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DRUMMOND E O LIVRO INÚTIL

La littérature, d’accord en cela avec la faim,consiste à supprimer le Monsieur qui reste en l’écrivant.

Mallarmé

Na nota introdutória de seu primeiro livro de prosa, Confissões de Minas (1944), Drummond expõe a ética utópica de seu estilo[1]. Data a nota de agosto de 1943, “depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini”, propondo os eventos como balizas negativas do “exame da conduta literária diante da vida”. Afirmando que “Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham consciência do tempo, e saibam transformá-lo em matéria literária”, declara que não desdenha a prosa e que a respeita a ponto de furtar-se a cultivá-la. Define-a como “linguagem de todos os instantes”; pelo avesso, a definição permite ver que não pensa a poesia como “linguagem de todos os instantes”, pois implica outros processos e fins.

Drummond postula que há uma necessidade humana  de que não só se faça boa prosa, “(…) mas também de que nela se incorpore o tempo, e com isto se salve esse último”[2]. Freqüentemente, a literatura é escrita à margem do tempo ou contra ele, por inépcia, por covardia, por cálculo. Não basta usar as palavras “cultura” e “justiça” para incorporar e redimir o tempo, mas é preciso “(…) contribuir com tudo (…) de bom para que essas palavras assumam o seu conteúdo verdadeiro ou então sejam varridas do dicionário”. Não há temas maiores ou menores; todos estão no presente, divididos pelas mesmas contradições históricas: “Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a presidente da república e termina em 1943, com o mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo”. Nesse mundo, os escritores têm que se confessar mais determinados quanto aos problemas fundamentais do indivíduo e da coletividade, examinando com rigor as matérias da escrita para atuar criticamente nos processos inventivos que as transformam, separando o que merece durar como “conteúdo verdadeiro”. O preceito implica não aceitar as coisas como se apresentam, mas regredir ao pressuposto delas para evidenciar sua particularidade e explicitar seus encadeamentos em teias microscópicas de causa-efeito que permanecem impensadas para seus agentes, enredando-os em petrificações vividas como natureza. Segundo Drummond, o escritor deve classificá-las e destruí-las no comentário leve da crônica, na estranheza da ficção, na mescla tragicômica da poesia, dissolvendo a inércia de injustiças que se tornaram hábitos, de superstições vividas como civilização, de provincianismos com pretensão a universalidade, de “conteúdos verdadeiros” que se naturalizaram como opressão. Como em Mallarmé, a Beatriz que lhe orienta a ética do estilo é a destruição.

A transformação do mundo pelo fogo evidencia que a liberdade livre da invenção que se apropria das representações divididas da memória coletiva é apenas parcial e contingente. Recusando a omissão da arte pela arte e a obediência a palavras de ordem partidária, é  parcial e não pode ceder à inércia do passado, como se a história depositada nas matérias fosse história de mortos. Ao contrário, deve transformá-las como história de vivos, buscando as formas possíveis de um futuro em que as palavras “justiça” e “cultura” não serão só  palavras.

Um texto de Confissões de Minas, “O Livro Inútil”, figura essa ética utópica. Hoje, quando essa ética está esquecida e arquivada no conformismo da nossa desesperança pós-utópica, provavelmente o texto é ilegível. Ou talvez só legível como  fóssil que  documenta as disposições modernas que a poesia de Drummond passou a intensificar principalmente depois de Sentimento do Mundo, escrito entre 1935 e 1940:

“Escrever um livro inútil, que não conduzisse a nenhum caminho e não encerrasse nenhuma experiência; livro sem direção como sem motivação; livro disfarçado entre mil, e tão vazio e tão cheio de coisas (as quais ninguém jamais classificaria, falto de critério) que pudesse ser considerado, ao mesmo tempo, escrito e não escrito, sempre foi um dos meus secretos desejos.

Os dias passaram sobre esse projeto e não o fizeram mais nítido; ambições mais diretas me agitaram; nunca soube quando chegaria o tempo desse livro, e nunca senti em mim a plenitude insuportável da maturação; será hoje?

Se me disponho a escrevê-lo (o livro inútil) é porque já está feito…O mesmo seria dizer que minha vida está acabada. Quando me sinto capaz de nascer nesse escasso momento e olhar com olhos ingênuos essa janela que se insere entre mim e a paisagem; ou aquela porta, que esconde um gato; ou o céu, onde passam aeroplanos postais. O homem acabado, o livro acabado são fórmulas; o homem que continua, o livro que continua, e, sobretudo, o leitor que continua estão insinuando como é audacioso esse projeto e como é difícil ‘pintar a passagem’, com o pincel que foge da minha mão, com a mão que se desprega do braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da onda que, por sua vez …” [3].

“O Livro Inútil” é ficção teórica de um livro autonomizado de toda determinação. Põe em cena a dualidade característica da grande arte moderna lembrada por Deleuze: faz uma teoria da sensibilidade, como forma da experiência individual possível, e uma teoria da arte, como reflexão da experiência social real. As duas teorizações correm paralelas sem unir-se, pois Drummond sabe que as condições individuais da experiência artística não são as condições da experiência social real[4]. A dissimetria de sensibilidade e razão, de possível e real que escande “O Livro Inútil” é o núcleo da forma da poesia e da prosa que passa a escrever a partir de Confissões de Minas. Nela, o corpo,  determinado pela fratura do sujeito e condicionado pela divisão de classe, dissolve-se em afetos divergentes, nunca sublimados nem sublimes. Distanciamento da ironia, que nega a brutalidade da história, e imersão no humor, que afirma a solidariedade com o sofrimento, a dissimetria  mescla revolta, recusa, angústia e resignação. Na leitura de Drummond, é difícil apreender ou definir essa experiência como unidade, pois se repete prismaticamente como ressonância de timbres nos modos muito variados da extrema condensação dos poemas, aparecendo na prosa de maneira menos condensada, mas não menos insistente. Seria inútil, por isso, comparar a prosa e a poesia de Drummond só para afirmar a superioridade de uma delas. Em ambas atua a mesma negatividade com o mesmo sentido moderno, mas com intensidades e significações diferentes, específicas das duas.

“O Livro Inútil” faz a teoria da sensibilidade e da arte. Significa o que não se deve fazer no momento; também o que se quer fazer, mas que ainda não é possível. Escrever o livro inútil é impossível, pois seria repetição afirmativa da memória frustrada da experiência histórica. Se fosse possível escrevê-lo, a linguagem o faria cheio de coisas ausentes, mas seria vazio de experiência, porque acumularia experiências arruinadas sem nenhum caminho; talvez tivesse sentido completo, mas isso não teria sentido, pois não teria direção material futura. O livro inútil significaria a “plenitude insuportável da maturação”: não só a posse perfeita da técnica, mas a posse total do tempo, como se o escritor estivesse fora dele, que já estaria completado. Em sua plenitude de abolido bibelô sonoro, o livro já estaria acabado, escrito antes de ser escrito. Assim, afirmaria que o presente do ato da sua escrita seria eterno, pois a história teria acabado nele. Toda imagem de futuro estaria bloqueada ou já incluída e domada antecipadamente nele, pois seu texto seria o do tempo de uma memória repetida e repetível como o tempo morto de um arquivo total da experiência: “Se me disponho a escrevê-lo é porque já está feito… O mesmo seria dizer que minha vida está acabada”.

Como a vida não está acabada, o “livro inútil” significa outra coisa, fundamental. Por exemplo, significa o estilo. Se fosse possível escrevê-lo, o estilo do “livro inútil” seria o de uma vida acabada, por isso mesmo estilo que fixaria numa fórmula estática o dinamismo do pensamento dividido que, no presente, passa de um motivo contraditório a outros motivos contraditórios dos temas, fazendo alusões parciais aos possíveis do futuro. Drummond afirma que o estilo é justamente a negação da completude da memória na experiência do presente, pois figura a razão dividida que analisa sua própria falta de ser e unidade nas formas incompletas ou contingentes do devir da sensação, realizando a experiência de dissolução própria da grande arte moderna em que é “insuportável” a “plenitude da maturação”[5]. Aqui, teoriza a ética utópica da sua arte: para não escrever o livro inútil, é preciso sentir-se “(…) capaz de nascer nesse escasso momento”. Ou seja: ser capaz de escolher a cada novo momento a forma precária, entre as formas possíveis da experiência do passado e da expectativa do futuro, sabendo que o escritor está limitado por condicionamentos e determinações – também os inconscientes- do “escasso momento” do presente ruim. A inteligência, a sensibilidade, o caráter, a família, a educação, a província, a cultura pessoal, as escolhas que modelam a vida de um homem; a situação de classe do escritor funcionário público, a posição de classe do escritor funcionário público, as amizades e as inimizades do escritor funcionário público, os amores do escritor funcionário público, as dores do escritor funcionário público, as trocas simbólicas do escritor funcionário público; e as instituições, políticas e artísticas, a luta de classes, o fascismo, os acontecimentos terríveis do país e do mundo, tudo sem remédio imediato… É impossível escrever o livro inútil porque, num tempo em que todos os homens continuam a nascer num escasso momento, o “olhar com olhos ingênuos” do trabalho infindável da arte ainda nem começou. Se já começou, já não é mais, já não pode ser mais o mesmo, pois não pode fixar-se: a vida do escasso momento do presente não está e provavelmente nunca estará acabada. Drummond afirma que o livro inútil, como livro acabado, é mais que inútil, pois pressupõe o homem acabado, a vida acabada, a história acabada. Fórmulas a evitar, porque o homem, o escritor, o livro e o leitor continuam, “nesse escasso momento”, a nascer escassamente, mas apesar de tudo a nascer, demonstrando que a escrita nunca está acabada, porque a vida verdadeira ainda nem sequer começou. Essa incompletude feita de divisões é orientada pelo futuro improvável e deve ser o núcleo raciocinado da forma, orientando-lhe politicamente o sentido estético.

Logo, o “livro inútil” é também a metáfora do livro que ainda não veio: é do futuro que vem o tempo da escrita. A repetição é insuportável porque o moderno não admite cânone nem canonização; toda arte será, antes de tudo, auto-reflexão da impossibilidade de totalização da forma da sensibilidade partida que escreve no “escasso momento” já o deixando livremente para trás no ato, pois também o leitor continua a nascer. A fidelidade ao acabado é uma contrafação, pois repete o mesmo num momento precário em que tudo já está mudando ou já terá mudado ou já mudou, sem que ainda tenha vindo o terceiro pensamento, a precária síntese das contradições. Quando vier – se vier-  o livro inútil será realmente inútil. Por enquanto, o fundo da imaginação individual do artista continua sendo a memória social dos signos e seu radical fracasso. A escrita que transforma essa memória não pode naturalizar e repetir sua divisão, seu sofrimento, sua morte. Os conteúdos sociais da memória só interessam como matéria da experiência de um presente em que a escrita programaticamente inacabada se anula na negação de si mesma como completude, abrindo-se dividida para o futuro donde tantas coisas apenas pressentidas hão de vir, entre elas principalmente o sopro da revolta que destrói os limites do “escasso momento “.

A utopia da arte moderna anunciada nessa pequena prosa moderna de Drummond “pinta a passagem” do seu próprio devir futuro ainda nem sequer imaginado e, hoje, esquecido. Enunciados poéticos – “com o pincel que foge da minha mão, com a mão que se desprega do braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da onda que, por sua vez…”- apontam para a linguagem como a realidade do possível de uma experiência plena só aludida, pois ainda não vivida por ninguém. Nessa linguagem, tal “a mão que se desprega do braço e navega por conta própria”, a estrutura estética tende a transcender-se a si mesma como auto-negação pressionada pelo conteúdo aludido de verdade que anuncia o conceito totalmente irrealizável de sublime como síntese final. Do que decorre o “audacioso desse projeto” e, certamente, enquanto “o pincel foge da mão”, também o impossível utópico dele, pois a divisão dos materiais do passado e do “escasso momento” do presente do escritor os torna radicalmente inconciliáveis com o ideal pressuposto. Logo, para ainda lembrar Adorno, ideal e material se afastam um do outro na tensão com que o escritor figura o infigurável em uma arte cuja utopia faria enfim coincidir a dissimetria de reflexão e sensibilidade, possível e real,  abolindo a experiência frustrada das violências do passado, o tempo horrível do presente do autor e do leitor divididos pela classe e pela morte, e a si mesma, ficção, como coisas finalmente acabadas e verdadeiramente inúteis, na forma de um livro afinal e muito justamente inútil. Por enquanto, isso é impossível. É o “durante” do trabalho de “pintar a passagem” para o devir de outra coisa que essa prosa anuncia generosamente como a futura  radicalidade  que o tema do “nada”  terá na poesia de Drummond.

Em um texto de Confissões de Minas, que situa a poesia pessimista de Abgar Renault no modernismo, lê-se o enunciado que funde referências à ação de Mário de Andrade e ao Mallarmé de Crise de vers:

“Consumada a função destruidora do modernismo, e desmoralizadas, por sua vez, as convenções novas com que se procurava substituir as velhas convenções, ficou para o poeta brasileiro a possibilidade de uma expressão livre e arejada, permitindo a cada um manifestar-se espontânea e intensamente, no tom e com o sentido que melhor lhe convenha”[6].

A referência à possibilidade de “uma expressão livre e arejada” é útil para especificar os pressupostos da ética utópica do estilo da prosa de Drummond. Nela, a negatividade alia-se ao exercício de uma função que sua poesia não prevê, pelo menos imediatamente: a comunicação de informações feita como comentário crítico, principalmente quando o gênero é a crônica. Rubem Braga dizia que Drummond é mais moita na crônica porque o gênero o obriga a ser mais claro. Como na poesia o hermetismo não é de todo impróprio, pois em arte a falta de clareza é antes de tudo falta de clareza do leitor, Drummond guarda para o poema o mais íntimo da experiência[7].

A tensão ética desse ocultamento na clareza é construída por procedimentos técnicos que modelam sua prosa como função comunicativa e função crítica. A função comunicativa é obtida pela propriedade vocabular, clareza e linearidade sintáticas, estilo médio, análise, exemplo, citação de autoridades, explicação etc.; a função crítica, por meio da elisão de termos redundantes, pelo uso de marcas optativas de dúvida, negação e indeterminação, da formulação aforismática, da análise do “eu” como não-unidade, da ironia e do humor quanto à matéria tratada etc. Tais procedimentos, recombinados a cada texto, constituem o conteúdo material da prosa de Drummond como instrumentos gramaticais e retóricos ou, ainda, como procedimentos técnicos mobilizados para “manifestar-se espontânea e intensamente” no estilo eticamente orientado.

Na crônica, a eficácia técnica desse conteúdo material associa-se funcionalmente à análise das matérias, constituindo a maneira singular ou “estilo Drummond” de efetuar valores simbólicos propostos à leitura como “conteúdo de verdade” relativizador e relativizado[8]. O valor- ou os valores- nascem da transformação das significações transportadas das matérias para a cena comunicativa do texto como sentido utópico que nega a facticidade das “verdades” das matérias, demonstrando que são perspectivas parciais datadas; com isso, transforma as significações das matérias em um “conteúdo de verdade” parcial e orientado pela moralidade técnica como ponto de vista que se auto-critica a cada momento, fazendo a distinção de “bom” e “ruim” como tensão não-resolvida. A tensão escande o discurso como destruição construtiva de um outro, possível, sempre aludido.

Assim, o que é o “conteúdo verdadeiro” de que fala? O resto que sobra do ato crítico do mundo torto realizado como crítica de linguagens na linguagem. Reconhecendo a particularidade datada dos textos que publica, Drummond afirma que Confissões de Minas é insuficiente: falta-lhe justamente o tempo, pois teria sido escrito para contar ou consolar um homem das Minas Gerais, o indivíduo Carlos Drummond de Andrade. Em várias crônicas, tratou dos condicionamentos desse “indivíduo das Minas Gerais” e da sociabilidade letrada em que se escolheu a si mesmo nos anos de 1920, em Belo Horizonte. Numa delas, “BH”, publicada no Correio da Manhã, em 10/12/1967, escreve:

“Nas calçadas da Avenida Afonso Pena, moças faziam footing, domingo à noite, como deusas inacessíveis, estrelas; a gente ficava parado no meio-fio, espiando em silêncio. E divertimento era esperar o trem da Central, que trazia os jornais matutinos do Rio; era fazer interminavelmente a crônica oral da cidade nas mesinhas de café do Bar do Ponto, literaturar à noite na Confeitaria Estrela, do Simeão, que nos fiava a média, com pão e manteiga. Não acontecia nada. Que paisagem!Que crepúsculos!Que tédio!”

Nesse tempo referido na crônica, 1923, como escreve em “Recordação de Alberto Campos”, de Confissões de Minas, ele e Abgar Renault, Gustavo Capanema, Alberto Campos, Emílio Moura, Milton Campos, Pedro Nava, Mario Casasanta, Martins de Almeida, Gabriel Passos e outros, esporádicos, preparavam “materiais de cultura”. Como costuma acontecer nos grupos intelectuais de província condenados ao autodidatismo e à vigilância ferozmente irônica e auto-irônica contra os poderes da sombra do lugar, também os intelectuais do grupo de Drummond eram vítimas da própria ironia; impiedosos, não se perdoavam nenhuma fragilidade a si mesmos[9]. Será talvez preciso ter vivido no interior para lembrar a desesperada náusea dessas noites relatadas sem auto-indulgência nas crônicas de Drummond? Lá e então, como aqui, os poderes que faziam o deserto crescer eram imediatamente visíveis em tipos emblemáticos, padre, delegado, vereador, dono de cartório, juiz, comerciante, gerente de banco, professora,  aluno promissor que um dia ainda iria ser alguém na vida prestando serviços babujando medalhões. A ironia aí tinha pasto. Mas Drummond também sabe que os poderes são principalmente ativos na invisibilidade das micro-formas sutis do gregarismo, do individualismo, do tédio, do compromisso amoroso, das mães terríveis, da família e do Ideal com que o entusiasmo da cruel abstração da juventude é mistificado. As redes tentaculares dos poderes que constituem o provincianismo conseguem transformar a auto-ironia em irrisão para os próprios indivíduos que tentam, e como! resistir contra eles com suas mesmas formas. É magnífica a formulação dessa irrisão em outra crônica de Confissões de Minas:

“Era ainda naquele tempo (bom tempo) em que se tomava cerveja e café com leite na Confeitaria Estrela. Entre dez e onze horas, o pessoal ia aparecendo e distribuindo-se pelas mesinhas de mármore. Discutia-se política e literatura, contavam-se histórias pornográficas e diziam-se besteiras, puras e simples besteiras, angelicamente, até se fechar a última porta (você se lembra, Emílio Moura?Almeida? Nava?). Ascânio chegou quando o Estrela já entrara em decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o açúcar derramado sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava.”[10]

“(…) o Estrela já entrara em decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o açúcar derramado sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava”. Aqui, mais uma vez, é o poeta quem escreve: o mosquito que come o açúcar derramado sobre as caricaturas condensa agudamente os restos da memória desse tempo na alegoria que figura qualquer experiência análoga, reavivando a lembrança de quem já tenha vivido sua irrisão, pois não se trata de Belo Horizonte ou Para-lá-do-mapa, mas de Brasil. Segundo Drummond, orgulhoso e duro consigo mesmo, o provincianismo de Minas Gerais diria pouco das relações do mesmo indivíduo mineiro que escreve a nota com o período histórico em que vive. Obviamente, é sinceridade de quem viveu a coisa pra valer; mas também modéstia afetada. Embora o provincianismo seja fortíssimo na formação intelectual de qualquer brasileiro, não é necessariamente determinante da orientação política que se dá à experiência da história. Desde cedo, Drummond foi internacionalista e o provincianismo não é determinante do modo como seu pensamento material dá sentido crítico à sua poesia e prosa. Também se deve lembrar que, em 1924, teve a oportunidade de, no meio do caminho da sua estrada de Minas pedregosa, topar com intelectuais como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. O jeito provinciano permanecerá, contudo, ativamente transformado como posição não-provinciana à esquerda, na timidez ousada do estilo como que de cabeça baixa e mãos pensas, cismando sobre o que é cheio de si sem si, lucidez da descrença e a angústia de sempre. Como afirma Drummond, sua prosa marcada pela vida provinciana, por isso mesmo prosa limitada, tem um saldo: deve ser lida como depoimento negativo que indicará aos mais novos o que fazer. O que fazer?

 

 

Autocaricatura de Drummond

Quando afirma, na mesma nota introdutória de Confissões de Minas, que uma sutileza que não resista à prova da convivência mais larga é apenas um vício, alegando justamente a necessidade política da socialização da inteligência, Drummond propõe a mesma orientação ética que se lê nos trechos da carta de Mário de Andrade transcritos em outra crônica comovidíssima e comovedora de Confissões de Minas. Mário de Andrade foi fundamental para Drummond, ensinando-lhe, quando era moço de província, a esquecer o bovarismo de Joaquim Nabuco e as afetações céticas de Anatole France[11]. A mesma lição do amigo se lê quando Drummond afirma que é necessário reformar a capacidade de admirar e de inventar, inventando olhos novos ou novas maneiras de olhar para estar à altura do espetáculo do tempo: “estamos começando a nascer”. Esse mário-oswaldiano “ver com olhos novos” exige um olhar armado, culto e informadíssimo sobre as coisas estrangeiras, ao mesmo tempo sem prevenção, ingênuo e como que primeiro na consideração das coisas  antigas, velhas e novas do país. Ele caracteriza os melhores momentos da prosa de Drummond, como os textos de Confissões de Minas, Contos de Aprendiz e Passeios na Ilha. Drummond declara com todas as letras sua apropriação dos paulistas de 1922, principalmente as lições de Mário de Andrade sobre a moralidade da técnica e o “bárbaro e nosso”, de Oswald de Andrade. Mas, diversamente do nacionalismo limitador de Mário de Andrade – “É preciso evitar Góngora, é preciso evitar Mallarmé” –  a concepção de palavra poética de Drummond deve muito a Mallarmé, principalmente porque não dissocia a formulação estética do pensamento da economia política do signo.

Por isso mesmo, em Confissões de Minas e na sua prosa posterior, são recorrentes temas e procedimentos da sua poesia. Sempre orientados como “expressão livre e arejada”, recebem o mesmo direcionamento negativo do sentido. Desde o início, Drummond escolhe a direção negativa do sentido em função da sua ética do estilo, mas como que a disfarça, discreto, em amabilidades finas, convenientes à vertiginosa liberdade da sua inteligência analítica, fiel antes de tudo a si mesma no exame de sua matéria, a palavra. Uma leitura paciente de toda a sua prosa que a compare com sua poesia encontrará mais evidências desse trânsito dos temas de um campo para outro e poderia ser útil, quem sabe, para elucidar o sentido de formulações condensadas e por vezes herméticas de muitos poemas. Lê-se em um pequeno texto de Confissões de Minas, “Neblina”:

“Mas como é impossível partir -os caminhos são compridos e os meios são curtos e a vida está completamente bloqueada-, tu te resignas a tomar o teu grogue do hotel, nessa hora mais que todas tristíssima – seis horas da tarde, enquanto a neblina cai lá fora, e as mulheres passam monstruosas e vagas como desenhos indecisos, que a mão constrói para apagar logo depois”[12].

Em “Ciclo”, de A Vida Passada a Limpo, voltam as mulheres monstruosas e vagas, transformadas na formulação: “Sorrimos para as mulheres bojudas que passam como cargueiros adernando”. Aqui, o termo “monstruosas” da prosa se repete parcialmente em “bojudas”, que mantém a significação de /quantidade/, mas agora com conotações sexuais e de fertilidade, como a de /vaso/, em “bojudas”; a fórmula genérica “como desenhos indecisos” torna-se “como cargueiros adernando”, em que se acumulam várias noções, /carga/, /viagem/, /missão/, /peso/, /dificuldade/  etc., tornando a imagem muito condensada. Mantém-se nos dois casos a prótase da similitude, “como”, indicativa da operação intelectual de comparação. Por vezes, a estrutura de uma frase personifica o inanimado: “o mole consentimento das peras”, de um texto de Confissões de Minas[13],  reaparece na poesia como “o sono rancoroso dos minérios”. Ou, ainda, a crônica “Natal U.S.A. 1931”: “Possível alusão a Papai Noel, se bem que o indivíduo se haja desprestigiado terrivelmente em literatura. O bom ladrão que, não podendo insinuar-se por outra abertura mais cômoda, introduz-se pelo buraco da fechadura”[14], que  cita  o poema “Papai Noel às Avessas”, de Alguma Poesia. Do mesmo modo, a crônica “Viagem a Sabará”, em que Drummond trata da arte colonial mineira, reaparece estilizada em poemas de “Selo de Minas”, de Claro Enigma. Também seria útil comparar a estrutura de textos postos na forma seqüencial de prosa em muitos poemas com os textos que publicou como prosa e nos quais  a condensação onírica dos significados tem efeitos análogos aos da poesia. É, por exemplo, o caso de “Enquanto descíamos o rio”, de Confissões de Minas, e de “O Enigma”, de Novos Poemas, que têm  andamento e processos analíticos análogos:

“E quando as águas pareciam calmas, um peixe voou que se escondia em camadas mais fundas que o mais fundo suspiro. Logo se formaram círculos, elipses, triângulos e mais desenhos alheios à vã geometria. Entre esses ressaltava a corola de uma flor, que era como uma cobra rastejando na corrente, mordendo apenas, com o seu breve contato, a planta úmida de nossos pés e assumindo a cada instante uma nova complexidade.”[15]

“As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às images/stories trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo”[16].

A negatividade tem, na prosa e na poesia, modulações de tom e de intensidade. Nos poemas de Drummond, ainda na maior empatia pelo outro, a palavra sempre é escarpada e escarninha, arredia ao contato: “toda sílaba/acaso reunida/ a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas”, como em “Nudez”, de  A Vida Passada a Limpo. Mas a prosa é ávida de contato humano. Se às vezes implica a facilidade de alguns textos posteriores, que fazem o leitor sorrir por instantes antes de esquecê-los, como acontece em alguns de Contos Plausíveis, não elimina o sentido negativo do conjunto. Vejam-se, como exemplo de diferentes intensidades e tons, um trecho de prosa e um poema que, praticamente contemporâneos, têm a mesma referência, o mundo visto do apartamento.

A prosa:

“Casa fria, de apartamento. Paredes muito brancas, de uma aspereza em que não dá gosto passar a mão. Aí moram quatro pessoas, com a criada, sendo que uma das pessoas passa o dia fora, é menina de colégio. Plantas, só as que podem caber num interior tão longe da terra (estamos em um décimo andar), e apenas corrigem a aridez das janelas. Lá embaixo, a fita interminável de asfalto, onde deslizam automóveis e bicicletas. E ao longo da fita, uma coisa enorme e estranha, a que se convencionou dar o apelido de mar, naturalmente à falta de expressão sintética para tudo o que há nele de salgado, de revoltoso, de boi triste, de cadáveres, de reflexos e de palpitação submarina. Do décimo andar à rua, seria a vertigem, se chegássemos muito à janela, se nos debruçássemos. Mas adquire-se o costume de olhar só para a frente ou mais para cima ainda”[17]

E a poesia:

“Silencioso cubo de treva;

um salto, e seria a morte.

Mas é apenas, sob o vento,

a integração na noite.

Nenhum pensamento de infância,

nem saudade nem vão propósito.

Somente a contemplação

de um mundo enorme e parado.

A soma da vida é nula.

Mas a vida tem tal poder:

na escuridão absoluta,

como líquido, circula.

Suicídio, riqueza, ciência…

A alma severa se interroga

e logo se cala. E não sabe

se é noite, mar ou distância.

Triste farol da Ilha Rasa.[18]

A diferença é a condensação. A imagem poética de Drummond é sempre tão extraordinariamente condensada que se torna símbolo. Como a “pedra”, o “no meio do caminho”, o “gauche”, o “e agora, José?”, o “João amava Teresa”, o “elefante”, “Luísa Porto” ou a “flor”, os motivos que convergem nela abrem a leitura para associações inesperadas em que não há intervalo temporal entre significante e significado, por isso imediatamente densas e imediatamente sentidas-vividas pelo leitor  como sínteses da experiência. Como ocorre com as associações da oposição semântica de “Triste” e “farol”, da expressão “Triste farol”, que é um correlato objetivo construído como oxímoro ou síntese disjuntiva da tristeza que tolda a lucidez do juízo metaforizada na luz-guia-altura do farol a brilhar na treva. O mesmo oxímoro da lucidez obscurecida do juízo que se distancia de si e do mundo, no alto, para avaliar a existência, é redistribuído nos significados de /isolamento/ e /solidão/ da palavra “ilha” e no significado novo, inesperado, que irrompe quando a categoria /quantidade/, de “rasa”, se transforma pela associação com “ilha” em /qualidade/, que traduz a lucidez triste como irrisão generalizada da vida banal. “Triste farol da Ilha Rasa” é mais um símbolo drummondiano, pois num átimo condensa, para separá-la, a unidade contraditória de sujeito-objeto na experiência angustiada que lê o leitor.

A prosa, como a do trecho, avança movida analiticamente por alguns impulsos básicos encontráveis na poesia: a enunciação descendente, restritiva e quase pejorativa, demonstrando com minúcias a mesquinhez do objeto polifacetado pelo distanciamento da enunciação triste e sem ênfase, não obstante curiosa e onívora; o senso agudo do nonsense da opacidade bruta dos processos limitadores da vida; a desconfiança  e a descrença das soluções acabadas; o raríssimo senso de alternativa; a particularização analítica de coisas, pessoas, personagens, situações, eventos; o desejo quase sempre incontido de evidenciar a não-naturalidade do que é dito; e a dramaticidade do terrível que espreita no mínimo detalhe inocente.

Na poesia, a elisão dos nexos gramaticais impede, obviamente, a representação do processo analítico do pensamento como linearização sintática dos atos do juízo. A mesma elisão produz o discurso como justaposição de pedaços que significam a divisão social do “eu” e das matérias e, simultaneamente, funcionam como diagrama sintático do trabalho crítico de desorganização programática da forma. A possível análise dos temas é feita pelo leitor como inferência parcial das significações condensadas agudamente nas palavras e entrevistas nos intervalos semânticos do deslocamento contínuo dos pedaços justapostos. Interceptando-se em vários planos semânticos associados como  politematismo, as images/stories dão-se à leitura como metonímias do desejo dividido e símbolos extremamente condensados.

 

Drummond não escreve prosa experimental, como Oswald de Andrade. Não dissolve os nexos sintáticos, como faz na poesia; ao contrário, como é uma inteligência extremamente analítica, quando escreve prosa parece ter predileção pela oração contínua e seus incisos e acidentes particularizadores. Veja-se uma formulação típica do seu estilo, que se afunila na particularização crescente de um tema observado e fixado na tensão que constitui sua referência, a cidade capitalista contemporânea, tensão visível na formulação optativa, hipotética – “pode ser”, “poderá explicar”; no gosto das duplicações – “o paralisa e o priva”, “liberta e ao mesmo tempo oprime”, “desta solidão está cheia a vida” e oposições- “mas, poeticamente”  etc.:

“No formigamento das grandes cidades, entre os roncos dos motores e o barulho dos pés e das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por uma terrível solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor. Um desligamento absoluto de todo compromisso liberta e ao mesmo tempo oprime a personalidade. Desta solidão está cheia a vida de hoje, e a instabilidade nervosa do nosso tempo poderá explicar o fenômeno de um ponto de vista científico; mas, poeticamente, qualquer explicação é desnecessária, tão sensível e paradoxalmente contagiosa é esta espécie de soledade”[19]

Drummond vê em sua prosa, antes de tudo, o exercício de uma função que sua poesia não prevê, pelo menos imediatamente: a comunicação. A essa função se relacionam a propriedade vocabular, a formulação aforismática e a clareza. Os textos de Confissões de Minas são escritos com a propriedade vocabular que será, durante toda a vida do autor, adequação da palavra à representação dos temas e à avaliação deles pelo juízo da enunciação. A propriedade vocabular de Drummond não é purista, como a unificação monocórdica do estilo em um registro restrito ao “bem dizer” gramaticalesco, normativo e lusitanista dos gramáticos brasileiros de fins do século XIX e começos do século XX, mas estilização modernista e moderna de vários padrões da língua portuguesa como variedade   necessária pressuposta no conceito de mot juste. Leitor de Machado de Assis, Gustave Flaubert e Marcel Proust, aplica os termos com propriedade e variedade, pressupondo que ajusteza da palavra – como adequação representativa aos temas-  deve ser simultaneamente evidência da justiça dos atos do juízo que, enquanto os avalia, não discorre pelas matérias, simplesmente, mas antes de tudo as decompõe para  especificar os mecanismos  que as particularizam e, distinguindo  o bom do ruim, evidenciar a distinção operada  na  mesma propriedade do uso do termo. Fazendo distinções, Drummond é discreto, pois acredita, como dizia Adorno, que o sujeito precisa sair de si na medida em que se oculta. Saindo de si com discrição, incorpora à seleção vocabular de suas primeiras crônicas a lição modernista da contribuição milionária de todos os erros. E é nisso que se revela um estilista dos bons, pois sua prosa dá nome aos bois. Nunca a simplicidade  kitsch das tentativas de singeleza humanista de um sujeito cheio de boas intenções aquém do objeto, mas a simplicidade artificialíssima que resulta da depuração obtida por operações técnicas extremamente complexas[20].  A “poesia mais rica/ é um sinal de menos”, lemos em A Vida Passada a Limpo. Ou, em prosa:

“À medida que envelheço,vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a crer que  tudo se pode dizer sem eles melhor talvez do que com eles. Por que ‘noite gélida’, ‘noite solitária’, ‘ profunda noite’? Basta ‘a noite’. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra noite”[21].


Como qualquer outro, o estilo que “pinta a passagem” na poesia e na prosa de Drummond é uma sintaxe, uma maneira particular de ver e de dizer as coisas. Mas não só,  porque antes de tudo é a impossibilidade de vê-las e dizê-las de outra maneira[22]. Essa restrição, decisiva na sua arte de poeta do finito e da matéria, determina a composição das significações de seus textos como divisão pelo “fatal meu lado esquerdo”, expressão-síntese de sua poética legível no primeiro poema de A Rosa do Povo (1945). Drummond é, antes de tudo, uma sensibilidade comovida com o tempo, mas capaz, como dizia T.S. Eliot dos poetas metafísicos ingleses do século XVII, de controlar e devorar intelectualmente qualquer experiência afetiva[23]. Desde seu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), a inteligência da forma dessa sensibilidade aparece unida materialmente à afirmação da liberdade como dicção irônica e auto-irônica muito pessoal, mas sem subjetivismo, orientada pelo firme e  desencantado senso utópico de justiça que a faz atenta a tudo quanto é dor. A partir de Sentimento do Mundo (1935-1940), humaniza-se mais, se é possível dizê-lo assim, como maneira auto-reflexiva de dizer as coisas daqui e do vasto mundo que evidencia a particularidade da sua angústia anti-heróica. Acentuando a auto-reflexão com gravidade trágica, o poeta opera o sentido “esquerdo” da ética do estilo em dois níveis complementares e antitéticos de significação, a angústia de viver as formas opressivas da vida capitalista e a resistência contra a sua essencial barbárie. Ser e tempo, vida profunda e miséria histórica, a complementaridade antitética das significações é estranhamento, tensão e contradição das normas sociais que organizam a naturalidade das representações que o leitor habitualmente faz de si e do mundo. O estranhamento acontece em todos os níveis do discurso como dramatização dos temas por meio de duas perspectivas antagônicas[24]. Dividem a figuração em afetos irônico-sentimentais irreconciliáveis e opõem os enunciados como elevação lírica e trágica das matérias humildes e baixas e rebaixamento cômico e satírico das matérias altas e graves: “anjo torto”, “sublime cotidiano”, “vísceras sentimentais”. As mesclas estilísticas dessa divisão negam a unidade suposta do sujeito e a racionalidade suposta das coisas do seu mundo, evocando no leitor as incongruências de um abismo de melancolia racional e ceticismo sentimental[25].

Na auto-reflexão sobre a impossibilidade da poesia em um tempo de miséria, Drummond dissolve as formas artísticas que naturalizam a arte como evidência. A particularidade histórica do artifício aparece à leitura como suspensão e desvanecimento do sentido, pois incide negativamente sobre os condicionamentos sociais, materiais e institucionais da sua própria possibilidade como poesia em um mundo no qual o leitor está inteiramente subordinado à lógica da mercadoria. O real não é racional, propõe sua forma, transformando e dissolvendo as ideologias correntes sobre o tempo e a história. Dissolvendo-as, esvazia também o ato da invenção em um vácuo posto entre limites  denegados: o ainda impossível futuro das  formas da sensibilidade livre anunciadas no “livro inútil”- a inteireza da memória da infância, a vida sem culpa, o amor sem medo e extorsão, o trabalho significativo, a simplicidade da beleza, a liberdade coletiva, a revolução- e o real do presente  intolerável, objeto da reflexão em “livros inúteis”- a miséria da história, a exploração, a mercadoria, a feiúra da cidade, a falta de sentido, a opressão de classe, a solidão do indivíduo, a falta de amor, a injustiça, o fascismo.

Como em Mallarmé, a destruição é sua Beatriz. Poesia da experiência, nunca é harmônica, pois sabe que o sofrimento humano é histórico. Sua divisão mesclada corresponde à desarmonia essencial da vida, pois sabe que o sofrimento nunca é anedótico, menor, pouco ou insignificante. Vamos morrer. Máximo poeta moderno da memória, do esquecimento esquecido de si mesmo e da impossibilidade de esquecer o peso horrível do passado, sabe que qualquer dor é mal, devendo ser tratada com a delicadeza e a honestidade de uma comoção só possível porque fundada na maior solidão de todas, a solidão do indivíduo que  vai morrer sabendo que a injustiça não acabou, uma solidão anti-heróica, portadora da peste coletiva transfigurada na recusa da Grande Saúde que faz a vida improvável. Sua poesia lembra que a morte, tal o gavião molhado de “Morte das Casas de Ouro Preto”, baixou entre nós, em nós e não vai embora. Com comovedora exemplaridade por assim dizer compendiária, dramatizando experiências  que nunca  tiveram vez nem voz, impensável amargo da beleza e impensado recalcado da herança das violências das estruturas coloniais sintetizadas na memória da família patriarcal e das modernidades oligárquicas da sociedade urbana instaurada no país pela Revolução de 1930 e pelo Estado Novo, a força negativa da sua  recusa da vida ruim é extraordinária.

A materialidade da palavra em “estado de dicionário”, a mescla estilística, a sintaxe gaga, a dissolução do verso, a ausência de música, as incongruências de  ironia, comoção,  humor, desprezo e angústia da poesia retomam a auto-reflexão irônico-sentimental praticada pelos românticos como contraste de ideal sublime e de realidade grotesca. Como reflexão infinita de um Eu ilimitado sobre a essência da forma poética, a ironia romântica expressa o distanciamento que a perspectiva de uma consciência infeliz, mas superiormente crítica, toma em relação ao mundo mau e incapaz, em suas formas finitas, de oferecer consolo à má generalidade da sua solidão saudosa de Absoluto. Fundamentando as sentimentalidades em unidades metafísicas tidas como soluções, os românticos recusam as únicas  existentes, as  humanas, por isso nadificam o finito no mito[26].

Nada desse idealismo no estilo da poesia e da prosa de Drummond. Anti-romântico,  seu pensamento é material. Sabe, com a lição romântica de Baudelaire, que o “eu” é abominável; com a lição cética de Montaigne, que é vário e desinteressante; com a lição do rigor de Mallarmé, que a transposição e a estrutura produzem a desaparição elocutória do sujeito, cedendo lugar às palavras em estado de dicionário. E  sabe, com a sabedoria do seu fazer, que o eu lírico eleva a voz do fundo do abismo do ser, pois sua subjetividade é pura imaginação, como diz o Nietzsche do Nascimento da Tragédia [27].

Mas sabe principalmente, com a simples, comum, rotineira  e imediata experiência da vida brasileira, que a destruição da vida besta é mais fundamental que o “eu”, a poesia e o Ser.

Vida de poeta / Drummond

Drummond lendo seus poemas


[1] Confissões de Minas publica textos de gêneros variados escritos desde 1932,: crônicas escritas como ensaios críticos ( “Três Poetas Românticos”, “Mauriac e Teresa Desqueyroux” etc.); crítica artística, crítica política e notícia histórica (” Morte de Federico Garcia Lorca”, “Viagem de Sabará” etc.); memória dos anos da formação do autor em Belo Horizonte  e dos  iniciais de sua vida no Rio (“Na Rua, com os Homens”; “Estive em Casa de Candinho” etc.). Também traz textos escritos como crônicas narrativas, quase ficcionais, de vidas compostas como retratos (“Lembro-me de um Padre” etc.); e, ainda,  peças pequenas, difíceis de classificar, postas entre a teoria da escrita, a invenção poética em prosa  e o diário (“Caderno de Notas”) etc. Cf. Confissões de Minas. In Obra Completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1964.

 

[2] Vale totalmente para a prática do Drummond prosador de Confissões de Minas o que afirma sobre  poesia:
“Entendo que  poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista…” Drummond. “Autobiografia para uma Revista”. Confissões de Minas ( Na Rua com os Homens) ed.cit. p. 530

 

 

[3] Drummond. Confissões de Minas (Caderno de Notas) ed. cit. p.585.

 

 

[4] Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido. Trad. de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1974, pp.265-266 (Estudos, 35).

 

 

[5] Provavelmente, é em  poemas de A Rosa do Povo, como ” Vida Menor”, “Nosso Tempo” e principalmente em alguns de Claro Enigma , como “Os Bens e o Sangue”, “Rapto”, e em um dos melhores  já escritos de toda a história da poesia, “Elegia”, de Fazendeiro do Ar (1952-1953), que o arabesco  dessa dissolução aparece na sua liberdade livre, suspenso no ar, como o quarto de Manuel Bandeira e a sintaxe de Mallarmé. “Fragilidade”, de A Rosa do Povo, teoriza a suspensão do sentido formulada antes, no pequeno texto de Confissões de Minas sobre “pintar a passagem”. A suspensão aludida  é a do ato que figura não propriamente conceitos cheios, mas o instante mesmo das  passagens do uso de uma palavra a outra, o átimo dos intervalos daquela indecisão entre som e sentido que  finalmente acha a chave. Berkeley dizia que a idéia do movimento é antes de tudo uma idéia inerte. No auge da sua arte, em A Rosa do Povo e Claro Enigma, Drummond figura o movimento da linguagem mesma no incessante deslocamento vazio e silencioso dos signos, não-ser das coisas.

[6] “Pessimismo de Abgar Renault”, Confissões de Minas, Obra Completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1964,  p. 529. “Selon moi jaillit tard une condition vraie ou la possibilité, se s’ exprimer non seulement, mais de se moduler, chacun à son gré”, escreve Mallarmé em Crise de Vers

 

 

[7] Rubem Braga. “Fala, Amendoeira”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 19/9/1957.

 

 

 

[8] Por exemplo: “Não somos bastante hábeis para extrair de nosso instrumento a nota mais límpida, bastante honestos para confessá-lo, bastante hipócritas para disfarçá-lo, bastante cínicos para nos consolar, bastante obstinados para tentar de novo e sempre. Por fim, cumprimos a nossa carreira. E não há outra”. Cf. Drummond. “Do Homem Experimentado”. Passeios na Ilha. Ed. cit. p. 666.

 

 

[9] “Recordação de Alberto Campos”, p. 524.

 

 

[10] Idem, p. 525

 

 

[11] Cf. Santiago, Silviano. “Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade”. In Carlos Drummond de Andrade. Poesia Completa. Volume único.Fixação de textos e notas de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A., 2002, pp. III-XLI.

 

 

[12] “Neblina”, Confissões de Minas, ed. cit., p. 588.

 

 

[13] Confissões de Minas, p. 598.

 

 

[14] Idem,ibid. p. 598.

 

 

[15] “Enquanto descíamos o rio”, Confissões de Minas, p. 594.

 

 

[16] “O Enigma”, Novos Poemas, p. 231.

 

 

[17] “Esboço de uma Casa”, Confissões de Minas, p. 579.

 

 

[18] “Noturno à Janela do Apartamento”, Sentimento do Mundo , p.117.

 

 

 

[19] “Fagundes Varela, Solitário Imperfeito”-Três Poetas-Confissões de Minas– pp. 512-513.

 

[20] Cf. “Simplicidade”, em Confissões de Minas. Ed. cit., p. 591.

 

 

[21] Cf. Confissões de Minas, p. 581.

[22] Drummond “Apontamentos literários”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1/9/1946.

 

 

 

[23] “Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas que se contrariam com ferocidade. E desse combate toda a poesia dele é feita”. Mário de Andrade. “A Poesia em 1930”. Aspectos da Literatura Brasileira. 5 ed. São Paulo, Martins, 1974, p. 33.

 

 

[24] Cf. Lima, Luiz Costa. “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade”. Lira e Antilira. Mário, Drummond, Cabral. 2 ed. revista. Rio de Janeiro, Topbooks, 1995.

 

 

[25] “Vila de Utopia”, Confissões de Minas. Obra Completa. ed. cit. p. 561. Por exemplo dessa melancolia racional e ceticismo sentimental, leia-se “O Enigma”:  “Ai! de que serve a inteligência- lastimam-se as pedras. Nós éramos inteligentes, e contudo, pensar a ameaça não é removê-la; é criá-la. Ai! de que serve a sensibilidade- choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom da misericórdia se volta contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies menos favorecidas.” ( Novos Poemas, ed. cit. p. 231).

[26] ” Se a realidade dada perde seu valor para o ironista, não é enquanto é uma realidade ultrapassada que deve dar lugar a uma outra mais autêntica, mas porque o ironista encara o Eu fundamental, para o qual não há realidade adequada”. “Kierkegaard, O Conceito de Ironia”. In Ménard, Pierre. Kierkegaard, sa vie, son oeuvre, pp. .57-59, cit. por Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido.Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 142 (Estudos, 35).

 

 

[27] Aqui, escolhi estabelecer algumas relações da prosa inicial de Confissões de Minas e de livros de poesia publicados pelo autor até 1945. Mas avanço um tanto, para lembrar rapidamente que o arabesco em movimento anunciado em Confissões de Minas no pequeno texto sobre a “pintura da passagem” torna-se princípio estruturador da forma em  Claro Enigma e Fazendeiro do Ar. Neles, o conceptismo  já classificado como “barroquismo” da dicção do enovelar-se intelectualista da linguagem sobre si, deslizando-se, estrutura, em  palavra e palavra no vazio que vai de uma a outra, como se em torno de um eixo de ar intensificado na suspensão encantatória do sentido  livre de nexos de representação na fictícia aparência do presente, tem certamente sentido alegórico de resposta política ao stalinismo do PCB aludida também na prosa de Passeios na Ilha. Mas, antes de tudo, isso- ou aquilo – que também já foi chamado de “formalismo” pelos que  falam de “literatura e história” ignorando a historicidade das transformações históricas da forma da poesia moderna- aponta de novo, poeticamente, para o mestre do Valéry citado na epígrafe, o Mallarmé do “nada”, o Mallarmé “syntaxier”, o Mallarmé do “enunciar é produzir”, o Mallarmé que relaciona  auto-reflexão, linguagem, ficção e  crítica da representação: “Minha matéria é o nada”, lê-se em “Nudez”, de A Vida Passada a Limpo (1958). Tratando do ser e do tempo sem perder-se na floresta negra ou no mato nacionalista, Drummond busca o tema do “nada” também em outro mestre da indeterminação rigorosamente construída, Machado de Assis, desenvolvendo-o como palavra “em estado de dicionário”. Mas não só. Desde A Rosa do Povo, principalmente, passou a fazer poemas narrativos e dramáticos longos, que lembram contos e peças teatrais postos em forma de romance ritmado e rimado, como “Caso do Vestido”. Nesses textos, a distinção tradicional de poesia/prosa já não funciona mais. Já em Alguma Poesia e Brejo das Almas, tinha escrito textos como “O Sobrevivente” e “Outubro 1930”, em que a prosa comparece. Lição de Coisas continua a experiência narrativa e dramática em poemas como “Os Dois Vigários” e “O Padre e a Moça”.