Começarei por uma confissão: estou certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos cinquenta anos por alguns poetas latino-americanos, mas não estou certo da existência da poesia latino-americana. Experimento a mesma dúvida diante de expressões parecidas, como “poesia inglesa” ou “poesia francesa”. Uma e outra designam realidades heterogêneas e, às vezes, incompatíveis: La Fontaine e Rimbaud, Dryden e Wordsworth. Afora essa dificuldade de ordem geral, há outra, mais imediata; embora a expressão “poesia latino-americana” pareça natural, não é: une dois termos desconhecidos. A esta altura, depois de mais de dois milênios de especulações estéticas, de Aristóteles a Heidegger, sofremos uma espécie de enjoo ideológico e já ninguém sabe ao certo o que significa realmente a palavra poesia. O mesmo acontece, no nível da política e da história, com o termo América Latina: é uma ou várias? Ou nenhuma? Talvez seja apenas um rótulo que, mais que nomear, oculta uma realidade em ebulição – alguma coisa que ainda não tem nome próprio porque também não conseguiu existência própria. Enumero essas dificuldades do tema não por estratégia retórica, mas para justificar o método que empregarei neste artigo: a negação e a comparação. Na impossibilidade de definir, ou ao menos descrever, nossa poesia pelo que é, procurarei dizer o que não é. Proponho-me limpar o terreno; uma vez desbastado, os curiosos poderão aproximar-se para ver, e sobretudo para ouvir – não a poesia, que é muda de nascença, mas os poemas, essas realidades verbais.
Se a poesia é antes de tudo um objeto verbal (um poema), será difícil tratar em um mesmo artigo diferentes realidades linguísticas. Na América Latina se falam diversos idiomas: o português, o espanhol, o francês e as línguas indígenas. Estas últimas são as únicas realmente americanas – mas não são latinas. Além disso, trata-se de literaturas tradicionais e, quase sempre, orais; portanto, também não são, em sentido estrito, contemporâneas. A poesia americana de língua francesa nos oferece um curioso problema. Se os poetas haitianos são latino-americanos, também o serão os poetas canadenses que escrevem em francês? Saint-John Perse nasceu em Guadalupe, e Aimé Césaire na Martinica. O primeiro é autor de Éloges e o segundo, de Cahier d’un retour au pays natal, dois livros que são duas visões das Antilhas. A menção dessas obras, tão profundamente americanas e ao mesmo tempo tão estreitamente ligadas à tradição poética francesa moderna, abala a noção de “literatura latino-americana”. A verdade é que a América Latina é um conceito histórico, sociológico e político: designa um conjunto de povos, não uma literatura.
As relações entre a literatura brasileira e a hispano-americana são de outra ordem. A comunicação entre o português e o espanhol foi constante no passado. E quase desnecessário lembrar que muitos grandes poetas portugueses – Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões – também escreveram em castelhano. Entretanto, a literatura brasileira não é parte da literatura hispano-americana: tem independência, caráter e fisionomia inconfundíveis. O Brasil é algo mais que uma nação: é um universo linguístico irredutível ao espanhol. A frase “Guimarães Rosa é um escritor brasileiro” se refere não somente ao registro civil como à literatura; dizer que Rubén Darío é o poeta da Nicarágua é confundir as fronteiras políticas com os estilos. Não há uma literatura argentina, cubana ou venezuelana: o mexicano Pellicer está mais próximo do equatoriano Carrera Andrade que de seu compatriota José Gorostiza. Na América hispânica, as tendências artísticas e os estilos literários, sem excluir o “nacionalismo”, sempre ultrapassaram as fronteiras nacionais, mas se detiveram diante das do Brasil. Nenhum dos grandes poetas brasileiros (Bandeira, Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cabral de Melo) influenciou a poesia hispano-americana. O grupo de poetas concretos de São Paulo, que tanto e tão legítimo interesse despertou na Inglaterra, é pouco conhecido entre nós; somente no México, ao que eu saiba, foi publicada uma antologia de poesia concreta brasileira.
A evolução literária no Brasil e na América hispânica foi simultânea, coincidente e, também, totalmente independente. Os críticos distinguem três momentos na moderna poesia brasileira, perfeitamente equivalentes a outros três na poesia hispano-americana: o “modernismo” de 1920, nossa vanguarda; a geração de 1945, à de Cintio Vitier e Alberto Girri; a “poesia concreta”, à dos jovens. As tendências, as influências, as atitudes e os manifestos foram semelhantes. Quase ao mesmo tempo brasileiros e hispano-americanos descobriram Dadá e a arte primitiva, o surrealismo e o seu próprio passado, Eliot e a tradição, o cosmopolitismo e o nacionalismo. Vítimas das mesmas enfermidades, descobridores das mesmas verdades, apaixonados pelos mesmos deuses – e, apesar disso, absolutamente incomunicados. E há mais: um olhar atento descobre que, como se se tratasse desses mitos que Lévi-Strauss estuda, e que, em cada tribo se transformam graças a diferentes combinações dos mesmos elementos, o movimento da poesia brasileira se desenvolve em uma ordem temporal simetricamente oposta à nossa: o “modernismo” brasileiro não tem o radicalismo da vanguarda hispano-americana; nada nem ninguém comparável a Huidobro. A figura mais representativa da geração de 1945, Cabral de Melo, é um poeta contido e vigoroso, o contrário do barroquismo de Lezama Lima ou da vegetação verbal de Enrique Molina; enfim, seria inútil procurar entre os poetas jovens da América espanhola um grupo como o de Invenção (Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Edgard Braga). Em 1920 a vanguarda estava na América espanhola; em 1960, no Brasil.
Diferenças
A literatura ibero-americana é dupla: a escrita em português e a escrita em castelhano. A segunda é meu tema. Mas, apenas enunciado, o tema de novo se bifurca: se o idioma espanhol nos distingue dos brasileiros, que é o que nos define diante dos espanhóis? Antes de mais nada: certas diferenças linguísticas; sobretudo: uma atitude diferente diante da linguagem que eles e nós falamos. Os especialistas afirmam que é maior a unidade linguística na América hispânica do que na Espanha. Nada mais natural: o castelhano foi transplantado para nossas terras quando já era um idioma feito e acabado, o idioma de um Estado que o escolhera como seu veículo oficial e exclusivo: o embaixador Carlos V pronuncia seu discurso perante a corte papal em espanhol e não em latim, ante o escândalo e a consternação dos ouvintes. A sorte dos demais idiomas da Península Ibérica foi semelhante à dos antigos reinos medievais, submetidos a Castela. Só que a unidade da Espanha foi sempre precária; daí a sobrevivência tanto dos separatismos regionais como das línguas e dialetos locais. Na América, ao contrário, o castelhano não teve de lutar contra o catalão e o vascuense, o galego e o maiorquino. Ninguém entre nós fala o asturiano ou o valenciano [1]. Ao mesmo tempo, o espanhol da América é uma língua mais aberta que a da Espanha, mais exposta às influências de fora: os idiomas indígenas, o inglês e o francês, os italianismos e africanismos de imigrantes e operários… O tecido linguístico revela histórias diferentes: na Espanha, a persistência da pluralidade medieval; na América, o centralismo do império espanhol e sua desagregação final: 19 países (se conto uma colônia, Porto Rico, e várias pseudonações inventadas pelas oligarquias nativas e pelo imperialismo norte-americano). O espanhol da Espanha está mais ligado à terra e às coisas, é um idioma substancialista. O da América, mais que se afundar no solo, parece estender-se no espaço. O casticismo de certos escritores espanhóis é exasperante; não o é menos o hibridismo de alguns hispano-americanos.
A atitude ante o idioma também é diferente: a nossa é crítica; a deles, de confiança. Entre os espanhóis e seu idioma não há distância; nenhum de seus escritores modernos pôs a linguagem em discussão, e um Wittgenstein ou um Joyce espanhóis ainda estão por nascer. Nós, desde a época da independência, denunciamos o passado espanhol – em espanhol. No século 20, primeiro Rubén Darío e depois Vicente Huidobro decidiram que era preciso afrancesar o espanhol – para americanizá-lo. O espanhol é nosso e não é. Ou mais exatamente: o idioma é uma de nossas incertezas. As vezes uma máscara, outras uma paixão – jamais um costume. Os espanhóis acreditam no que dizem, mesmo quando dizem mentiras; os hispano-americanos se escondem atrás das palavras, acreditam que a linguagem é uma veste. Se a rasgamos, nos esfolamos: descobrimos que a linguagem é o homem e que estamos feitos de palavras, ditas e não ditas, umas banais e outras atrozes. Embora os espanhóis também tenham tido uma atitude crítica ante sua história, o objeto implícito ou explícito dessa crítica foi sempre a regeneração ou a restauração: o retorno a uma Espanha essencial, substancial ou original. E o tema da verdadeira Espanha, que vai de Larra a Unamuno e Machado. Um tema elegíaco. Na América hispânica não há retorno, porque, como na Argentina e no Chile, não há mais história além daquela do triste século 19, ou porque, como no Peru e no México, a história é outra: o mundo pré-colombiano. A verdadeira Argentina não está no passado nem é uma essência: é uma invenção diária, alguma coisa que devemos fazer. No México o passado é uma coisa que não podemos abandonar e ao qual tampouco podemos retornar: uma tensão entre passado e presente.
Poesia hispano-americana: sensibilidade ao temporal
Os movimentos poéticos tornam visíveis todas essas alternativas hispano-americanas. O “modernismo” (1880) e a vanguarda (1920) nasceram na América hispânica e dali foram transplantados à Espanha. Nos dois casos os espanhóis acolheram com reserva essas revoluções; embora tenham acabado por adotá-las, modificaram-nas genialmente e lhes deram um banho de tradicionalismo (Unamuno, Machado e Jiménez no primeiro quarto de século; Guillén, Lorca, Cernuda, Alberti e Aleixandre no segundo). Assim, o primeiro traço distintivo da poesia hispano-americana, por oposição à espanhola, é sua sensibilidade ao temporal, sua decisão de enfrentar a modernidade e fundir-se com ela. Sua nostalgia de futuro, diria. O outro traço: sua curiosidade, seu cosmopolitismo. Os primeiros haiku de língua espanhola foram escritos por um mexicano, Juan José Tablada, cerca de 1919; três anos depois aparece outro livro seu, desta vez de poemas “ideográficos”. Enquanto Antonio Machado publica, em 1917, Campos de Castilla, Vicente Huidobro lança, em 1918, Poemas árticos.
O melhor livro de Huidobro é um extenso poema: Altazor. Seu herói é um mago-antipoeta-aviador-cometa: a tradição luciferiana do anjo rebelde e caído. O movimento se refuta a si mesmo e se resolve na imobilidade: a modernidade é um abismo em que Altazor-Huidobro se precipita. Dupla tentação: estar na ponta do tempo ou estar em um espaço que seja todos os espaços, todos os mundos. Uma cosmópole particular. A biblioteca de Babel não está em Londres nem em Paris, mas em Buenos Aires; seu bibliotecário, seu deus ou seu fantasma se chama Jorge Luis Borges. O escritor argentino descobre que todos os livros são o mesmo e que, “abomináveis como os espelhos”, repetem a mesma palavra. Altazor procura um tempo que esteja depois do tempo e desaparece no ar. Borges interroga os espelhos e contempla o paulatino desaparecimento das imagens. Sua obra se propõe a refutação do tempo; não é, talvez, senão a fábula da vaidade, como todas as eternidades que nós, homens, fabricamos.
Outra tentação, outra resposta ao Ocidente e à modernidade: encontrar um tempo que esteja antes do tempo, uma Antiguidade anterior à História. O primeiro grande livro de Neruda – um livro que marcou os que vieram depois – chama-se Residencia en la tierra. Não é o Chile nem a América pré-colombiana; é uma geologia mítica, um planeta em fermentação, putrefação e germinação: a misturada primordial. Vida não intrauterina, mas intraterrestre: “o tempo que debaixo do oceano nos contempla”. A modernidade de Residencia en la tierra é uma ambiguidade não histórica, a abolição das datas. A barbárie terrestre, genésica de Neruda, responde César Vallejo com seu “sermão da barbárie”. Sua poesia é religiosa: um sermão; e seu tema é bárbaro: não a terra do princípio, mas o homem primordial. Não o índio, nem o negro nem o mestiço – embora seja esses três personagens –, mas o órfão. Quem é esse órfão? Aqui confluem o americanismo, o marxismo e o cristianismo: o homem despossuído da América Latina: o proletariado, a classe internacional sem terra e sem pátria; e a vítima abandonada pelo pai, o homem como Cristo coletivo. A mãe desse órfão universal é uma “morta imortal”. Uma morta que não é nem a Igreja nem a História nem a terra: “o prazer que nos engendra e o prazer que nos desterra”. Não há terra, não há enterro. Há exílio.
Os quatro poetas que mencionei pertencem à geração anterior à minha. Suas obras, é desnecessário dizer, não representam toda a poesia hispano-americana entre 1920 e 1945; tampouco se deixam encerrar nas frases com que pretendi, momentaneamente, defini-las. Usei seus nomes como símbolos, ou, antes, como indicadores de certos rumos da poesia hispano-americana. Quatro maneiras de encarar a modernidade e, de certo modo, negá-la: quatro respostas à mesma pergunta. Ao contrário do que afirma implicitamente a poesia de seus contemporâneos espanhóis, para nenhum deles há uma substância original nem um passado a resgatar; há o vazio, a orfandade, a terra do princípio, não batizada, a conversa dos espelhos. Há sobretudo a busca da origem: a palavra como fundação.
Diferenças entre anglo-americanos e hispano-americanos
O destino do idioma espanhol na América suscita um paralelo com o do inglês no mesmo continente. A analogia pode tornar-se enganosa se não advertirmos que, de novo, se apresenta como uma simetria inversa. A situação dos interlocutores foi diferente, e diferente o conteúdo do diálogo. As colônias anglo-americanas eram efetivamente colônias, prolongamentos mais ou menos dissidentes dentro da grande dissidência que foi e é o protestantismo inglês. As hispano-americanas eram vice-reinos feitos à imagem e semelhança da monarquia católica. De um lado, pequenas comunidades unidas por vínculos religiosos, que as consagravam como um grupo à parte (e eleito) dentro do cristianismo protestante; de outro, uma população heteróclita esparramada por um território imenso, mas regida por uma mesma igreja e submetida a uma complexa máquina burocrática. Entre o protestantismo, as instituições democráticas anglo-saxônicas, a ideia do progresso e o capitalismo há uma relação orgânica. Assim, a independência dos Estados Unidos pode ser vista como um conflito dentro de um sistema: não uma ruptura, mas uma separação. A independência hispano-americana foi uma negação do passado espanhol: catolicismo e monarquia absoluta. Uma verdadeira revolução. Por isso muitos liberais espanhóis, como Mina, lutaram ao lado dos insurretos hispano-americanos. Os anglo-americanos fundaram uma sociedade que, longe de negar suas origens, se propunha realizar nada mais que o cumprimento da grande revolução europeia iniciada pela Reforma. Os hispano-americanos queriam derrubar a velha ordem e substituir o universalismo católico e monárquico pelo universalismo da Ilustração e da Revolução Francesa.
A resistência à independência anglo-americana era exterior, vinha da metrópole; na América hispânica a resistência era também interior: a ordem espanhola tinha se arraigado na terra. Assinalo que isso não aconteceu apenas por causa da conversão de milhões de pessoas ao catolicismo e das notáveis criações dos espanhóis no campo da cultura, mas porque todos os habitantes participavam da ordem colonial, que era a base da estrutura social. As colônias hispano-americanas formavam uma complicada rede de instituições, sentimentos e interesses que abarcava tanto os crioulos como os índios e mestiços. Entre seus horrores figuraram a escravidão e a servidão, não o outcast. Talvez por isso o nosso movimento de independência foi uma revolução abortada: adotou constituições republicanas, mas deixou intacta a ordem social, substituindo o domínio da metrópole pelo dos caudilhos militares e proprietários de terras. As instituições democráticas foram (são) uma fachada como certos recentes “socialismos” asiáticos e africanos. Uma realidade imaginária, mas perversa e duradoura. Desde então a mentira se tornou inerente à nossa vida política. A fragmentação do continente e a ação dos imperialismos, especialmente o dos Estados Unidos, consumaram o malogro de nossa independência.
Os anglo-americanos viveram sua história como uma ação coletiva, da qual se sentem responsáveis e solidários. Não importa que para Whitman essa empresa comum tenha sido sinônimo de liberdade e fraternidade, e que para Robert Lowell o seja de crime. De uma e de outra maneira, segundo seu tempo e seu temperamento, os dois poetas afirmam sua responsabilidade e sua participação. A infeliz expressão “poesia confessional” não somente evoca a grade do confessionário e o divã do psicanalista como revela a obsessão protestante com o tema do pecado original (e eu prefiro o outro tema do Ocidente, o de Rousseau e Blake: a inocência original). Mas a confissão se redime ou, mais exatamente, se purga, logo que se insere no contexto de uma sociedade e de suas convulsões históricas e morais. A atitude hispano-americana é a oposta: Vallejo, não menos religioso que Lowell, não se sente culpado, e sim vítima. Neruda, nada cristão, também não se sente culpado: acusa. Não, nós não temos vivido nossa história; a temos padecido como uma catástrofe ou um castigo. Nossos heróis são aqueles que nos defendem do tirano local ou, como Juárez e Sandino, do poder de fora. Não temos sido sujeitos, mas objetos da história. Em suma, por um lado, consagração do ato ou confissão do crime; por outro, queixa ou acusação. Dois monólogos.
Whitman e Pound são talvez os poetas representativos dos Estados Unidos (representativos não quer dizer forçosamente melhores), ambos proclamam um universalismo que é, no fundo, um (norte)americanismo. Um e outro afirmam que os Estados Unidos têm uma vocação mundial. Whitman americaniza a liberdade e faz de sua terra o lugar eleito da camaraderie. Pound acumula em seus “Cantos” os ideogramas chineses, os hieróglifos egípcios e as citações em grego e provençal. O método de Pound é semelhante ao do conquistador romano, que rouba os deuses dos vencidos. Apropriar-se de um deus estrangeiro ou de um texto alheio são ritos mágicos de significação parecida: em ambos os casos se trata menos de construir um museu universal de despojos que um santuário de ídolos eficazes. O rito é uma homenagem e também um sacrilégio, uma violação: desaloja-se a divindade de seu templo, e o texto do seu contexto. De passagem: como e por que diabos ocorreu a Pound que Confúcio podia ser o mestre dos Estados Unidos? O chinês prega uma ordem natural, fundada no tempo cíclico e em hierarquias imutáveis; os Estados Unidos, desde o seu nascimento, estão identificados com duas ideias anticonfucianas: o progresso e a democracia.
A atitude de Whitman não é radicalmente diferente: “Passage to India” deveria chamar-se “Passage to USA”. O poema canta a reconciliação entre a Ásia e a América: “the Elder Brother found, the Younger melts in fondness in his arms” [2]. Mas esse encontro é resultado de uma intrusão: o poeta norte-americano se apresenta como o descendente espiritual de Alexandre, Tamerlão, Babur, Vasco da Gama, Marco Polo e até do pitoresco e mentiroso Ibn Battuta. Em seu entusiasmo, Whitman não se dá conta de que “old occult Brahma and tender junior Buddha” [3] poderiam achar seu abraço bastante incômodo. Perturbar a meditação do ioga, abstraído na completação do Um ou na dissolução de todos os vínculos, inclusive os fraternos, é no mínimo uma impertinência. Há uma espécie de rapacidade nessa cordialidade excessiva. Um apetite realmente ecumênico; outros povos se contentaram em destruir os ídolos e os textos dos mortos e dos humilhados.
A teoria poética dos “Cantos”, o método da apresentação, é o contrário da tradução. É verdade que toda tradução implica transmutação e, portanto, desfiguração e apropriação, geralmente inconscientes. Não obstante, o ideal do tradutor é a objetividade, o respeito ao texto original. Ou seja: o reconhecimento do outro e da alteridade. A tradução é uma atividade civilizada porque nasce, como a imitação, da veneração pelo que é exemplar ou único. Suas raízes são éticas ou estéticas.
A veneração não exclui, mas, ao contrário, exige, a fidelidade. Exemplo: as versões chinesas e tibetanas dos sutras e sastras budistas. Por isso a tradução também é civilizadora: apresentamos uma imagem do outro e assim nos obriga a reconhecer que o mundo não termina em nós e que o homem é os homens. Pound foi um grande tradutor e nesse sentido foi um civilizador, e não somente do mundo de fala inglesa: seria inútil buscar em francês, espanhol ou italiano uma versão do Shin Ching comparável à sua. Mas o método dos “Cantos” está fundado em uma falsa analogia: o que Pound chama “apresentação” não passa muitas vezes de justaposição. Além disso, em nenhum caso sua escritura é realmente ideográfica, nem sequer quando incrusta ideogramas chineses em seu discurso: nesse contexto, que é o da escritura linear e fonética do Ocidente, os signos chineses deixam de ser ideogramas. Com efeito, se o significado de todos os signos é significar, que significam os ideogramas dentro de um texto escrito em inglês? Das duas, uma: ou são citações que exigem uma tradução, e esta só pode ser não ideográfica, ou são traços mágicos, signos que perderam sua virtude de significar.
Pound e Borges
Minha objeção não é apenas estética – afinal, Pound é um grande poeta –, mas também moral. Além de ingênua, sua teoria – é preciso dizê-lo, embora resulte escandaloso – é bárbara e arrogante. Barbárie e arrogância de conquistador: Roma e não Babel. É verdade que de certo modo os “Cantos” poderiam ser vistos como um poema arrancado à biblioteca de Borges. Há uma diferença: o poema de Pound tem (ou quer ter) um sentido: é a imagem do “processo histórico”, o “conto da tribo”. Um conto que para Borges, mais budista que confuciano, não tem sentido. A biblioteca de Pound é um conjunto de signos com significados contraditórios, aos quais o poeta pretende (e às vezes consegue) impor sentido; a de Borges é um sistema de signos, que, em suas combinações, dissolvem cada vez mais seus precários significados. As “ideias em ação” de Pound são, para o escritor argentino, o reverso das ideias. Ou melhor: o tema predileto de Borges não é um ato, mas uma ideia – uma hipótese… Os poetas dos Estados Unidos estão condenados ao futuro, ao progresso – a cantá-lo ou criticá-lo, dá na mesma. Nós, hispano-americanos, estamos condenados à procura da origem ou, também dá na mesma, a imaginá-la. Parecemo-nos uns com os outros, se é que em alguma coisa nos parecemos, no sentir-nos mal no presente. Somos os trânsfugas de todas as eternidades, sem excluir o tempo circular de Confúcio.
Apesar de ter misturado ao longo deste artigo, talvez excessivamente, considerações literárias e históricas, não creio na onipotência da história. Creio, sim, na soberania da poesia: um dos mais belos poemas que li (em tradução, claro) foi um hino funerário dos pigmeus, um povo sem história. Mas história e poesia se cruzam e, às vezes, coincidem. A história traça figuras e signos que o poeta deve reconhecer e decifrar. O que uns chamam “lógica da história” e outros “destino”. Um poeta hispano-americano não pode ser insensível a essa continuidade: encontrar a palavra da origem e fundar uma sociedade não são, no essencial, tarefas contraditórias, e sim complementares. Quando a história e a poesia rimam, essa coincidência se chama, por exemplo, Whitman; quando há discórdia entre uma e outra, a dissonância se chama Baudelaire. No segundo caso, só resta à poesia retrair-se, afundar-se a si mesma: “l’action restreinte” de Mallarmé. Os perigos da discórdia são a canção irresponsável ou o silêncio – a não ser que esse silêncio se resolva em Un coup de dés, coisa que acontece apenas uma vez em cada século. Os da coincidência se exemplificam no caso trágico de Maiakovski e com os casos simplesmente lamentáveis de Aragon, Neruda e tantos outros. A poesia e a história se completam, com a condição de que o poeta saiba manter as distâncias. O poder, por lei natural, tende sempre a neutralizar e anular não só as heterodoxias como as diferenças. Minha geração conheceu os dois extremos: a discórdia e a coincidência [4]. A maioria resistiu a uma e outra tentação, ao solilóquio e à retórica do entusiasmo por palavra de ordem. Embora alguns poetas de minha geração tenham escrito alguns poemas que figuram entre os mais belos da poesia hispano-americana deste século, não é isso que desejo destacar, e sim o fato de que os melhores, até agora, não esqueceram que a poesia, até na coincidência, é dissidência. Não preconizo uma heterodoxia, apesar de que, por temperamento, as heterodoxias me seduzem: afirmo que a poesia é irredutível às ideias e aos sistemas. É a outra voz. Não a palavra da história nem a da anti-história, mas a voz que, na história, diz sempre outra coisa – a mesma desde o princípio. Não sei como defini-la nem explicar em que consiste a diferença, esse tom que, sem a isolar, a torna única e diferente. Direi apenas que é a estranheza e a familiaridade em pessoa. Basta ouvi-la para reconhecê-la.
Delhi, 1967
Ouça Paz lendo seus poemas
Poesias en voz de su autor – Octavio Paz
Octavio Paz Piedra de sol 1
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Notas:
[1] É impossível tratar neste artigo do tema das línguas indígenas. Basta recordar que elas são faladas por alguns milhões de indivíduos. Se desaparecessem, como é muito possível que aconteça, a humanidade inteira, o não somente a América Latina, se empobreceria: cada língua que morre é uma visão do homem que desaparece.
[2] “Encontrado o Irmão mais velho, o mais moço desfaz-se em ternura nos seus braços”.
[3] “O velho Brahma culto e o suave moço Buddha”.
[4] Não falei dela, em primeiro lugar, por pudor; e, em segundo, porque este texto não é um panorama da poesia contemporânea hispano-americana.
PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. pp. 161-173: Poesia latino-americana.
Este texto foi originalmente escrito para o London Times Literary Supplement.. Reproduzido em Sibila a título de homenagem ao poeta e ensaísta mexicano, com autorização de sua viúva.