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A FARRA DO ALUMBRAMENTO POÉTICO (INCLUINDO “COMO FAZER DIFERENTE” OU FEMEN)

1. Na confeitaria poética

No início do século XXI, depois do paroxismo de barbárie e do paroxismo crítico dos modernismos do século XX, em tempos de urbanidade caótica, de tecnologia avassaladora, de crise ambiental, de terrorismo internacional e de confusão cultural, com o futuro transformado em um monte de cinzas pelo cadáver das utopias, com o mundo muçulmano numa cruenta guerra civil contra seus próprios modernizadores, com a Europa em decadência econômica, cultural e política, com a democracia reduzida a um impotente politiquismo administrativo e chão, com o Brasil patinando em aumentos não tão aumentativos do PIB e do consumo, enquanto mais uma vez perde o trem-bala da modernidade pelo nível abissal da educação pública e pela inépcia monstruosa do Estado idem, o aparecimento de um livro de poesia com o título de Alumbramentos (Maria Lúcia Dal Farra, Iluminuras, 2012) é muito difícil de compreender. Tento, então, o dicionário:

1. engano do espírito ou da mente; ilusão 2. sopro criador; revelação, inspiração 3. estado de quem se deslumbra; maravilhamento.

Alumbramento vem do verbo alumbrar, o que não melhora nada:

1. pôr(-se) sob uma luz viva; alumiar(-se), iluminar(-se) 2. causar deslumbramento ou deslumbrar(-se); maravilhar(-se) 3. provocar ou sentir inspiração; inspirar(-se).

Engano do espírito e da mente? Ilusão? Revelação? Inspiração? Iluminação? Maravilhamento? Deslumbramento? Não se trata, pois não se pode repetir a história, do ensimesmamento algo arrogante do parnasianismo, dando as costas ao “feio” mundo moderno por uma poesia de gabinete, nem se trata, por igual motivo, do egotismo romântico, em que o poeta, mais do que a poesia em si, dá as costas a esse mesmo mundo. Alumbramentos? Considerando o mundo em torno, ou seja, considerando que o mundo em torno está alijado de tal poesia já a partir da barreira mole desse título-chantilly, desse título-marshmallow, desse título-glace, a palavra que vem à mente é alienação: não no sentido marxista, mas psiquiátrico. Como, porém, poesia não é sintoma, a não ser da própria poesia, tal alienação é, menos do que sintoma, marca. Marca cabal de irrelevância, de uma poesia cremosa à qual a poeta “se entrega” por que… Sabe-se lá por que, pois se trata, dada a ausência do mundo, de uma questão meramente pessoal. Como cozinhar belos bolos, é uma atividade aprazível e respeitável, mas culturalmente irrelevante. A abordagem crítica, portanto, deve necessariamente começar pela questão extratextual da publicação de tal poesia.

Pois publicar é dar ao público, e dar ao público é dar à pólis, e dar à pólis é participar da vida da pólis, ou seja, da política no sentido mais lato, mas também mais profundo. É o que a arte em particular e a cultura em geral costumavam, historicamente, fazer ou tentar. Mas como pode a irrelevância alienada ter algo a dizer a um mundo que simplesmente anula, imergindo em uma cápsula de geleia semântica? Ilusão? Revelação? Inspiração? Iluminação? Deslumbramento? O círculo do sentido não fecha: não há qualquer sentido em publicar uma poesia “alumbrada” (Manuel Bandeira publicou um livro de poemas com esse mesmo título, Alumbramentos: mas foi em 1960, e era Manuel Bandeira).

Não apenas publicada, tal poesia foi, afinal, também premiada: recebeu o Prêmio Jabuti 2012. Aqui é mais fácil compreender: premiando a irrelevância “alumbrada”, o prêmio afunda definitivamente nessa mesma irrelevância, que o vinha consumindo há tempos (seu regulamento, não por acaso, é um perfeito nonsense, ao  determinar que os que já receberam o prêmio não podem ser jurados: ou o prêmio não confia em seu próprio mérito, pois não reconhece a qualificação de quem o ganhou, ou prefere investir em jurados pouco expressivos, talvez porque m ais fáceis de (im)pressionar). É, enfim, a farra da irrelevância que se completa, que se inteira, que se compacta, compreendendo a poesia, sua publicação e sua premiação. Surpresa alguma, ao contrário: a irrelevância da poesia vem servindo há décadas, mais exatamente, desde a grande confusão posterior ao fim das vanguardas, de esteio e escada para quem nela vê, não a mais difícil e desafiadora de todas as linguagens humanas, a que alguns dos maiores intelectos da história dedicaram seus esforços, mas apenas um refugo, um escolho de seu próprio naufrágio contemporâneo, ao qual se agarrar para fazer uma carreira, um nome, um passatempo.

2. Na farra da irrelevância

Tu arrancas a cor à pintura e inundas dela a vida. […] É uma arte poética brutal e serena, a tua; a arte de quem atravessou a noite da arte sem perder a inocência, o sangue e a coragem da vida. Imagens fortíssimas, as tuas – agigantas os gigantes de que partes, e torna-los, em simultâneo, mais humanos. Profundamente original, a tua voz – não conheço nada que se lhe compare. É um caminho novo o que trilhas com as palavras – no coro dos teus musos e musas renasces única e diferente de tudo. Onde muitos soçobram ao peso das influências […], tu come-las e bebe-las e deixas-te comer e beber por elas (em todos os sentidos dos verbos alimentares) e teces, dessas experiências-limite de gozo e sofrimento, uma voz inteiramente nova e íntegra, que dança sobre todas as coisas e todos os moldes, sendo sempre única e inconfundível e sábia, de uma sabedoria alquímica, antiquíssima e futurista. Nunca li nada em que a sensualidade cintilasse tão em uníssono com a solidão e a inteligência do universo […]. É mais do que um belo livro, o teu – é um livro fortíssimo. Tenho muito mais coisas para te dizer, [mas] todas as palavras me parecem pobres diante do vendaval iluminado das tuas páginas. Mas não quis adiar mais esta notícia minha, só pelo orgulho de, adiando, te conseguir escrever palavras mais lustrosas.

Adiantei-me, obviamente, ao falar em chantilly, marshmallow, glace e geleia em relação ao título do livro. Pois agora faltam palavras para me referir à pasta espessa, ao molho pesado, ao creme rançoso de seu texto de apresentação. Sim, isso que aí se lê não foi escrito em 1913, data do poema “Alumbramento” do mesmo Bandeira, mas em 2012, para os Alumbramentos de Dal Farra. À primeira vista, é muito estranho, pois completamente inusual, o uso da segunda pessoa: “Tu arrancas a cor à pintura e inundas dela a vida…”. Mas, como no caso da premiação, a razão é evidente. Quem vê a poesia como uma nobre múmia linguística à qual se abraçar para passear pelo grande baile de sua irrelevância contemporânea acredita que uma língua “nobre” e mumificada é a única adequada para falar dela: “pelo orgulho de, adiando, te conseguir escrever palavras mais lustrosas…”. Língua mumificada, ainda vá lá, mas que seja, então, ao menos bem enfeixada: “te conseguir escrever” é um português roto, como roto é todo o estilo fátuo e pedregoso desse texto de Inês Pedrosa, rasgado em elogios de matar: “agigantas os gigantes de que partes”; “não conheço nada que se lhe compare”; “no coro dos teus musos e musas renasces única e diferente de tudo”; “sabedoria alquímica, antiquíssima e futurista”; “o vendaval iluminado das tuas páginas”… O texto é simplesmente absurdo: “Nunca li nada em que a sensualidade cintilasse tão em uníssono com a solidão e a inteligência do universo”. Eu tampouco. Mas de um absurdo, mais uma vez, compreensível (ao contrário da “inteligência do universo”). Como os participantes da farra da irrelevância poética não a ignoram, ao revés, sabem bem dela, pois sabem que sem ela jamais poderiam participar da festa, pouco importa se um livro tem um título-chantilly e se sua apresentação é escrita em português-geleia: é, afinal, irrelevante. Sendo assim, por que, então, como numa grande bacia de clara em neve, não acrescentar sempre mais ar e mais açúcar enquanto se diminui a densidade? Tudo não fica mais “doce”, mais “leve”, mais “deslumbrante” ou deslumbrado?

3. Na alva do galo rouco

O FUSO DAS PARCAS

A velha cose a colcha de retalhos.
Um chapéu rola na estrada deserta.
Tudo soa como longo apito de locomotiva entrando na noite –
na mansa mão do tempo,
que engolfa.
A escuridão se arrepia nesta escrita.
A vela da esperança queima a minha mão.
Mesmo assim
não há meios de suster o brilho com que a estrela dalva
desperta
(amanhã)
a rouca voz do galo.

Seria muito fácil dizer que esse poema, exemplar da linguagem “poética” de Dal Farra em Alumbramentos (p. 26), é meramente ridículo. Pois o que pode ser mais ridículo do que um amontoado preguiçoso e parco de surradíssimos clichês? Direi, então, que é ridículo, porque nada pode ser mais ridículo, em poesia, do que um amontoado parco e preguiçoso de rançosíssimos clichês. O poema se chama, bem, “O fuso das parcas”, ou seja, trata-se de uma das mais batidas entre todas as imagens mais do que batidas da boa e velha mitologia grega. As parcas, aquelas três velhas mais do que velhas que fiam, esticam e cortam o… “fio da vida”. Alguém falou em clichê? “Não há meios de suster o brilho com que a estrela dalva desperta a rouca voz do galo”. “Suster o brilho”?! “Estrela dalva”?! Estrela da alva? “A alva” para dizer manhã, aurora? A estrela dalva desperta o galo? Que estrela dalva? Que galo? Onde mora essa senhora? Em que século vive? Estamos, de fato, falando de galinheiros sob céus estrelados?! Mas as galinhas não são hoje criadas industrialmente e vendidas a vácuo nos supermercados? Os céus não estão encobertos de gases de efeito estufa? A “estrela dalva”, que, como diz uma antiga (óbvio) marchinha, “no céu desponta / e a lua anda tonta / com tamanho esplendooor…”, a “estrela dalva” não é, na verdade, o muito prosaico planeta Vênus? Que estrela dalva?! Que galo, pelo amor de Deus?!

“A velha cose a colcha de retalhos”: aqui, deve tratar-se da digna arte da metalinguagem, com o poema falando de si próprio. “A vela da esperança queima a minha mão”: aqui, em compensação, é apenas uma metáfora kitsch. Para não falar da horrível sonoridade anasalada (talvez pela fumaça da vela?) de “ma-mi-nha-mã”. Não direi que isso ecoa, para quem tem ouvidos, “a maminha da mãe”. Tudo tem (ou deveria ter) limites (acrescento somente, então, que no famoso verso da estrela da alva e do galo rouco há um horrível “conkê”, ou um não menos terrível “cônki”, a depender de como se leia: “Não há meios de suster o brilho com que a estrela dalva…”).

Mas a verdade é que ainda não falei da linguagem do poema. Faço-o agora, numa síntese radical de uma só palavra: prosa. Prosa prosaica, em todos os sentidos. “Tudo soa como longo apito de locomotiva entrando na noite. A escuridão se arrepia nesta escrita. A vela da esperança queima a minha mão. Não há meios de suster o brilho com que a estrela dalva desperta a rouca voz do galo”. Mas posso igualmente fazê-lo em três palavras, como Joseph Conrad: o horror! o horror! o horror! A farra da irrelevância poética também é a festa do prosaísmo pseudopoético – para não falar das temáticas regressivas e solipsistas e do tratamento “abstratizante” e “literário” da matéria verbal.

Nesse sentido, o livro é perfeitamente exemplar, mesmo considerando que em Dal Farra o vezo regressivo, “campestre” ou caipira, aliado a um “abstracionismo” e a um literatismo extremados, estão um pouco além da média, mesmo para a literatista, “abstracionista” e regressiva poesia atual. O caipirismo aparece explícito em poemas como “Noite de São João” (com versos inacreditáveis como “A lua cheia roça os prados” [p. 51]), “Miragem sertaneja” (em que a figura do galo reaparece [p. 60]), “A pastora” (p. 85) etc. Já o “abstracionismo” e o literatismo são generalizados. E eventualmente explícitos: “Fúrias aladas, alaúdes, / Profecias, corpo, destemperos, / Balaústres contra o tempo,/ Gorjeios do impossível” são alguns dos versos de um poema sobre poesia (ao menos como a compreende Dal Farra), “Punhados para um poema” (p. 108). “Gorjeios do impossível”?!

4. Na cozinha da crítica

Por que, então, escrever sobre uma poesia tão radicalmente ruim? Há vários e bons motivos. Em primeiro lugar, trata-se de uma poesia não incomumente ruim, ao contrário. Em segundo lugar, sua autora, nascida em Botucatu e radicada em Sergipe, onde se dedica ao ensino de letras, é mais uma representante do vasto e sempre crescente grupo dos poetas abrigados na academia: em tempos de confusão cultural e falta de critérios, pertencer à academia tornou-se, de um lado, um refúgio seguro, acessível e confortável para os poetas (não faltam faculdades de letras espalhadas pelo país), e, de outro, um selo de “garantia” para jornais, revistas, editoras e premiações, que assim se escudam e se exculpam da confusão cultural e da falta de critérios, além de se sintonizarem ao conformismo e à caretice gerais. Em terceiro lugar, suas principais características, entre as quais o prosaísmo fraco e “gramaticalmente correto” somado à rendição gozosa e regressiva ante a incapacidade de dar conta do mundo contemporâneo, são dominantes. Em quarto lugar, sua publicação, divulgação e premiação comprovam a falência ou a desistência do meio literário em detectar a poesia-cadáver, a poesia natimorta, a poesia ociosa. Em quinto lugar, essa falência ou essa desistência denota a irrelevância atual da poesia. Pois não é assim na ciência, não é assim no mercado, não é assim nos esportes, não é assim em qualquer atividade com alguma relevância social (que não seja, portanto, um mero hobby), pelo próprio fato de que, ao ter tal atividade alguma relevância, mantém ativamente os meios necessários de aferição do mérito, cuja falta arrisca ou compromete seus resultados. Como a poesia não tem mais nenhuma importância, tudo vale, pois nada tem de fato valor, relevo, relevância.

Daí talvez se expliquem as dezenas de dedicatórias do livro, num gesto de barateamento hoje usual: se, de um lado, isso vale como óbvia “moeda de troca” no mercado interno dos meios literário e acadêmico, de outro, também tenta dar a cada poema dedicado algum valor agregado pelo nome em questão (parei de contar na 54ª. dedicatória). Na mesma direção vão as igualmente incontáveis referências a nomes de “autoridade” artístico-cultural, como Anne Sexton, Arthur Rimbaud, Antonin Artaud, Billie Holliday, Garcia Lorca, Salvador Dali, Velasquez, Van Gogh, Max Ernst, Rainer Maria Rilke, Gustave Klimt, Francis Ponge, Gaston Bacelhard…

Da completa perda dos mecanismos de aferição do mérito à inteira perda de valor (e de sentido), é um pequeno passo. Os irrelevantes e regressivos alumbramentos poéticos de Dal Farra falam de si mas também de suas circunstâncias, para parafrasear Ortega y Gasset. Tanto das circunstâncias do mundo (por radical omissão) quanto das circunstâncias da poesia brasileira (por perfeita exemplificação). Sua premiação talvez não tenha sido um equívoco, afinal.

5. Enquanto isso, fora da confeitaria…

Comparar aclara. Por isso comparo. A melhor poesia feminina atual está sendo criada coletivamente pelo grupo pós-feminista ucraniano Femen. Além da criação coletiva, usa como suporte de suas palavras o próprio corpo feminino, levando ao seu limite lógico a política e a poética dos gêneros. Com isso, tensiona todas as questões que aborda, e aborda todas as questões que quer tensionar, numa radicalidade rara em tempos de poesia irrelevante, regressiva (que o diga o galo da alva) e “alumbrada”.

A foto abaixo mostra um poema semiótico poderoso, em que, para identificar exploração sexual, escravidão e fascismo, usa-se a suástica na forma de dois SS entrelaçados, um da palavra “sex”, outro da palavra “slavery”, criando a síntese verbal-visual “sex slavery [is nazi]”, que é por sua vez reduplicada e explicitada na expressão “is fascism”. Tudo isso formando a moldura negra de um belo e alvo seio feminino, cuja forma se projeta à frente da planura das palavras, não em oferta de si mesmo, mas oferecendo a estimulação do desejo como forma de tensionar a própria mensagem que centraliza. Equilibrando o peso visual desse conjunto de palavras e carne, localizado à esquerda do tórax, uma águia nazista dominando o orbe, o mundo, está desenhada à direita, enquanto tudo é encimado por um rosto anguloso e cerrado de Valquíria loura de olhos claros, a perfeita tradução da mulher ariana, travestida, porém, sexual e politicamente, numa caricatura de Adolf Hitler.

Há uma forte evocação da arte radical do período de Weimar, época de dadaísmo, teatro expressionista e cubo-futurismo, e também do punk dos anos 1970 (Sex Pistols e cia):

A pauta temática do Femen não é, no entanto, politicamente correta, ou seja, não se limita à moldura do aceitável pela etiqueta feminista-esquerdista. Assim, promoveu uma recente manifestação anti-islâmica, por identificar, necessariamente, islã e opressão feminina, alvo central do grupo. Neste caso, o “poema” mais forte, eficiente e provocador era um convite aos muçulmanos para que fiquem nus, se desnudem (“Muslim, let´s get naked”), numa clara polissemia, pois tal nudez se refere denotativamente aos corpos mas também, metaforicamente, à crítica, à análise, ao questionamento, ao desarme, além de pôr em xeque o acobertamento do corpo feminino pela incitação a expor o masculino. Ladeiam e completam o convite polissêmico um neologismo contra o extremismo, “Sextremism”, e a afirmação-equação radicalmente anti-islâmica e irredutivelmente pró-liberdade individual de que “My body is my fredoom”:

Somados, a defesa do “sextremism” contra o extremismo, o convite ao desnudamento do islã e a afirmação radical da liberdade corporal (ou da liberdade corporal radical) põem em xeque qualquer discurso que tente relativizar o sexismo, a intolerância e o patriarcalismo islâmicos em nome da “especificidade cultural”, da “herança colonial”, da “política imperial” ou o que seja. Fica implícito (o único elemento implícito, aliás) que para o grupo Femen qualquer defesa do inaceitável é inaceitável. Se restasse alguma dúvida, diz-se simplesmente “não” à sharia, a lei islâmica (ou talvez não tão simplesmente: note-se a linha vermelha, como um vergalhão, que desce do ombro esquerdo para a palavra “sharia”, culpando graficamente a lei islâmica pelo sangue das mulheres brutalizadas, entre outras coisas, por chicotadas [um dos castigos mais comuns avalizados por tal lei]):

Ecumênico, o grupo também ataca a patriarcal Igreja Ortodoxa Russa. Em uma recente visita do Patriarca Cirilo a Kiev, o velho sacerdote, seu líder máximo, cujo nome em russo é Kirill, foi recebido, em suas longas vestes negras cobrindo o corpo inteiro, por belas mulheres seminuas que traziam pintada no tórax uma mensagem simples, clara e, ao mesmo tempo, tanto metonímica (o nome do líder para referir a instituição) quanto paronomástica: “Kill Kirill” (“Matem Cirilo”). Poesia feminina contemporânea é isso. O resto é confeitaria (ou jardinagem: o caráter feminino atrasado da poesia de Dal Farra, de viés doméstico, além de domesticado, coerente com sua visão regressiva da própria poesia, enquanto isso se manifesta em poemas sobre “Vasos com rosas” [p. 80], que “Ensinam (humildes) o pacífico existir”…).

O que poderia demonstrar de modo mais cabal e irredutível o completo arcaísmo da igreja do que o contraste entre seus homens sisudos cobertos de preto e a modernidade do corpo seminu de uma mulher de jeans com o tórax grafitado? A publicidade da Benetton, tida como das mais ousadas da mídia mundial, sempre buscou esse efeito, mas na publicidade da Benetton isso nunca passou de um efeito. Aqui, tudo é real. Não por acaso, a igreja também está no centro de uma ação recente de outro grupo feminino eslavo, o coletivo russo Pussy Riot (cujo nome significa algo como “desordem vaginal”). Três de suas integrantes invadiram, em março de 2012, a Catedral de Cristo Salvador em Moscou, em protesto contra as eleições presidenciais russas, que culminaram com a previsível reeleição de Putin. No altar, cantaram um punk rock em que pediam à Virgem Maria para tirar Putin do poder, além de acusar o Patriarca Cirilo (o mesmo Kirill que o Femen quer to kill) de crer mais em Putin do que em Deus (foram presas e condenadas a dois anos de prisão por “desordem e incitação ao ódio religioso”; sim, aqui tudo é real).
A maioria dos membros do Femen, invertendo o uso e o abuso pela mídia e pela publicidade do corpo feminino como instrumento comercial, é de belas mulheres jovens, magras e de cabelos longos, como Sonia Shachko:

Mas o teatro político-poético do grupo vai além. Evocando mais uma vez a linguagem de Weimar e dos Pistols, num protesto contra a organização futebolística europeia, a UEFA, e contra a polícia de Putin (cada aparição do grupo é uma criação semiótica tematicamente dirigida), que o grupo chama de KGB, uma matrona tem a parte de baixo do corpo vestida como um policial, o tórax exposto com dois grandes seios maternais e a cabeça masculinizada de Adolf Hitler, cercada por beldades seminuas cujos rostos estão cobertos por balaclavas das forças especiais, enquanto ostentam longos cacetetes negros. A manifestação, por ocasião da final da Eurocopa em Kiev, de um lado dizia ironicamente para a UEFA respeitar a KGB (“Respect KGB UEFA”), e, de outro, afirmava ambiguamente ser a própria UEFA uma KGB que se acata (outra leitura da mesma frase), pois o grupo considera que a organização não dá importância ao aumento da prostituição e mesmo do tráfico de mulheres associados aos seus grandes eventos internacionais. Em todo caso, havia também um texto não ambíguo: “Fuck KGB”.

O grupo não respeita nenhum tema, logo, aborda todos. As questões do mundo contemporâneo não o intimidam, ao contrário, o incitam. Uma de suas criações mais sinteticamente expressivas explora a outra parte, ou contraparte, de sua marca registrada e constante icônica, os seios nus: ou seja, as calcinhas. Para se manifestar contra a possível proibição, no Brasil (há uma seção brasileira do grupo, que, coerentemente, se internacionalizou), do parto caseiro (não pela mitificação de classe média pseudomoderna do “parto natural”, mas pela liberdade de escolha e corporal feminina), criaram uma cena com mulheres de calcinhas ensanguentadas parindo bonecas, expondo ao mesmo tempo o mênstruo, sempre ocultado (que aparece em falsa e anódina cor azul em todas as propagandas de absorventes), e o que a ele se relaciona diretamente, ou seja, a gestação e o parto, com seus fluidos corpóreos. Ao mesmo tempo, as bonecas servem de suporte à afirmação-equação em duas partes: “Nasci livre”, [logo] “Sou livre”:

Em seguida, com as bonecas dispensadas e as mulheres em pé, as calcinhas ensanguentadas fazem um giro semântico e passam a significar estupro, associadas às palavras “Violação não”. Arte performática é isso, o resto é “conceito”, arte “abstrata”.

A poética do grupo Femen, centrada em palavras que fazem, muitas vezes, um uso poderoso da linguagem propriamente poética (“Kill Kirill”), ou fundem ao corpo uma palavra de ordem, que se torna corpórea e organicamente articulada (“No sharia” pintado em pele feminina), junto ao uso motivado das demais variáveis do suporte, ou seja, o corpo feminino seminu e suas implicações e contradições (apelo sensual e rejeição radical ao sexismo através do “sexismo extremista”, ou “sextremism”, do próprio grupo), é, além disso, criada para e com a mídia, isto é, incorpora, “sequestra” a mídia para sua realização poético-política e para sua divulgação, que se fundem e se confundem, resolvendo assim o eterno problema moderno do divórcio entre o poeta e o público.

A alienação letrada e confeitada de que Dal Farra é apenas um exemplo entre muitos, e que domina a poesia brasileira contemporânea, não é uma inevitabilidade de um tempo de confusão e caducidade cultural e estética, portanto, não tem nessa confusão e nessa caducidade uma defesa ou uma justificativa. Tempos confusos exigem da arte, não devaneios ou alumbramentos regressivos e negacionistas (da confusão cultural e de suas dificuldades), mas clarezas radicais ou radicalismos claros, que usam, contra a gosma do confuso, a cortante fuga para frente. A força poética e política do Femen (no último caso, não quanto aos resultados, mas quanto às tensões e intenções) tornam a poesia de gênero, feminina ou outra, assim como a poesia em geral que hoje se pratica, um rançoso e natimorto neoparnasianismo, poesia de gabinete para gáudio do autor e de seu grupo, imersa em lamúrias pela indiferença do público e pela dureza indiferente do mercado, além de compensatórias autocongratulações intragrupais (incluindo as dos prêmios literários). A essa poesia anêmica, a essas lamúrias lânguidas e a essas congratulações pálidas responde o curto e cortante grito agudo e metálico de uma antiariana valquíria seminua e sextremista: Fuck! Kill Kirill! Kill!


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).