Bei Dao, “Ilha do Norte”, pseudônimo de Zhao Zhenkai [趙振開], nasceu na cidade de Pequim em 1949. Serviu na Guarda Vermelha, indispôs-se com a Revolução, foi “reeducado”, trabalhou na construção civil: ocupações incompatíveis com a importância desse extraordinário escritor para a poesia chinesa contemporânea e para a poesia do mundo. Seus versos são reflexivos, revelam a natureza do ser, identificam feridas emocionais e se solidarizam com outras almas aflitas, por meio, muitas vezes, de descrições “atonais” da paisagem.
Em 1978, Bei Dao ajudou a fundar a revista extra-oficial Hoje [今天], que se tornou o principal fórum de discussão dos poetas menlong, grupo ridicularizado pelo establishment literário chinês devido a sua linguagem “obscura” e não calcada no realismo socialista. Em 1989, ele foi acusado de incitar a revolta estudantil na praça da Paz Celestial, pois os versos de um de seus poemas, “Proclamação” [回答], estavam nos estandartes carregados pelos protestantes: “Para não me ajoelhar na Terra/ contrastando assim com a elevação do carrasco/ que impede os ventos de liberdade”.
Exilado, Bei Dao viveu e lecionou na Inglaterra, Alemanha, Noruega, Suécia, Dinamarca, Holanda, França e, mais recentemente, nos Estados Unidos. Sua obra já foi traduzida para trinta idiomas, mas esta é sua primeira antologia em português. Em língua inglesa, são cinco volumes de poesia – Unlock (2000), Landscape over zero (1996), Forms of distance (1994), Old snow (1992), The August sleepwalker (1990) – um de contos – Waves (1990) – e dois de ensaios – Midnight’s Gate (2005) e Blue house (2000). Recebeu vários prêmios, entre eles o prêmio literário Jeanette Schocken (Alemanha, 2005), o Argana de poesia internacional (Marrocos, 2002) e o Tucholsky da pen sueca. É membro honorário da American Academy of Arts and Letters e um candidato natural ao Nobel de literatura.
Em 2006, Bei Dao recebeu permissão para voltar a viver na China.
黑色地圖
寒鴉終於拼湊成
夜﹕黑色地圖
我回來了——歸程
總是比迷途長
長於一生
帶上冬天的心
當泉水和蜜制藥丸
成了夜的話語
當記憶狂吠
彩虹在黑市出沒
父親生命之火如豆
我是他的回聲
為赴約轉過街角
舊日情人隱身風中
和信一起旋轉
北京﹐讓我
跟你所有燈光乾杯
讓我的白髮領路
穿過黑色地圖
如風暴領你起飛
我排隊排到那小窗
關上﹕哦明月
我回來了——重逢
總是比告別少
只少一次
Mapa negro
Ao cabo, corvos frios juntam
a noite: um mapa negro
voltei para casa – pelo caminho avesso
mais longo do que o errado
longo como a vida
traga o coração do inverno
quando a água mineral e as anfetaminas
tornam-se as palavras da noite
quando a memória late
um arco-íris assombra um mercado negro
meu pai, vida-faísca: mínima como um grão
sou seu eco
virando a esquina dos encontros
uma ex-amante esconde-se numa
lufada de cartas revoltas
Pequim, deixe-me erguer
um brinde às suas luzes
deixe que meu cabelo branco aponte
o caminho pelo mapa negro
como se uma tormenta a fizesse voar
espero na fila até que a pequena janela
se feche: Ó o brilho da lua
voltei para casa – reuniões
significam menos do que adeuses
ao menos
Tradução: Régis Bonvicino, com supervisão de Yao Feng
拉姆安拉
在拉姆安拉
古人在星空對奕
殘局忽明忽暗
那被鐘關住的鳥
跳出來報時
在拉姆安拉
太陽象老頭翻墻
穿過露天市場
在生鏽的銅盤上
照亮了自己
在拉姆安拉
諸神從瓦罐飲水
弓向獨弦問路
一個少年到天邊
去繼承大海
在拉姆安拉
死亡沿正午播種
在我窗前開花
抗拒之樹呈颶風
那狂暴原形
Ramalá
Em Ramalá
os antigos jogam xadrez no céu estrelado
o fim de jogo move
uma ave imóvel num relógio
salta para dizer as horas
Em Ramalá
o sol sobe o muro como um velho
e segue pelo mercado
aberto espelhando-se aceso
numa placa de cobre oxidado
Em Ramalá
os deuses bebem água de um jarro de terra
um arco indaga de uma corda sobre as rotas
um garoto se prepara para herdar o oceano
da margem do céu
Em Ramalá
a morte lança sementes no zênite
a morte floresce defronte minha janela
árvores duras revelam
a forma violenta, original de um tornado
Tradução: Régis Bonvicino e Maria do Carmo Zanini, com supervisão de Yao Feng
Para comprar / For purchasing:
Outubro de 2007
Diário Catarinense
UM BARCO REMENDA O MAR – DEZ POETAS CHINESES CONTEMPORÂNEOS
Aurora Bernardini
Professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP
Como acontece em geral com todas as artes, um pouco de iniciação é importante para a sua melhor compreensão e conseqüente fruição. Há tempo tinha lido um livrinho muito esclarecedor de François Cheng A escritura poética chinesa, (Seuil, Paris, 1977) e diante do impacto da leitura dos poemas de Bei Dao, o primeiro e mais consagrado poeta de Um barco remenda o mar – Dez poetas chineses contemporâneos, a coletânea bilíngüe organizada por Yao Feng e Régis Bonvicino, editada pela Martins e recentemente lançada na 13a Bienal Internacional do Rio de Janeiro, resolvi retomá.-lo.
Impacto pelo seguinte: enquanto conseguia apreciar com relativa facilidade as images/stories dos poemas dos outros nove poetas, isso não acontecia com os poemas de Bei Dao, um de cujos versos, por sinal, dá o nome à coletânea . Para saber por que, resolvi percorrer primeiro o caminho de cada poeta, de Pequim a Nanquim – em geral, suas cidades de origem ou de formação – acompanhando-os nos seus exílios e tentando descobrir os segredos de seu estilo .
Yan Li ( 1954), emigrado nos EUA em 1985, com o circular “ Devolvam-me” e o afiado “ Anzol”, que acaba por devorar a si próprio; Yu Jian (1954), conhecedor da Europa e dos EUA, com sua “ Tempestade” em que transfunde, modernamente ou pós-, cabelos, pele branca, fita cassete e uma pintura a óleo e a sua complexa“ Rosa”-mosca-ave migratória-treva do mundo; Gu Cheng ( 1956), emigrado para a Nova Zelândia e suicida que circumscreve sua “ Origem” e seu “ Adeus” nos sintomáticos contrários de “ Longe ou perto”; Hang Dong (1961), agora publicado oficialmente na China, com o significado secreto de “ Tua mão”e Xi Chuan ( 1963), hoje morando em Pequim , com o surreal de “ A cidade onde moro” e o nonsense de “O céu estrelado em Haergai”.
Lu Weiping ( 1965), membro premiado da Associação dos Escritores da China, com seus lapsos sintomáticos em “ Distraído” e os paradoxos de “ Salvação falhada”; Tian Yuan (1965), que estudou no Japão e também é muito premiado, em Agosto-explosão de estrelas-olhos de peixe-borboletas pretas-monte de ossos e em “Obra n.1”, onde o cavalo, por um desígnio enigmático, teima em manter-se a nove metros de distância ; Yu Xiang ( 1970), premiado tradutor de poetas norte-americanos, com suas profecias em “Logicamente” e as folhas caindo em “Voz baixa”: /como uma pessoa que viveu solitária/tanto tempo/e acabou por morrer / .
Finalmente, Yao Feng, o tradutor macauense de Fernando Pessoa e coordenador/co-tradutor dessa coletânea. Em português ele escreve “ pictogramas” como este, inédito antes dessa publicação: Às vezes/quero ser…/Às vezes/quero estar…/Às vezes/quero estar … e ser…/Juntam-se/ todos os meus sentidos/moeda/ em movimento/Sei que se vai extinguir/ Não sei o que vai ficar/ . Nele, justamente se nota a ligação pintura-poesia, que foi sempre muito intensa, na China, desde há três mil anos.
Nos dez de seus poemas chineses com que conta a coletânea, dedica-se, conforme Bonvicino, a “refabular as fábulas clássicas (…) sem deixar, entretanto, de ser suficientemente crítico”. Assim, as ovelhas “despem seus casacos de pele” (em “O lobo e as ovelhas “); o crematório é “Insumo energético da China” ( em “ Para os mortos na Mina de carvão de Taping”); muitas pessoas/ ou ficam loucas, ou se suicidam,/devido à luz demasiado prolongada./ ( em “Noite branca”); e …/ todos estavam com/ seus órgãos intactos e saudáveis ( em “ Amsterdã”); o que as minhas mãos juntaram/acabou por ser apenas sombra/ (em “Fim”); aquela tartaruga,/com a cabeça recolhida/em sua casca sólida e dura,/ não se moveu, e o tempo passou./( em“ Uma pedra coberta de musgo”). Já em “Chuva no fim da tarde”, em hipóstases sucessivas, as gotas da chuva batem no telhado, porta e janela,/ com tanta pressa, como crianças nuas/rogando abrigo./. No mês de “ Março” /todas as primaveras repetem o mesmo destino:/ florir e murchar… florir e murchar…/; em “ Peixe salgado”, /o peixe amargo sonha/seu salgado regresso ao mar/ enquanto no “ Planalto Central”/ o milho se planta há milênios/deita-se como semente/ergue-se outro:/cereal. Agora, ri para mim/ com a boca aberta,/dentes amarelos/mas não de ouro/.
O próprio Yao Feng, no texto do apêndice “ Encontro de línguas: os desafios da tradução” fornece pistas preciosas para a compreensão da poesia chinesa, e em particular da de Bei Dao ( 1949), que ele também, como Régis Bonvicino na lúcida Introdução, considera o maior poeta chinês da atualidade e a ele refere a frase de Otavio Paz: A Poesia que se encarnou na História. Há motivos para tanto: Dao serviu na Guarda Vermelha, indispôs-se com a Revolução, foi reeducado, foi fundador da revista extra-oficial Hoje, ridicularizada pelo establishment literário chinês por sua linguagem obscura e, em 1989 foi acusado de incitar a revolta estudantil na praça da Paz Celestial porque os versos de um de seus poemas estavam nos estandartes dos manifestantes.
Exilado, peregrinou durante anos pela Europa e pelos EUA.. Só em 2006 recebeu permissão para voltar a viver na China.
Ora muito bem. Se em “Mapa negro”,ou em “ Junho”, ou em “ Cantiga da estrada, a história de seu regresso à pátria dezessete anos depois explica suas images/stories cortantes, a mesma já não mais nos basta para que entendamos, por exemplo, por que /a morte lança sementes no zênite/ ( em “Ramalá”), por que há /rumores de falhas /como o sol da manhã/ ( em “ Céu claro”) ou por que /em outubro sobre a retórica/o vôo é visível em toda parte/ e / soldados de neve removem seus disfarces / e tornam-se linguagem/ ( em “ Sem título”). A resposta, conforme explica o oportunamente lembrado François Cheng, parece estar justamente … na linguagem. Sabemos todos que na China, ela se expressa caligraficamente por ideogramas. O que eu não sabia é que dentro de um ou mais caracteres que compõem cada ideograma o poeta pode fazer surgir, dos múltiplos estratos gráficos, múltiplos sentidos. Num ideograma como “ na ponta dos ramos, flores de ibisco”, no caractere “ ramo” e no caractere “ ibisco” pode ser descoberto, graficamente, o elemento “ homem” que – conforme explica Cheng – pode ser interpretado como o homem se introduzindo em espírito no arbusto. Com máxima economia e sem recorrer a comentários externos, o poeta faz reviver a nossos olhos uma experiência mística, em suas etapas sucessivas e com images/stories ditadas pela própria fatura do ideograma. Daí a sua misteriosa riqueza, e muitas vezes, para nós ocidentais, sua desafiadora aparente impenetrabilidade.
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