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John Galliano: de heroi a crápula

John Galliano foi demitido pelo judeu-espanhol Sidney Toledano, CEO da Maison Dior, do cargo de diretor criativo, em decorrência de proferir ataques verbais a duas mulheres, em um vídeo, feito no café La Perle, de Paris, no qual igualmente declara seu amor por Hitler. Ele já estava suspenso de suas funções em virtude de um inquérito policial em que consta como réu, pelo fato de irrogar insultos raciais a um casal, poucos dias antes de dizer “I love Hitler” no La Perle.

Linda Grant, do The Guardian, em artigo intitulado “Galliano and the taste for transgression”, de 1o de março, me chamou a atenção para o assunto, ao escrever: “Galliano will not be the first genius to be an antisemite: both Ezra Pound and T. S. Eliot embedded such thoughts in their poetry, but Galliano lives and work in a business in which many of his bosses, his clients, his friends and his associates are Jewish”[1] . A comparação de Galliano (moda, mercado) com Pound e Eliot me parece bastante deslocada, revelando, entretanto, que esses gigantes da poesia e da cultura cumprem pena eterna. Afirma ainda Grant, procurando uma explicação para as falas do designer, que todas as coleções dele tiveram, na verdade, como tema a “transgressão” e a “quebra de tabus” e que, portanto, proclamar amor a Hitler é mais um de seus atos transgressivos, o que sempre lhe foi cobrado pelo mundo fashion. Grant condena Galliano mas sua explicação é tola; entretanto, mostra, a quem quiser lê-la, o desprezo pela arte que, em algum momento, quebrou, de fato, tabus e transgrediu normas.

Uma justificativa mais razoável e menos “inglesa” me veio da articulista independente de moda Lydia Dishman, judia: “a tendência de Galliano de criar coleções com orçamentos milionários e de fazer roupas pouco reproduzíveis o fez cair”[2] . Prossegue Dishman: “o foco, cada vez maior, em roupas simples, acessíveis às massas, vai fazer com que o verdadeiro couturier e sua arte desapareçam”. Outra judia, Judith Thurman, da New Yorker, recorre também à alta cultura para comentar o comportamento de Galliano: “In that sense, Galliano is in supremely talented company: not just Coco Chanel but also Wagner, Céline, Ezra Pound, Leni Riefenstahl”[3] . Entretanto, aborda, com pertinência, o tema quando afirma que todo o mundo da moda é, em si mesmo, “eugênico”.

Tal observação me trouxe à tona Joseph Arthur de Gobineau (1816 — 1882).  Gobineau, diplomata, escritor e filósofo francês, foi o “teórico” do racismo no século XIX. Seus textos serviram de base à doutrina de Hitler. Sua segunda missão diplomática deu-se no Brasil. Aqui chegou em 1869, enviado por Napoleão III. Nunca escondeu sua decepção com o país, que deixou em seguida (1870). Segundo registros, para ele o Brasil estava marcado pela presença de raças inferiores (pardos, negros, mulatos)  e sua única saída seria o incentivo à imigração de “raças” europeias superiores. Há um francês encarnado em Hitler. Embora seus escritos tenham sido centrais a Hitler, Gobineau ressalvava os judeus como raça superior.

É preciso lembrar o caso do militar francês, de origem judaica, Alfred Dreyfus, em 1894, quando a Revolução Francesa já havia emancipado os judeus, conferindo-lhes cidadania. É preciso lembrar que Cristian Dior costurou para as mulheres dos nazistas durante a ocupação de Paris na Segunda Guerra, antes de estourar, no “mundo livre”, em 1946, com o seu New Look.

O Marais, onde se encontra o La Perle, é o mais tradicional bairro judaico de Paris. Do Marais saíram milhares de judeus para os campos de concentração de Auschwitz e de Birkenau. O termo antissemitismo foi inventado pelos franceses, em razão de seu próprio racismo. A França concentra a maior comunidade judaica da Europa. Esse é o verdadeiro cul-de-sac, o verdadeiro beco-sem-saída da cultura francesa.

Toledano, Galliano, Sarkozy, Bernard Arnault e esposa

Arnault, o anticomunista

Galliano nasceu em 1960, em Gibraltar, território ultramarino inglês, península que se situa no extremo sul da Espanha, fazendo fronteira com ela ao norte. Seu pai era um encanador gibraltino e sua mãe, espanhola, uma dona de casa. Gibraltar está dentro da Espanha, perto, por exemplo, de San Roque. Seu nome civil explica vários aspectos da questão: Juan Carlos Antonio Galliano-Guillén. Em 1984, graduou-se em design de moda no St. Martins College of Art & Design de Londres. Em 1995, esse gay-punk-anglo-espanhol foi convidado por Bernard Arnault, proprietário da LVMH, que lançava então um novo tipo de negócio, o da aquisição desenfreada de várias marcas de luxo, visando a concentrar a operação de vendas em uma única empresa, para ser o diretor criativo da Givenchy. Passados dois anos, Arnault pediu a Galliano, diz a lenda, “que levasse sua excentricidade ‘inglesa’ para a Christian Dior”, que, àquela altura, encontrava-se em franca decadência.

Arnault controla hoje cerca de vinte marcas de bebidas de luxo, entre elas, Moët & Chandon, Dom Pérignon (vinho) e Veuve Clicquot, controla oito marcas de relógio, contando-se a Bulgari, comprada agora. Controla várias marcas de alta costura, tais como Louis Vuitton, Fendi, Céline (que coincidência!), Donna Karan, Kenzo, Givanchy, Marc Jacobs e Dior. É, igualmente, proprietário e ou acionista de lojas de varejo, como o Carrefour, e de veículos de comunicação, como Les Echos e outros. Exilou-se nos Estados Unidos quando o socialista François Mitterand (1916-1996) foi eleito em 1981, numa coalizão com os comunistas. Apesar de ter cômoda maioria no início de governo, Mitterand não obteve aprovação para suas reformas no Parlamento, em virtude da situação econômica francesa e da oposição ferrenha da direita. Em 1984, desfez a coligação com os comunistas. Cito trecho, a este respeito, de Alcino Leite Neto: “A análise de Guattari é bastante precisa, vislumbrando nos sinais emitidos em 1982 o destino que a história reservaria ao PS francês: ‘Após um período (pós-eleitoral, na França) que podemos chamar de ‘estado de graça’, porque foi vivido em meio à surpresa e à espera de grandes mudanças, com medidas de revalorização do nível de vida das categorias mais desfavorecidas e, sobretudo, medidas para a salvaguarda das liberdades (supressão dos tribunais de exceção, libertação dos presos políticos, abolição da pena de morte etc.) o governo pouco a pouco se atolou na crise: ele se debate e não consegue reduzir a inflação, o desemprego, a fuga dos capitais, a paralisação dos investimentos, a queda das exportações etc. E vem, progressivamente, gerindo o país quase como o teria feito um governo conservador” [4].

Com a “extinção” do Mitterand socialista, Arnault retorna à França e adquire a Boussac, empresa do norte do país que operava na área dos têxteis, mas que detinha ainda a posse da Christian Dior. Deste modo, em 1984 assume a presidência das empresas Financière Agache e Christian Dior. Reorganiza o grupo Agache, adquirindo   – em uma estratégia então inédita – marcas no ramo do luxo e concentrando suas operações, como já anotado, em uma única firma. Lança então a sua própria casa de alta-costura com a ajuda do estilista Christian Lacroix. Nos anos seguintes adquire também os champanhes Moët & Chandon e Krug e a casa Hennessy, de conhaques. Dior lhe dava a visibilidade e o prestígio para o jogo das aquisições e busca de crédito em bancos. Seguiu em sua política até tornar-se um dos dez homens mais ricos do mundo. Foi padrinho de casamento de Nicolas Sarkozy – um judeu, franco-húngaro – com Cecilia, em 1996. A Financière Agache, subsidiária da holding de Bernard Arnault, constou na lista de vítimas da Bernard L. Madoff Investment Securities, em 2008. Arnault e Galliano foram em 2007 e 2010 condecorados com a Legião de Honra francesa por Sarkozy. Arnault está hoje interessado no comércio eletrônico e integra, com Mick Jagger (esse empresário e ex-músico há 25 anos), a Comissão Europeia para a Concorrência Eletrônica. “Só me interessa o que não é meu” é o lema, à la um Oswald de Andrade sujo, de Arnault.

Depois de ter tomado vários conhaques, provavelmente da casa Hennessy, no La Perle, hoje um bairro majoritariamente gay, Galliano, esse chicano anglo-espanhol, ao perder sua “racionalidade”, tornou-se porta-voz involuntário das contradições francesas e, óbvio, de suas próprias e berrou – com cara de Sid Vicious –: “I love Hitler”, condenando-se à mesma pena eterna de Ezra Pound, sem sê-lo. Judith Thurman tem razão ao afirmar que a própria moda, em si, é eugênica e desumana. Tem mais do que razão em asseverar que o nazismo é intolerável. Intolerável – crime contra a humanidade. Só lhe falta dizer – como norte-americana também – que o capitalismo, além de eugênico, é hoje ainda mais sauvage, concentrador de riquezas, racista, nazifascista, sem perspectivas de mudanças no horizonte, maquiado por democracias eleitorais manipuláveis. Existe, em Direito, a responsabilidade pelos atos do preposto (Galliano), entretanto Bernard Arnault – o chefe – segue livre, abocanhando a Hermés, o E-bay, confabulando com Sarkozy, financiando guerras etc. Talvez em sua lápide, Galliano possa escrever, em gesto de desculpas sinceras aos judeus: “Aqui jaz Joseph Arthur de Gobineau Jr.”. Quem sabe, melhor, possa usar os versos, com duas alterações, de Allen Ginsberg: “France (or Capitalism) I’ve given you all and now I’m nothing”.

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Notas

[1] GRANT, Linda. “Galliano and the taste for transgression”, The Guardian, 1/3/2011. http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/mar/01/galliano-antisemitic-rant-fashion-business
[2] DISHMAN, Lydia. Blog Style Inc., 2/3/2011, http://www.bnet.com/blog/publishing-style
[3] THURMAN, Judith. “John Galliano’s Words”, The New Yorker, 1/3/2011. http://www.newyorker.com/online/blogs/newsdesk/2011/03/john-gallianos-words.html
[4] LEITE NETO, Alcino. “Esqueçam o que eu falei”, Folha On-Line, 02/11/2003.

Saiba mais sobre o affair Galliano

Vídeo
http://elcomercio.pe/mundo/720942/noticia-video-john-galliano-fue-grabado-diciendoamo-hitler

Outro artigo:
http://www.elpais.com/articulo/agenda/Bar/Perle/elpepigen/20110305elpepiage_3/Tes

Galliano no Facebook:
http://www.facebook.com/pages/John-Galliano/144486181611


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.