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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO E FERNANDO PESSOA

PROCISSÃO DE CORPUS CHRISTI, EM AMARANTE, 1913, ÓLEO  SOBRE MADEIRA, 30×50 cm  de Souza-Cardoso

Os estudiosos das coisas do Orpheu têm amiúde traçado um paralelismo entre o interseccionismo e o simultaneísmo órfico. Em trabalho ainda inédito, abraçamos essa tese, definindo o último como um programa estético originado no âmbito das artes plásticas, que nega a imitação da natureza e os estilos. Reagindo contra o Cubismo, esse programa sustenta a manifestação da cor pela cor. Desse modo, cada recorte de espaço de uma tela é transfundido em outros recortes e segmentos, através da cor, num processo de mútua contaminação funcional, física, geométrica e, claro, cromática. Assim, a cor é ao mesmo tempo forma e assunto, opondo-se por conseguinte aos postulados cubistas, que a preteriam em benefício da forma geométrica.

A arte de pintar com elementos inteiramente criados pelo artista, sem emprestá-los da realidade, denomina-se, em artes plásticas, orfismo.

A conjugação entre o simultaneísmo e o orfismo reforçará o sentido de uma simultaneidade pictórica afastada da realidade visual do mundo objetivo. Irá, tal como o interseccionismo, sua contrapartida literária, se interessar pela realidade apenas como um quebra-cabeças, em que as fronteiras entre o abstrato e o concreto deixam de existir, por força de seus atributos se interseccionarem, criando assim uma realidade virtual autônoma, puramente intelectual e diversa, portanto, da natureza.

Por seu turno o interseccionismo (programa freqüentemente entendido como derivado do paulismo, por sua maior complexidade em relação ao outro, o que parece muito lógico mas é uma inverdade histórica) — em que as combinações de estados de alma-paisagens ganham registro como uma sucessividade de eventos — processa em simultâneo diversos estados de alma-paisagens, sobrepondo-os, fundindo-os, relativizando-os, interseccionando-os,  no intuito estético de representar a complexidade, inconstância e irracionalidade do mundo e do sujeito nele, de tal sorte que a realidade é nada mais do que um estado mental e emocional do sujeito lírico — e o enunciado uma conversão desses últimos.

O interseccionismo é sinônimo imperfeito, por assim dizer, do simultaneísmo órfico, e ambos fazem convergir, pincel e caneta, para um interesse comum, que é o de representar de maneira fracionada e dinâmica os múltiplos estados emocionais e mentais do homem, sendo certo que por essa razão ambos são concepções poéticas intelectualizantes, fruto de uma época carente de verdades filosóficas e de justificações.

O simultaneísmo e o interseccionismo difundem-se em Portugal a partir da influência de Delaunay, Blaise Cendrars e Apollinaire diretamente sobre Souza-Cardoso e Sá-Carneiro, e através deste último sobre Fernando Pessoa. A raiz filosófica desses ismos nasce no processo de  difusão do pensamento do pragmatista e empirista de William James na Europa, que exerceu forte influência sobre pós-simbolistas, artistas plásticos e poetas.  Pessoa difundiu no movimento órfico a nomenclatura e as teses jameseanas, embora nunca tenha mencionado o nome do filósofo americano, radicado na Inglaterra no início do século XIX.

Este curto ensaio pretende, como adverte seu título, colocar lado a lado Pessoa e Souza-Cardoso. Mais precisamente uma tela simultaneísta órfica, de Souza-Cardoso — Procissão do Corpus Christi, em Amarante, datada de 1913 e o interseccionista “Na floresta do alheamento”, de Fernando Pessoa, do mesmo ano, com a modesta pretensão de auxiliar o leitor na compreensão desses ismos, bem como das forças atuantes na formação da estesia órfica.

Prossigamos.

Na tela de Souza-Cardoso, reproduzida acima, a perspectiva, observe o leitor, foi totalmente desprezada, e a idéia de uma multidão compacta é fornecida pelo congestionamento de cromos sobre corpos triangulares, fruto da assimilação cubista realizada pelo pintor nos primeiros tempos de Paris.

Familiarizados com o título da tela, não é difícil nos recordarmos, ainda, de que  numa procissão a  distinção das figuras hierárquicas nela presentes se dá pela cor do manto que trajam, tal como acontece no quadro. Os acólitos trajam o branco, os sacerdotes o cinza, sendo reservado o vermelho aos mais graduados na hierarquia eclesiástica.

No entanto, uma menos apressada observação do quadro nos permirtirá perceber que as  unidades geométricas não cumprem uma  função analítica com respeito ao todo, não sendo, ademais, resultado de uma decomposição objetual, como ocorre muito freqüentemente no Cubismo. Não há, igualmente, uma preocupação descritiva na tela. Cada elemento que conseguimos distinguir no conjunto e reter pela familiaridade com objetos do nosso mundo real logo escapa de nossa percepção. As formas geométricas  e as cores unificam o espaço da representação, ao invés de decompô-lo, de forma que ora um detalhe, ora um todo difuso, mas organizado, atraem nossa atenção.

Isso acontece  porque os vínculos das formas e cromos com o espaço físico que os circunda são tão fortes que um específico elemento pictórico apreendido no todo parece mesmo não mais se harmonizar com  o conjunto da tela quando não levamos em consideração a mútua interde- pendência de cromos e formas no quadro.

Uma mais prolongada detenção na tela de Souza-Cardoso nos remeterá novamente para o plurissentido do conjunto. Se de um  lado nele facilmente  podemos  localizar  formas em- blemáticas, como o dragão pairando sobre o cortejo; a pirâmide de cristal, apoiada sobre os ombros dos carregadores, refletindo decerto os rostos dos participantes do ato religioso; o cavaleiro em armadura, à esquerda e ao alto, evocando uma vigorosa heroicidade que contrasta com o clima conciliatório da procissão —  dificilmente nos satisfaremos com a interpretação de que a ‘procissão do Corpus Christi’, concebida pelo pintor português, vem apenas acomodar elementos profanos em que se mesclam  outros momentos da cultura, e o faz, por exemplo, para sugerir um sentido universalista ao ato religioso e, por extensão, à Igreja.

Por certo que não. O  todo orgânico da tela  não acata essa concepção de leitura simplista e funcional. Mais ajustado ao sentido unificador orgânico do conjunto seria reconhecer uma tensão aglutinadora mais forte que a mencionada, que favoreceria, por sua vez,  a indistinção de uma parte face ao todo.

Daí entendermos que Souza-Cardoso não retratou uma procissão, mas fez muito mais que isso: buscou sugerir cromaticamente algo como uma vibração coletiva, inconsciente, presente na festividade, conquanto ainda fisicamente apreendida como uma procissão em movimento. Daí, ainda, que a pura decifração da tela a partir de prováveis elementos constitutivos não seja suficiente. E porque ao agir desse modo nos afastamos da possibilidade de apreender  o todo irreal da tela, o artefato abstrato-concreto inventado pelo pintor.

Como dissemos anteriormente, o simultaneísmo órfico, originado no Cubismo, e a ele reagindo, se  interessa, tal como o interseccionismo, pela realidade do mundo como um quebra-cabeças — em que abstrato e concreto são igualmente concreto e abstrato, por força de seus atributos se interseccionarem, criando desse modo uma realidade virtual autônoma, puramente intelectual e diversa da natureza.

“Na floresta do alheamento”, de Fernando Pessoa, não há fronteira entre o mundo físico e o mental; entre realidade e sonho… Mas convém, contudo, antes de mais nada, reproduzir esse texto:

sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda… Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei  por quê…

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.

Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.

Na alcova mórbida e morna a  antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta… Para que há de um dia raiar?… Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.

Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este…

Surge mas não apaga esta, esta alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.

Que nítida de outra e de ela essa trêmula paisagem transparente!…

E quem é esta mulher que comigo veste de obsevada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?… Eu nem sei querê-lo saber…

A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele,vejo essa paisagem,… e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver…

De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só-ela a paisagem daquele outro mundo…

Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa… E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível…

Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher… Um grande cansaço é um fogo negro que me consome… Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita…

Ó felicidade baça!… O eterno estar no bifurcar dos caminhos!… Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém… E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe…

Lá fora a antemanhã tão longínqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!

E eu, que longe dessa paisagem quase esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro…

As árvores! as flores! o esconder-se copado dos caminhos!…

Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor…

No nosso jardim havia flores de todas as belezas… — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoulas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse a presença, violetas pouco namargem tufada dos conteiros, miosótis mínimos, cámelias estéreis de perfume… e, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.

Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esaguia de outras terras… E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos…

Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes… Plátanos estacavam… E ao longe, entre árvores e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas…

O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.

A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos…

Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenera-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma cousa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às cousas que existem?…

Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais… Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena…

O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das cousas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.

Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia paensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço… Que horas, ó companheira inútil do meu tédio,que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!… Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa… E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.

Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil de cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal…

Orlas de mares desconhecidos tocavam, no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.

Reparávamos de repente, como quem  repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós doque a consciência de o ouvirmos.

E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais…

Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida… Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias…

E doía-nos gozar aquilo, doía-nos… Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era úmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto…

Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.

O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastada num cerimonial no crepúsculo.

Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.

Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa idéia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa idéia de haver a nossa vida…

Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.

Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós… Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento…

E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa pertubação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa idéia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra…

As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes… Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros… Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas… Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa… Sombras que eram relíquias de outroras felizes… Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima… Ó horas multicolores!… Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores e do perfume de nomes de flores!…

Loucura de sonho naquele silêncio alheio!…

A nossa vida era toda a vida… O nosso amor era o perfume do amor… Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós… E isto porque sabíamos, com tada a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade…

Éramos impessoais, ocos de nós, outra cousa qualquer… Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria… E assim como ela era duas — de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele-próprio, se o incerto outro viveria…

Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar… Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser… Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer cousa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos… E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto…

E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos… Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos cousa alguma… Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das cousas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos…

E assim nós morremos a nossa vida tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser…

Zumbe uma mosca, incerta e mínima…

Ralam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e disperos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto… Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma emque a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece…

A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora…

Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos…

Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.

Desenganemo-nos, ó Velada, de nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.

Não choremos, não odiemos, não desejemos…

Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição…

Os binômios sono-vigília, realidade-irrealidade, velar-dormir, aqui-lá, eu-outro são abundantes no texto integral acima.

Contudo, interessa-nos aqui apontar, antes de mais nada, um binômio que é primordial para chegarmos a bom termo na aproximação entre os dois trabalhos; entre, em suma, o simultaneísmo órfico e o interseccionismo: o que fundamenta a alternância da coordenada espacial: alcova-floresta,  ou  simplesmente,  como definiu  Pessoa  no início do texto, o que se constrói a partir da alternância/justaposição  de “dois mundos”. Façamos um arrolamento de passagens em que a espacialidade foi  considerada tomando apenas as  páginas iniciais do texto, e veremos a importância que Fernando Pessoa concede à questão:

1. “Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho”;

2. “Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra”;

3. “uma outra espécie de realidade surge […] mas não apaga esta, esta alcova tépida, essa de uma floresta estranha”;

4. “A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem”;

5. “De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual”;

6. “Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa… E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível…”;

7. “O eterno estar  no bifurcar dos caminhos!…”;

8. “Lá fora a antemanhã tão longínqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!”;

9. “E eu que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro…”;

10. “Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. […] No nosso jardim havia flores de todas as belezas…”;

11. “A nossa vida  não tinha dentro.  Éramos fora e outros”.

Essa  coordenada  espacial,  mencionada,  é relativizada de início pelo que  podemos designar como   coordenada sujeito (“estagno entre o sono e a vigília”), por sua vez relativizada pela coordenada tempo (“sei que despertei e que ainda durmo“). A ordem da interferência não importa, haja vista que qualquer alteração de uma delas resulta em nova conformação existencial[1], de sorte que sob o ponto de vista do sujeito, este experimenta algo mais que um único mundo e um único modo de ser; vivencia, com efeito,  outros mundos o que faz com que supere o “tédio de ser, de ter de ser qualquer cousa, realidade ou ilusão”, podendo ser ambas as cousas, qualquer cousa, alternadamente, concomitantemente, cumulativamente: eu ou outro, eu e o outro, um outro eu ou o próprio, etc: aqui ou alhures, na realidade ou no sonho, etc.: já ou antes, já e antes, antes ou agora, antes e agora,  no futuro ou antes, no futuro e agora, etc.

Podemos dizer de outro modo que os planos temporais, existenciais e físicos se interseccionam, operando esta intersecção dinamicamente, posto que cada plano também cambia. Uma figura de triângulos[2] de diversos tamanhos, interligados, se deslocando no espaço,  poderia ser uma representação gráfica desse desencadeamento interdependente de estados de alma-paisagens-tempo, correspondendo cada um dos vértices de cada  um  dos triângulos  ao cruzamento de duas abscissas das coordenadas mencionadas, no espaço. Por exemplo: tempo X espaço; espaço X sujeito; sujeito X tempo.

Ao  ler  esse  poema  em  prosa  de  Fernando Pessoa,  experimentamos um processo de registro de images/stories analógico e cumulativo,  oriundo do arranjo dinâmico e interseccional desses estados de alma-paisagens-tempo, presentes no texto, de tal sorte que o recorte de um  elo estado de alma-paisagem-tempo não nos dirá qualquer  verdade do conteúdo do texto.

Em outros termos, se tomarmos qualquer um dos triângulos de nossa representação gráfica acima proposta não tomaremos, do mesmo modo, contato com a verdade contida na complexa dinâmica do arranjo espacial, nem mesmo poderemos ajuizar a seu respeito como recorte específico de uma verdade maior. Mutatis mutandis é o que ocorre quando buscamos decifrar os conteúdos da tela de Souza-Cardoso através de recortes espaciais e sem considerar a interpenetração de todos os seus significantes na formulação do conteúdo da tela.

O mundo mental e o mundo físico, que alcançam representação pictórica na tela  simultaneísta órfica de Souza-Cardoso, como vimos, estão interligados, indissociados, e são a f’órmula para a geração de um objeto pictural totalmente original e sem paralelo com o mundo natural. Mutatis mutandis, o cruzamento/interdependência/permutabilidade dos mundos mentais e físicos no interseccionista “Na floresta do alheamento” é, de modo idêntico, a fórmula para a representação de images/stories literárias sem paralelo com uma qualquer realidade psíquica descritível.

O presente ensaio longe está, reconhecemos, de esgotar as possibilidades intertextuais (para lançar mão de uma terminologia de moda) presentes no diálogo entre a tela e o poema; entre a poética cardosiana e pessoana, o que, se não desabona inteiramente estes nossos comentários, ao menos tem o provável mérito de aliciar o leitor para o debate órfico, o que não deixa de ser um reconhecimento sempre renovado, embora óbvio, da importância desses dois grandes artistas portugueses e universais.

São Paulo, junho de 2007

 

 


[1]: Dito de outro modo, a relativização da coordenada espacial desdobra-se — ou é desdobrada, o que dá no mesmo — na relativização da coordenada temporal (“ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço”). Ambas, por seu turno, alicerçam, ou são alicerçadas, o que também dá no mesmo, tendo em vista a relativização de outra coordenada que, na ausência de designação mais feliz, chamaremos de coordenada sujeito.

Se adotarmos como fator fundamentante da relativização das coordenadas  qualquer uma delas: espaço, tempo, sujeito, o resultado final será idêntico — porque quaisquer coordenadas que venham a coexistir sob o signo da relativização de uma delas, se conformará de modo idêntico, relativizando-se.

[2]: Estes, evidentemente, não têm correlação com os corpos triangulares da tela de Souza-Cardoso. Estão presentes aqui no intuito exclusivo de ilustrar um esquema.


 Sobre Ricardo Daunt

Poeta, ficcionista, ensaísta.