser definida com todas as categorias negativas da tradição revolucionária. Imediatamente depois, a involução, inclusive política, as dificuldades desses partidos neo-ortodoxos, que achavam que conseguiriam fazer estalar uma revolução maoísta ou bolchevique no coração da Europa, levou essas formações organizativas cada vez mais na direção do terrorismo, com um empobrecimento cultural espantoso e, contemporaneamente, por debaixo dessa crosta, dessa glaciação ideológico-política, começaram a se verificar fenômenos de prática tenaz de formas literárias, por exemplo, a poesia. A antología Il pubblico della poesia, que publiquei com Franco Cordelli em 1975, parecia o descobrimento de um continente submerso. Logo se compreendeu que, naqueles anos, a poesia italiana existia ou, pelo menos, tratava de existir, e quase ninguém tinha se dado conta de sua presença.

 

O artista deve, antes de qualquer coisa, um crítico

 

PA: Alguns anos antes da publicação de sua antologia, Pier Paolo Pasolini assinalava, em um artigo (incluído em Descrizioni di descrizioni), o vazio criativo, no plano literário, da escrita dos jovens na Itália, relacionando-o a três fenômenos concomitantes: a neovanguarda, que ensinava a fazer programaticamente antiliteratura antes de ter aprendido a escrever literatura; o chamado “rechaço da literatura” de 1968, que paralisava a livre criatividade dos novos autores, com uma concepção instrumental da literatura; e, por último, a sociedade de massas, que ocasionava e, ao mesmo tempo, se beneficiava de tais fenômenos, passando por cima de tudo — dizia— “como um grande rolo compressor”. Como o sr. veria a influência desses fatores nos jovens poetas que apresentou em Il pubblico della poesia?

AB: A influência da neovanguarda, efetivamente, foi muito mais paralisante. Esse grupo foi um dos últimos episódios, na literatura italiana, de autopromoção grupal, muito bem-sucedido, que conseguiu dar forma realmente a um fenômeno de vanguarda. A vanguarda é uma tentativa, na minha opinião, de autodefesa corporativa do escritor, em uma época em que a literatura se encontra em dificudades no ambiente social; é assim que, em vez de enfrentarem sozinhos o risco da criação, da escrita com relação ao público, os vanguardistas se reúnem em grupo, convertem-se em categoria, em grupo de pressão, aumentado, assim, a própria capacidade de influência. Trata-se, ademais, de uma doutrina: toda vanguarda elabora um manifesto, uma poética, que se apresenta de maneira explícita ou implícita, uma teoria segundo a qual, em determinado momento histórico (os vanguardistas, embora se declarem às vezes anarquistas, ou anti-historicistas, na verdade são hiper-historicistas), só é possível escrever de um certo modo. [Esta resposta se aplica perfeitamente à situação da poesia brasileira da época, com destaque para o concretismo (Sibilia)]

 

PA: E a doutrina torna-se mais importante, às vezes, do que os resultados criativos?

AB: A doutrina se torna mais importante porque, naturalmente, nesse ponto não existe a necessidade de julgar os textos individualmente; é mais difícil dizer “esse poeta é um verdadeiro poeta, escreveu bons poemas, em compensação aquele outro não tanto; esta poesia é melhor que aquela etc.” A vanguarda tende um pouco a ser como uma empresa que quer vender em bloco todos seus produtos [cabe a mesma nota acima]. Assim ocorreu, efetivamente, com a neovanguarda: conseguiram vender em bloco os produtos de cinco poetas [2] que, depois de vários anos, pontualmente, apareceram em bloco, e sempre rigorosamente os cinco em conjunto, em toda antologia escolar. Evidentemente, os antologistas, os críticos, estavam tão desconcertados, emudecidos, talvez aterrorizados diante da possibilidade de dizer “escolho esse poeta, e não o outro”, que, para resolver o problema, introduziram nas antologias e nas histórias literárias os cinco, sem estabelecer nunca graduações [troque-se 5 por 3, e ainda vale aquela nota]. Então o risco que sempre implica toda aventura artística, dessa maneira, fica anulado. Os jovens, diante desta situação, ficaram desconcertados; era claro, além disso, que não havia lugar, porque todo o espaço fora ocupado por esses autores, os quais só podiam ter epígonos, e claro que não se pode ser a retaguarda epigonal de um grupo de vanguarda.

 

O desejo de se sentir poeta

 

PA: Com relação ao segundo fator, a influência de 1968 nos novos poetas, que alguns críticos denominaram “pós-sessenta-e-oitistas”?

AB: Eu diria que é uma categoria mais cronológica que cultural. Tinha-se a impressão de começar a escrever em uma terra desolada, uma terra de ninguém, um lugar em que houve uma grande ou pequena catástrofe cultural, devido à qual se sentia a interrupção de uma tradição. Voltando a meditar a esse respeito, acho que os poetas de Il pubblico della poesia podem ser considerados, junto com o Montale da última época, como os primeiros poetas definíveis como pós-modernos na Itália. Esses novos autores, os poetas da minha geração, imediatamente me deram a impressão de ter nascido como que depois de um dilúvio, como se, com o 1968, tivesse se produzido (é perceptível em todos os fenômenos culturais) uma breve, porém fortíssima interrupção de continuidade com o próprio século xx, como se — como se, não sei se isso está absolutamente certo — a neovanguarda tivesse sido a última manifestação, um pouco árcade, de uma continuidade moderna. O título do livro em que agrupamos os autores da nova poesia, Il pubblico della poesia, aludia ao fato de que os poetas estavam ficando tão numerosos que o único público da poesia era um público de poetas, reais ou potenciais: já não existia um público distinto, apenas um público de poetas estava disposto a se interessar pela poesia, e esse público se expandia cada vez mais [situação idêntica à do Brasil atual (Sibila)]. Desde o ponto de vista estilístico, tinha-se a impressão de que eram autores não muito cultos, sem uma grande maestria formal, mas que, contrariamente ao que havia sucedido com a neovanguarda (que fazia parecer, de acordo com sua doutrina, que só era possível escrever seguindo uma certa direção), tinham de imediato um sentido de grande liberdade. Quer dizer: parecia que tudo era, de novo, possível. Era possível a poesia autobiográfica, a poesia de confissão, o jogo irônico, inclusive (por que não?) a poesia de amor, a paródia, toda uma série de possibilidades que anteriormente tinham sido consideradas superadas, segundo uma lógica de progressismo poético, de acordo com a qual a poesia seria uma história de etapas sucessivas, e estava proibido a todos fazer algo que pertencia a uma etapa anterior [idem]. Depois de 1968, e com essa antologia de 1975, revelou-se essa novidade, que me pareceu uma das mais notáveis. Esses autores não tinham uma poética, não eram poetas muito intelectuais, faltava-lhes o sentido histórico: estranhamente, a indigestão de ideologia, de marxismo e de política dos anos precedentes tinha como que anulado a capacidade de elaboração, teórica, desses autores [ibidem]. Assim, estavam desprovidos de uma poética própria, de uma particular ideia de o que a poesia devia ser. Simplesmente, exploravam, já então, uma espécie de criatividade genérica, que era interessante, mas tinha algo de casual: eu tinha a impressão de que muitos poetas e muitos poemas, se saíam bons, era um pouco por casualidade, como sucede em certas formações naturais, em certas rochas ou em certos fenômenos que se seguem aos aluviões, ou aos períodos de grande seca. Era como se estes poetas não estivessem em condições de controlar o próprio talento, e de ter um projeto literário forte. Eram muitíssimos e, não por acaso, pouco depois, o fenômeno fundamental foi um fenômeno que saltava por cima do livro: as leituras públicas, os happenings, a teatralização poética. Assim, toda essa massa de poetas, que não se sabia mais onde colocar (não cabiam mais nas antologias), começou a ser convidada aos teatros, a ser feita recitar e, nesse ponto, a situação se fazia cada vez mais ambígua, porque o próprio público era muito distraído, pois era um público de pessoas que não iam escutar quem lia, mas que estava esperando o momento de lerem, eles mesmos, seus próprios poemas [uma vez mais, cabe a mesma observação (Sibila)].

 

PA: Vamos agora ao terceiro fator, a sociedade de consumo, que, dizia Pasolini, englobava tudo e convertia a própria neovanguarda e o próprio movimento juvenil em instrumentos de seu processo de massificação.

AB: De fato, a cultura de massas é um fenômeno muito ambíguo, pois cria uma necessidade massiva de distinguir-se, de ser original. Os milhões de pessoas que usam, a cada estação, todas a mesma roupa, usam-na não para estar de uniforme, como poderia parecer, mas sim porque creem que, dessa maneira, seguindo a moda, a moda de massa, são mais elas mesmas, são mais originais. Na poesia, a um certo ponto, aconteceu um pouco isso. Não se era consciente de que uma coisa que tradicionalmente era considerada excepcional, rara, tinha-se tornado quantitativamente tão difundida que perdia seu valor. A própria figura do poeta começou a sofrer verdadeiras mutações. Disse-o também Pasolini, em outro artigo de Descrizioni di descrizioni: falou desses poetas neo-pequeno-burgueses, que escrevem seus poemas não se sabe muito bem por que, só pelo desejo de serem ou de se sentirem poetas [a mesma observação, naturalmente (Sibila)].

 

PA: O sr. falava, no estudo preliminar de Il pubblico della poesia, de um fenômeno de “dissolução  acelerada da figura sociocultural do poeta”, perceptível nas novas generações. Estava se referindo a isso?

AB: Sim, é uma fórmula um pouco complicada, mas é um pouco isso. Escreveram-se poemas notáveis, que se poderiam antologizar, mas, contudo, considero que, entre os poetas destas últimas gerações, a partir da minha geração, ou seja, da geração que começou a escrever a partir dos anos 1970 em diante, quase nenhum tem uma personalidade cultural e literária tão forte que possa ser comparada aos poetas das gerações precedentes. Se aproximamos poetas dessas gerações recentes de poetas das gerações precedentes, notamos que há um salto de qualidade embaraçoso, devido ao qual, na minha opinião, é também difícil, e às vezes mistificador, fazer antologias que compreendam Zanzotto e Zeichen, por exemplo (esses nomes me vieram por associação aliterante), porque os novos poetas não têm, digamos, esse estigma de destino, nem essa inteligência, essa grande inteligência do mundo e da literatura dos poetas anteriores, que eram muitas vezes extraordinários críticos. Não é uma casualidade que, nos poetas mais jovens, não haja nenhum crítico; a crítica é praticada um pouco de maneira oportunista, fazem-se algumas resenhas, trocam-se favores, mas não se encontram personalidades críticas [mesma observação etc. (Sibila)]. Pelo contrário, antes o poeta era frequentemente também um crítico de grande valor: Pasolini é um dos maiores críticos da segunda metade do século, Zanzotto é um crítico extraordinario, Fortini… Mas também os escritos críticos de poetas como Bertolucci, Caproni… Montale é um dos maiores críticos imagináveis. O próprio Sanguineti é um crítico muito notável. Depois, isso não existe mais: a conexão moderna de crítica e poesía, pela qual a poesia nasce de uma profunda inteligência. Uma ideia destrutiva, tremenda, que se difundiu depois de 1968, foi que os poetas podiam não ser muito inteligentes. Isso é um grande engodo. Os poetas podem não parecer demasiado inteligentes, mas sempre são, e muito. Inclusive se não escrevem uma linha de crítica ou de teoria. Então, isso empobreceu um pouco, e reduziu a cultura poética a uma sorte de subcultura, muito frágil. Como dizia Oscar Wilde, o poeta é um crítico, os gregos eram grandes críticos, o artista é, antes de qualquer coisa, um crítico, não no sentido de que escreve necessariamente crítica, mas no sentido de que, para produzir arte, é necessário ter um fortíssimo sentido crítico, de autocrítica, de o que não se deve fazer, onde você tem que se deter. Infelizmente, essa cultura literária debilitou-se muitíssimo, o declínio da cultura literária propiciou uma criatividade poética enorme, e hoje temos uma quantidade de poetas impossível de organizar criticamente [Sibila não repetirá mais o mesmo comentário, mesmo quando a passagem se aplica perfeitissimamente ao Brasil]. Do ponto de vista prático, acontece que as histórias literárias, a opinião pública, os jornalistas, os autores, querem saber quais são os poetas mais importantes de um período: então como se faz? A seleção não se produziu através dos filtros da crítica, mas através das decisões editoriais, puras e simples decisões editoriais, muitas vezes casuais. Existem cinco ou seis poetas que são continuamente nomeados, e são os mais conhecidos na Itália [ou no Brasil], mas existem no país pelo menos outros cinquenta poetas, muito menos conhecidos, que valem tanto quanto aqueles, até mais. É um puro acaso editorial que não tenham sabido se fazer escutar e publicar. Trata-se de estratégias editoriais, que às vezes se saem bem, e às vezes não.

 

PA: Uma crise, então, não apenas da poesia, como também da crítica?

AB: Por completo. A crítica não consegue mais ter coragem de dizer “sim” e “não”. Esses poetas não gostam de ser criticados. Decaiu inclusive esse estilo de comunicação entre os artistas, que sempre foi importantíssimo, o sal da comunicação entre jovens poetas, o criticar-se reciprocamente, inclusive de um modo muito contundente. Pelo contrário, tudo se transformou em uma espécie de jardim da infância, em que ninguém deve ouvir uma palavra feia, porque senão a criança se deprime e não cresce. A aspiração dos poetas foi, sobretudo, serem aceitos como tais. Uma vez que foram aceitos como poetas, a crítica quase se tornou supérflua [qualquer semelhança com a situação brasileira…].

 

O jargão da modernidade

 

PA: Poderia também ter alguma relação com a aspiração social igualitária de 1968, aplicada ao âmbito literário, segundo a qual ninguém deve ser melhor que o outro?

AB:  Sem dúvida, porque se passou de uma crítica terrorista contra qualquer atividade cultural, literária, a uma espécie de condescendência geral, segundo a qual a própria descrição dos defeitos de um autor é considerada como uma espécie de ofensa. A única aspiração desses autores é serem incluídos no panorama geral, nas antologias, no registro do próprio setor cultural, como se pode fazer parte de qualquer colegiado profissional. Isso acontece quando as artes tradicionais ficam sem público, algo que está se ampliando cada vez mais [idem…]. Porque, enquanto o público existe, julga; se um cantor lírico, cantando La Traviata ou A Flauta Mágica, demonstra não ter estudado bem a partitura, ou desafina, o público vaia. Em poesia, isso não ocorre, porque não existe um público em condições de julgar se um poeta vale ou não vale. Geralmente, é-se aceito, e os mais hábeis em se fazer aceitar terminam passando por poetas importantes, sem que ninguém tenha jamais chegado a julgá-los criticamente [ibidem…].

 

PA: Em seu ensaio “Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna” [3], o sr. formula o paradoxo de que “a poesia moderna é moderna enquanto é cosmopolita, mas é poesia enquanto é provinciana”. Poderia explicitar?

AB: Bem, era uma maneira de dizer que a vontade, o desejo dos poetas modernos de serem modernos e, portanto, de sê-lo programaticamente, criou algumas dificuldades, uma espécie de jargão internacional da poesia moderna, que por si só, enquanto jargão, só pode ser um obstáculo para a escrita da verdadeira poesia. Os verdadeiros poetas não partem da vontade de serem poetas modernos, senão de uma situação muito particular, de um “onde” e um “quando”, de uma língua particular e de uma particular paisagem, de uma experiência muito específica. Isso, naturalmente, é algo que não tem a ver com a modernidade como horizonte global. A poesia moderna virou uma entidade cultural analisável, e sem intenção particular dos autores. Em um certo ponto, notou-se que, sem um propósito definido, alguns autores que escreviam em lugares diferentes, às vezes na mais completa solidão, estavam indo, cada um à sua maneira, em uma mesma direção, transformando radicalmente a linguagem tradicional da poesia. Isso se produz a partir do romantismo alemão, com Novalis, por exemplo, em seguida na Inglaterra, com Coleridge, mais adiante, na segunda metade do século xix, com Mallarmé, Hopkins etc. (É um processo conhecido). Em um certo ponto, como ocorre com muitos fenômenos culturais, chega-se, após as vanguardas, a uma espécie de cristalização histórica, escolástica, da linguagem das vanguardas, da modernidade. A essa altura, está claro que, se os poetas querem fazer algo que valha a pena, têm de se excluir dessa espécie de programa, da vontade de serem absolutamente modernos, de serem absolutamente semelhantes a autores que já escreveram, e que escreveram tudo que se devia escrever a esse respeito. Imaginemos poetas que imitam The Waste Land, de Eliot, ou que imitam Mallarmé, criam-se escolas, e isso aconteceu, mas nós sabemos que o melhor da poesia moderna, na verdade, está feito de episódios isolados, de descobertas individuais… Porque a modernidade não é uma coisa única, nem na poesia, nem em muitas outras formas culturais, e sim diferentes experiências, absolutamente individuais. Isso talvez seja o que há de comum na poesia moderna, na arte moderna. O que há de comum, também paradoxalmente, é justamente o que é menos comunicável, a vontade de muitos artistas de ir até o fundo de si mesmos, de se arriscarem a escrever em uma língua absolutamente aderente à sua expêriencia, à custa de não serem entendidos, à custa de limitarem a própria capacidade comunicativa. Foi assim no caso de muitos poetas modernos, Rimbaud, Gottfried Benn, tantos poetas russos, Montale, Guillén, e mesmo a avassaladora capacidade de comunicação de um poeta como García Lorca é uma capacidade que deixa zonas obscuras. Compreende-se que o problema fundamental é colocar em contato absoluto, e sem reparos, nem mediações, a linguagem e a experiência. O risco, então, é o de não ser entendido e, portanto, de não ter grupo. Como disse antes, as vanguardas trataram de se resguardar desse risco formando grupos, dizendo que, naquele momento, a arte moderna era tal, e que devia ser aceita ou rechaçada, mas que não havia outra escolha. O artista, por seu turno, que trabalha individualmente, frequentemente se encontra em uma situação de solidão, de fracasso, ou então se dirige a um público sumamente limitado, para ser fiel a si mesmo. Ocorre, pois, que a modernidade acabou sendo, muitas vezes, uma ideia fabricada sobretudo nas universidades, mais uma ideia de professores que de escritores.

 

PA: Pode-se ver nesse mesmo ensaio uma espécie de inversão da valoração habitual dos termos “cosmopolitismo” (geralmente associado a um sentido positivo, de avanço, riqueza e centralidade cultural) e “provincianismo” (geralmente associado a um sentido negativo, de atraso, pobreza e marginalidade)?

AB: O ensaio é polêmico, porém mais no título que em seu desenvolvimento. No desenvolvimento, limito-me a dizer que autores como César Vallejo, Ungaretti, Machado, Gottfried Benn, William Carlos Williams, que estão indubitavelmente entre os maiores poetas modernos (e a respeito dos quais não ocorreria a ninguém dizer que são atrasados), atuaram, não obstante, como poetas — digamos entre aspas — “provincianos”. Frequentemente fidelíssimos a um certo lugar, com uma língua, um sistema metafórico e lexical que se apresenta como fruto de uma experiência radicada em um lugar específico. Deste ponto de vista, poderiam ser considerados poetas provincianos, porque não são poetas que vão aprender a poesia moderna em Paris, e que tratam de escrever “em moderno”; pelo contrário, são, em geral, poetas que inventaram formas particulares de mediação entre um patrimônio inclusive folclórico, popular, tradicionalíssimo, e a linguagem da poesia moderna. Vemos isso em Lorca, como tambén en outras artes: a música de Bela Bártok, por exemplo, ligada a cantos populares e tradicionais húngaros. O sentido dos vínculos com o corpo vivo da cultura da qual se provém produziu uma poesia moderna muito mais corpórea, potente, que a dos poetas que buscaram na forma absoluta a linguagem da modernidade. No ensaio critico, naturalmente, a linguagem programaticamente vanguardista dos surrealistas franceses, e o esteticismo enciclopédico de Ezra Pound, que pensava que a melhor poesia devia ser obtida com a mistura da melhor poesia produzida em todos os países do mundo, uma espécie de enciclopédia de bolso do melhor, que termina, contudo, por produzir o pior [programa adotado inteiramente pelo concretismo brasileiro (Sibila)].

 

PA: Recentemente, o sr. renunciou a seu posto na universidade, fato que produziu uma polêmica nos principais jornais italianos sobre a situação atual da universidade: poderia resumir os termos dessa polêmica?

AB: Mais do que resumir os termos da polêmica, poderia dizer que se tratou de um caso privado que se transformou em um caso público, sem que eu o quisessse, nem o esperasse. Deixei a universidade após ter ensinado vinte anos, simplesmente por tédio e por vontade de mudar de trabalho; de algum modo, como um pequeno desafio, para mostrar que era possível sair de uma certa jaula institucional, muito segura, e ver se, como autor, conseguiria viver profissionalmente do meu trabalho. O tédio creio que é um sentimento bastante natural. Eu começava a experimentar o tédio do ensino. Penso que nenhum docente deveria seguir ensinando se se dá conta de que sente tédio, porque a primeira coisa que transmitirá será isso, para além de todo conteúdo cultural. A polêmica estourou porque, na Itália, ninguém nunca deixa a universidade, e ninguém acha que entediar-se ensinando seja um problema.

 

PA: Vê uma crise da universidade na Itália, e talvez fora da Itália?

AB: Vejo uma profunda crise de todo o sistema educativo, pelo menos nos países ocidentais, da escola primária até a universidade. Não se sabe muito bem o que ensinar, nem como fazê-lo. Todo o ensino deveria ser colocado sobre novas bases. Por outro lado, eu mesmo, especialmente como escritor, sinto também a profunda inadequação da transmissão do saber nas instituições universitárias. Porque a transmissão do saber frequentemente se produz por vias muito mais informais, contatos individuais, formação de pequenos grupos, de pequenas revistas, que podem durar muito ou pouco, não importa, um contato direto entre quem escreve, quem dança, quem pinta, quem compõe música, e os novos aprendizes. Tudo isso não acontece nas universidades, não há uma relação suficientemente direta, espontânea, natural. Há também muita hipocrisia no ensino universitário. Muitas vezes, os docentes fingem saber coisas que, na verdade, não sabem, ou não sabem suficientemente bem e, portanto, o saber que se transmite é um saber genérico, pálido, anêmico, que não serve para muita coisa. Logo, no mundo atual, tem-se a impressão de que a única relação que se pode ter com a literatura é uma relação de estudo. Com o passar dos anos, sinto cada vez mais a necessidade de não ter uma relação de estudo com a literatura, mas sim uma relação mais livre, de leitura. Também a crítica está se convertendo cada vez mais em estudo da literatura. A grande crítica não era estudo da literatura, era também a história de um encontro entre um leitor, ou uma geração de leitores, e um conjunto de obras. Tinha-se necessidade, então, de instrumentos muito más dúcteis, que são os instrumentos da ensaística crítica. O estudo literário é, como dizia Mario Praz, um cortar o frango em vinte partes, sem nunca chegar a saber se o frango é comestível ou não. Ensina-se a seccionar a literatura, a fazer sua vivissecção de mil maneiras, porém não se ensina a ter um vínculo vivo com a literatura, porque os próprios docentes são frequentemente indiferentes ao valor literário, e a literatura, em suas próprias vidas, não significa muito.

 

Os “intelectuais” desprezam a alta cultura

 

PA: Qual pode ser a causa desta situação na crítica e no ensino da literatura?

AB: O predomínio do metodologismo, em parte, levou a isso. O método, a ideia de método é muito tranquilizadora, porque se sabe sempre o que fazer com qualquer obra de arte: começa-se a cortar da esquerda para a direita, de cima para baixo, ela é transformada em quadradinhos, em triangulozinhos, em circulozinhos, no fim o trabalho está feito, você mereceu o dinheiro da investigação, contou-se quantas vezes aparece tal ou qual palavra em um certo texto, quantas vezes aparece uma forma sintática e, feito isso, evitou-se, além disso, entender se de verdade era possível ter uma relação com esse texto, ou não. O problema está resolvido assim, pulando-o.

 

PA: Outra figura que parece em crise neste final de século é a do intelectual. O senhor publicou recentemente um livro que tem o sugestivo título de O herói que pensa: quem seria esse herói?

AB: O herói que pensa é justamente o intelectual. O título é uma forma um pouco insólita, entre irônica e enfática, de definir o intelectual. O termo “intelectual” usualmente dá uma ideia algo tediosa, que não expresa o páthos do mesmo. Em um certo ponto, digamos, dei-me conta de que a maior parte dos chamados intelectuais, na verdade, não o são. Veio-me à mente uma definição, que poderia ser esta: “Diz-se intelectual aquele que, quando compreendeu algo novo, algo novo realmente acontece em sua vida”. Pela cabeça dos intelectuais habitualmente passam as mais diversas ideias, mas nas suas vidas não ocorre nada diferente do que acontecia. Significa, pois, que as ideias não têm nenhum valor para os próprios intelectuais. Podem dizer, escrever, manipular, ensinar, transmitir milhões de ideias, mas isso não muda nada em suas vidas. Não digo que sua vida tenha que mudar no sentido, digamos, de escolhas radicais; mas, pelo menos, não sei, que mude sua digestão, que fiquem melancólicos… Algo deve ocorrer! Então, para mim, o intelectual é aquele para o qual o pensamento, o pensar algo, o compreender algo, é um evento às vezes inclusive traumático na vida, e requer imperiosamente alguma transformação, alguma decisão, alguma mudança pelo menos mental, de perspectiva. A administração das ideias, por outro lado, frequentemente não requer intelectuais, mas sim funcionários da cultura.

 

PA: Podemos ver este fenômeno em relação com a seguinte imagem que o sr. dá da sociedade pós-moderna em L’eroe che pensa: “pareceria uma superfície de mar coberta de restos de naufrágio mas, na verdade, não é mais do que uma tíbia piscina em que flutuam algumas garrafas de plástico”?

AB: Sim, a imagem é a de uma intelectualidade de tipo universitário, que tem a garantia total, no fim, de que não corre nenhum risco, que tem com as ideias uma relação, digamos, muito asséptica, que se reúne periodicamente em hotéis confortáveis, para discutir a morte de Deus, do Apocalipse ou da Revolução, mas que nunca põem em discussão seu modo de ser, a própria categoria de intelectuais em sua relação com a sociedade. Por isso, tenho a ideia de uma progressiva perda de potencialidades pragmáticas, diria, além de ativas, morais e políticas da cultura. Parece-me que a cultura está se convertendo, cada vez mais, em uma zona administrada da sociedade tal como é, uma espécie de gueto, de zoológico, em que são mantidas algumas espécies particulares, culturais, porém nada disso exerce uma influência, um contágio no resto da sociedade. A cultura hoje tende a não julgar mais a sociedade; a maior parte dos intelectuais não julga, por exemplo, a forma das instituições dentro das quais vive sua vida cultural (queixam-se delas, o que é normal, porém não as julgam) e, portanto, a própria cultura tende a não pronunciar juízos de conjunto sobre a sociedade. Isso é um perigo, porque nossas sociedades estão viajando a velocidades extraordinárias na direção de um futuro que não conhecemos, essa velocidade cresce progressivamente, pelo desenvolvimento tecnológico e esmagadoras necessidades econômicas das sociedades modernas. A economia se converteu na Divindade; a Economia e a Tecnologia, como as duas caras de um mesmo Moloch, transformaram-se nas duas divindades de cujos desígnios é impossível escapar. As sociedades, efetivamente, adequam-se totalmente a isso, e então a cultura não consegue deter ou refrear um pouco esses processos, que muitas vezes são degenerativos, porém sequer tem a coragem de julgá-los.

 

Sociedade uniformizada: perigo para a democracia

 

PA: Qual seria, então, na sua opinião, a resistência possível dos intelectuais, da poesia?

AB: O livro L’eroe che pensa termina, não casualmente, com um ensaio, muito estranho, que tem uma forma estilística bastante insólita, uma espécie de representação comentada, uma teatralização, de três arquétipos do intelectual moderno: Hamlet, de Shakespeare, Alcestes, o Misantropo, de Molière, e o príncipe Andrei Bolkónski, de Guerra e paz, de Tolstói. Isso para recordar aos intelectuais de hoje, que se converteram frequentemente em verdadeiros funcionários, como dizíamos, de que existe um modelo, uma tradição, que os intelectuais têm uma tradição, e que o perigo surge quando os intelectuais esquecem a tradição a que pertencem, e obedecem somente às regras da comunidade e da corporação em que estão inseridos. Essa tradição, como se pode ver nesses três personagens (poder-se-iam buscar outros exemplos, mas dificilmente existirão outros exemplos de intelectuais modernos como Hamlet e Alcestes), é uma tradição de solitários. Com eles, compreende-se que o exercício da inteligência é irreconciliável com o exercício do poder. Isso poderia parecer absurdo, porque então quereria dizer que a cultura não pode exercer nenhum poder. Não, creio que o poder da cultura consiste em não buscar nunca arranjos com o poder, em ter o poder das ideias. Não se deve crer que as ideias são impotentes; as ideias são ideias, e seu poder de influência não deve passar pela conversão do intelectual em político, ou do intelectual em manager, ou em organizador, como ocorreu, por outro lado, em grandes teorias modernas: em suas famosas Teses sobre Feuerbach, por exemplo, Marx dizia que, até então, a filosofia tentara entender o mundo, e agora se tratava de transformá-lo. Na verdade, a mente, a teoria, só pode tratar de entender o mundo. O mundo, em um certo sentido, transforma-se por si mesmo, e se transformou com maior velocidade do que Marx imaginava, por sua própria força. O pensamento, na verdade, como vemos nesses arquétipos do intelectual moderno, não quer exercer o poder, rechaça profundamente o exercício do poder. Hamlet não quer reinar, deve vingar-se, tem que tentar cumprir seu dever, colocar as coisas em seu lugar, vingar o delito cometido. Então, o chamado do livro é à crítica despreconceituosa do que acontece, sem prudências. Na história política do século xx, as maiores verdades, por exemplo, sobre o que foi o comunismo, foram ditas por autores isolados, por autores que logo foram difamados. George Orwell, por exemplo, ou Ignazio Silone. E, com muita frequência, os grandes teóricos ou filósofos, como Lukács ou como Heidegger, por seu turno, foram incapazes de entender o nazismo ou o stalinismo ou, pelo menos, não conseguiram avaliar todo seu potencial destrutivo. Por isso, os intelectuais não devem temer a solidão, em absoluto. Entendo por solidão não uma solidão estéril, mas uma solidão produtiva de ideias. Não devem tentar fazer com que suas ideias sejam exitosas, pois no mesmo momento em que tratam de transformar as ideias em algo potente, essas ideias deixam de ser as mesmas. As ideias que se tornam potentes não são mais as mesmas que tinham sido pensadas, e, portanto, devem ser simplificadas, devem ser transformadas em ideologia, em doutrina, em cultura socialmente influente, devem passar através de uma quantidade de filtros e de meios, que são aqueles dos quais nos servimos. Naturalmente, não podemos não nos servir dos jornais, da televisão ou do rádio, mas cuidado ao aderir completamente ao modelo, cuidado com não sentir que entre cultura e instrumentos de comunicação há uma brecha e uma desmesura radicais… E sempre se deve estar muito atento, porque todos operamos no limite entre a alta cultura e a cultura de massas. Sentir a diferença entre ambas é fundamental, na minha opinião, para um intelectual. O que está acontecendo hoje é que a maior parte dos intelectuais, inclusive universitários, que deveriam ser os guardiães da alta cultura, na verdade amam a cultura de massas, e eles mesmos desprezam em certo sentido a alta cultura, que não tem significado algum em suas vidas. Para compreender o que estou dizendo, você poderia se perguntar: o estudioso de Dante, ou de Quevedo, ou de Cervantes, lê Dante, Quevedo, Cervantes nas horas livres, ou lê somente como objeto de trabalho, para produzir sua comunicação, a pesquisa que soma pontos para seu currículo? Bem, se esse estudioso não lê Dante, ou Quevedo, ou Cervantes, antes de ir dormir, sem nenhuma finalidade ulterior, então já sabemos com que tipo de intelectual estamos lidando. Então creio que a distinção entre intelectual e político, entre funcionário da cultura e intelectual, é uma distinção polêmica, talvez desagradável, mas que não deve ser considerada terrorista. A crítica não deve ser considerada terrorista. Uma sociedade que quer ser democrática tem que se habituar ao exercício da crítica, porque, como uma vez disse Leopardi, elogiando a sociedade grega (caso se possa falar de sociedade grega, pois na verdade era uma série de sociedades, de pólis distintas entre si), os gregos tinham uma capacidade de tolerar, no interior da própria comunidade, uma grande quantidade de estilos de vida, muito diversos, e de tais extravagâncias que nós não seríamos capazes de tolerar. Nossas sociedades são infinitamente mais uniformes, mais uniformizadas, e isso é um grande perigo para a democracia.

 

PA: Da leitura de seus livros, particularmente os três últimos, Tra il libro e la vita, La poesia verso la prosa e L’eroe che pensa, parece desprender-se, junto com a constatação do declínio de dois dos maiores gêneros literários da modernidade, a poesia e o romance, a indicação do gênero ensaístico como o mais adequado para dar conta do atual momento histórico: é isso? Poderia nos explicar sua visão?

AB: Esse é um discurso que, para mim, está vinculado à Europa [Sibila o considera aplicável em grande parte ao Brasil]. Minha avaliação da ensaística tem a ver com a Europa. Sinto que a Europa esgotou suas capacidades mitopoéticas, sua capacidade de invenção tanto poética, quanto narrativa. Isso não significa que não possam nascer ótimos poetas ou narradores, mas em geral a cultura europeia, com o fim da modernidade, parece-me ter esgotado seu poder de inventar grandes mitos. Por outro lado, parece-me que é uma cultura frequentemente insuperável do ponto de vista intelectual. O aspecto intelectual, seja o antigo, da tradição grega, seja o moderno, porque não devemos esquecer que tivemos essa grande fratura cultural que se produziu na metade do século xviii, com a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot. A Enciclopédia de Diderot e D’Alembert é a Bíblia do mundo moderno. É uma enciclopédia ensaística, uma organização do saber em forma ensaística. Em seguida, o Dicionário filosófico de Voltaire. Essa grande ensaística ainda não foi estudada suficientemente como literatura. Se se pensa também na ensaística de muitos poetas: a de Baudelaire, por exemplo, é grandíssima; a de Coleridge; a de Leopardi, sua prosa, as Operette morali. Os ensaístas só são considerados importantes se entram na história da filosofia institucional; caso contrário, não. Tudo que se escreveu sobre Nietzsche, que seria, a rigor, um ensaísta, justamente por ser colocado no âmbito da filosofia, adquire uma dimensão enorme. Se, contudo, fosse colocado em uma historia da ensaística, encontrar-se-ia junto com muitos outros autores, sem demasiada maravilha. Naturalmente, Marx, Burckhardt, Ruskin, na Itália, Francesco de Sanctis, o grande historiador da literatura… E a própria narrativa e a poesia do século xx está intensamente nutrida, sustentada, impregnada, circundada de ensaística. Proust, A la Recherche, é uma obra ensaístico-narrativa. As obras de Kafka são ensaística em forma de anedota, de parábola, de acordo com outra tradição, que é a judaica. Poetas muito importantes como Eliot são importantes não só pela originalidade de suas composições poéticas, como também por sua ensaística, e talvez não fossem vozes tão autorizadas sem esta última. Os poetas que não escreveram ensaios para justificar seus sistemas poéticos obtiveram menos êxito, uma menor capacidade de se fazer escutar. A ensaística é o tecido conectivo da cultura, além de ser um gênero que frequentemente emerge por si mesmo, como em alguns dos ensaístas máximos do século xx. Kierkegaard é um dos maiores ensaístas, em absoluto; Montaigne e Kierkegaard podem ser vistos como os dois fundadores da ensaística moderna. Mas no século xx temos grandíssimos ensaístas, como Karl Kraus, como Simone Weil, como Ortega y Gasset… Na Itália, há alguns muito valiosos: Gramsci, por exemplo, é um notável ensaísta, embora a sua seja uma qualidade estilística que quase esconde a originalidade, busca a criação de uma prosa média italiana que não existia antes, sóbria, muito racional, muito límpida. Há uma grande quantidade de outros autores, alguns dos quais, para mim, foram fundamentais: por exemplo, a convergência de um poeta como Auden e de um filósofo como Adorno. Adorno é um filósofo que vem da tradição existencialista, de Kierkegaard, sua forma fundamental é tendencialmente aforística, não chega, em geral, a construir ensaios extensos. Minima moralia e os poemas de Auden creio que são os modelos estilísticos que me influenciaram em maior medida.

 

PA: Em um de seus ensaios, o sr. fala do livro Satura, de Eugenio Montale, publicado em 1971, como uma fronteira entre a poesia moderna e a poesia da pós-modernidade: em que sentido?

AB: Montale, efetivamente, é um caso muito instrutivo, que logra esclarecer essa passagem da modernidade à pós-modernidade. Os primeiros livros de Montale, Gli ossi di sepia, Le ocassioni e La bufera, são livros tremendamente árduos, nos quais parece que a comunicação está praticamente proibida; a condensação das metáforas, das alusões, inclusive pessoais, inextrincáveis, é densíssima. Em um certo ponto, Montale entra em uma crise, para dar-lhe um nome, ou pelo menos em um período de desnudo silêncio, do qual saiu com uma forma literária completamente nova. Acho que essa distância imprevista que um autor sentiu a respeito de sua própria obra precedente registra a consciência de uma mudança de época. Nesse momento, Montale começou a refazer a si mesmo, a usar de novo sua própria temática poética, explicando-a, diluindo-a, transformando-a quase em uma forma de jornalismo poético, jornalismo em versos, muito mais afável, muito mais expandida; não está mais no páthos do silêncio, da reticência, do dizer pouco, da desconfiança quanto à possibilidade de comunicar os próprios conteúdos de consciência aos demais. Agora, a partir de Satura, ocorre todo o contrário: reconquista uma estranha confiança. É como se a modernidade já tivesse terminado, tivesse se convertido em clássica (Montale já era um autor clássico), e então continuasse falando para além desse classicismo. Esse “pós”, essa desdramatização da situação moderna, essa inserção de ar bom, um pouco fofoqueira, essa ironia sobre os dramas, as obscuridades e as verticalizações do estilo moderno sinalizam uma passagem de época, que pode ser definida diretamente como pós-moderna.

 

PA: Uma última pergunta, que tenho dúvida se entrará nesta entrevista: tenho a lembrança, não sei se a partir de uma conversa distante nossa, ou do fragmento de algum de seus ensaios, da figura de seu pai lendo o jornal, uma imagem vinculada, de algum modo, a sua vocação literária. Poderia nos falar desse episódio autobiográfico?

AB: Essa é mais complicada, difícil de responder. Seria necessário falar da relação que meu pai tinha com o jornal. Essa é uma pergunta cuja resposta… ficaria muito comprida. Diria que era a ansiedade de um… Meu pai, com esse jornal, isolava-se da família, e tinha a ideia de que, do mundo, não poderia vir nada além de ameaças. E nós o sentíamos. Eram ameaças… a vida não prometia nada de bom. Mas não era só isso. Era um homem que lia na mesa ao comer; arruinava a digestão para acompanhar o que acontecia. Meu pai era um homem de pouca imaginação e, neste sentido, era muito diferente de mim. Em compensação, o lado materno era mais artístico. Também meu tio, o irmão de meu pai, tinha um aspecto artístico muito forte. Mas meu pai estava obcecado pelos jornais. Talvez isso possa explicar meu ódio pelos jornais, pois são o instrumento através do qual a atualidade como é, determinada pelos poderes, chega dentro das casas e obceca a vida de todos. É a forma cultural através da qual o presente invade, domina e coloniza a imaginação e a vida cultural das pessoas. Depois, meu pai era um leitor de jornais de uma geração que tinha passado pelo fascismo e pela guerra, e por causa disso tinha uma atitude dramática diante da leitura do jornal. Tinha lido os jornais dos anos 1920 e 1940, e lê-los nesses anos significava ter em mãos algo que queima. Em um certo sentido, com os ensaios tentei imaginar um instrumento literário que guarda relação com o jornalismo, mas que é, ao mesmo tempo, um inimigo do jornalismo.

 

 

NOTAS

1] Distintos trechos desse diálogo com o poeta italiano Edoardo Sanguineti apareceram nos suplementos literários de La Voz del Interior (Córdoba, 13 de agosto de 1998), El Litoral (Santa Fe, 22 de agosto de 1998) e La Gaceta (San Miguel de Tucumán, 13 de setembro de 1998) (depois desTa entrevista, o diálogo com Sanguineti foi reproduzido completo no número 7 da revista Fénix [Ediciones del Copista, Córdoba, abril de 2000]; pode-se também lê-lo em uma entrada do blog de Pablo Anadón).

2] Berardinelli alude aos poetas Elio Pagliarani, Alfredo Giuliani, Edoardo Sanguineti, Nanni Balestrini e Antonio Porta.

3] Veja-se a primeira tradução para o castelhano das partes principais desse ensaio medular de Berardinelli em Fénix 3 (abril, 1998).

 

 

Alfonso Berardinelli, nascido em Roma, em 1943, é professor nas Universidades de Calábria e Veneza, e como autor se ocupou preferencialmente de poesia moderna, do gênero ensaístico e da situação da literatura e dos intelectuais na sociedade contemporânea. Em 1975, editou, com Franco Cordelli, a antologia Il pubblico della poesia, que revelou uma nova geração de poetas italianos. Publicou um livro de poemas, Lezione all’aperto (Mondadori, 1979), e as seguintes coletâneas de ensaios: Fortini (La Nuova Italia, 1973), Il critico senza mestiere (Il Saggiatore, 1983), L’esteta e il politico (Einaudi, 1986), Tra il libro e la vita (Bollati Boringhieri, 1990), Cento poeti (Mondadori, 1991), La poesia verso la prosa (Bollati Boringhieri, 1994) e L’eroe che pensa (Einaudi, 1998). Fez parte da direção da importante revista da esquerda neomarxista italiana Quaderni piacentini, e desde 1985 dirige, com Piergiorgio Bellocchio, a revista Diario.  Esta entrevista foi publicada primeiramente no “Blog de Pablo Anadón”.

 

Pablo Anadón nasceu em Villa Dolores (Córdoba, Argentina), em 1963. Publicou os livros de poesia Cuaderno florentino y otros poemas italianos (Università della Calabria, Arcavàcata di Rende, 1994), Lo que trae y lleva el mar (Rubbettino, Soveria Mannelli, 1994), La mesa de café y otros poemas (AMG Editor, Logroño, 2004), El trabajo de las horas (Ediciones del Copista, Córdoba, 2006), Estudios de la luz (Pre-textos, Valencia, 2010) e Hostal Hispania (Pre-textos, 2017); os livros de ensaios El astro disperso / Últimas transformaciones de la poesía en Italia (Ediciones del Copista, Córdoba, 2001, Premio de Traducción del Gobierno de Italia) e La poesía en el país de los monólogos paralelos (Editorial Brujas, Córdoba, 2014), e traduções de Dante, Gozzano, Saba, Ungaretti, Sereni, Frost, Eliot, Auden, Lowell, Iessiênin, Pasternak, entre otros. Doutor em Letras pela Universidade Nacional de Córdoba, foi bolsista na Universidade de Florença, e trabalhou sete anos na Itália, como tradutor e docente universitário. Atualmente, dá aulas de literatura em Córdoba, na escola secundária e na universidade. Dirige desde 1997 a revista e a coleção de poesia e crítica Fénix.