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SOBRE A “BALADA DAS TRÊS MULHERES DO SABONETE ARAXÁ”, DE MANUEL BANDEIRA

 

Desde a preparação da obra Carnaval, de 1919, Manuel Bandeira experimenta de modo cada vez mais freqüente o verso livre, a métrica irregular, aceitando uma convocação da prosa, que passa a estimular sua poesia.
Igualmente, a depuração da herança simbolista, a superação da formação parnasiana e certo desgaste da exploração até certo modo abusiva, embora justificada, do seu problema de saúde — a tuberculose –, tudo isso colaborou para que o Pierrot bandeirista cedesse lugar ao homem ocupado em depositar sobre o mundo circundante um olhar crítico, não mais com seu sofrimento pessoal. O cotidiano, a vida social, com suas mazelas e anacronismo passam, nesse estágio da produção e da vida do poeta, a ocupar paulatinamente sua atenção. Seu verbo revigora-se no uso de antíteses; explora a ironia e um humor nem sempre compreendido.

Sua verve daí para adiante se nutrirá de recortes, fragmentos do real, incorporando soluções que fazem de Bandeira o primeiro modernista brasileiro, sem jamais ter marcado presença na semana de arte moderna de 22 (por decisão exclusivamente sua), embora regresse mais adiante ao soneto, e pratique a rima, oferecendo a seus leitores um apurado ouvido poético.
Minha escolha, como objeto de uma hipotética conferência em Oxford, recai no exame do poema “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”.

Tal exame justifica-se em primeiro lugar porque esse trabalho apresenta uma tectônica moderna, carregada de certo desdém mascarado (talvez de cinismo) e de uma maliciosa e desnorteante energia, congeminada quando o poeta já contava 45 anos de idade. É fruto, supõe-se, de uma maturidade intelectual e vivencial de Manuel Bandeira. Mas é ainda assim um registro poético jovem e destemperadamente astuto.
Tem-se por vezes a impressão de que o poeta diverte-se com a ambigüidade que cria. Nela embarcamos nós.

Em segundo lugar, porque as análises que tenho visto desse poema – e eu estou longe de ter lido todas — não me satisfizeram.

Comecemos pelo título do poema que iremos examinar.
A primeira palavra que atrai nossa atenção é “Balada”.

Na obra Die logik der Dichtung*, de Käte Hamburger, a autora define balada como um poema de personagens ficcionais. Define-se amiúde, ainda, “balada” – e de modo insuficiente, como uma forma poética em que um evento apresentado é compreendido como um encontro vital.
A escolha do termo “Balada”, por Manuel Bandeira, deve-se, presumo – e por ora só posso presumir –, a um combinação desses dois entendimentos.
Um encontro vital, embora imaginoso, tem lugar em uma provável Teresópolis primaveril. E o discurso indireto livre comparece (“Se me perguntassem” […] “eu responderia”) no 16º. e 17º. versos.
Nossa leitura do poema localizou sem dificuldade sintagmas repetidos, e uma evidente opção do autor pela repetição, como modo de reforçar o que pretende expressar. Essa repetição condiciona a modulação dos versos, convidando a uma retomada de tom, o que também é uma decisão que decorre da escolha do título, em que comparece o sintagma “balada”.Ou, ao contrário, deriva da escolha preliminar do título do poema.
Há ainda outra hipótese: o poeta empregou  o termo balada talvez porque estivesse consciente de que a enunciação não correspondesse a um estado vivencial, mas fictício, fingido — sendo certo, ainda, que o sujeito de enunciação do poema é um personagem de si mesmo; se quiserem, uma caricatura de um sujeito lírico, e menos uma expressão direta de uma vivência, como seria o caso, se estivéssemos defronte a um eu-origo sempre presente (um eu aqui e agora em estado de vivência).

Deixemos o restante do título do poema para mais tarde. Para o fim.

A crônica brasileira acerca de Bandeira mostra-nos como é fácil falar de poesia, quando na verdade falamos de assuntos que não tem a ver com ela.
Pois bem, a crônica bandeirista nos conta a seguinte falácia: o poeta teria se enamorado de um cartaz de publicidade de um sabonete em que compareciam três atraentes modelos. Elas, as modelos, em suma, o teriam encantado e teriam sido o motivo que deram origem ao poema. Esse fato teria ocorrido, como aliás o poema informa mais adiante, às quatro horas da tarde, em Teresópolis, cidade serrana do Rio de Janeiro, em algum dia de uma primavera de 1931, Eis uma verdade ou um  engodo?

Vamos examinar isso no curso da análise.

 

Bandeira, o segundo da esquerda para a direita, com os
participantes da Semana de 1922

 

Uma das características da modernidade é o desmantelamento da fronteira entre o culto e o popular; outra é a absorção da prosa pela poesia – e vice-versa.

O burlesco, o sensual, o instantâneo, o insignificante, a matéria da crônica, a comunicação jornalística e de massa penetram o espaço da poesia. Esta última característica não é apanágio do modernismo. O grotesco foi discutido por Victor Hugo no famigerado “Prefácio ao Cromwell”. O poeta francês no século XIX já apregoava e defendia que tudo é poetizável, que não há, a rigor, palavras poéticas e palavras não poéticas.

Entretanto, foi o modernismo e a partir dele que tais demarcações foram abolidas, que a parede divisória cedeu e ruiu até os alicerces; foi o modernismo que fixou como campo da poesia o campo da vida; e sua matéria tudo o que é vivencial e observável. Foi o modernismo que disse que a lógica é uma mercadoria de troca, que é preciso transigir.

No início do século XX as artes plásticas se apoderam do substrato de tudo o que se encontra ao redor. A colagem, o texto publicitário, rótulos de vária ordem, os estados pré-conscientes. A poesia fez o mesmo: Laforgue, Apollinaire, Blaise Cendrars e outros atravessaram o pontilhão divisor das artes.

As possibilidades de composição plástica e literária foram alargadas no curso de uma mútua contaminação. O mundo concreto e material e a imaginação criativa dão-se as mãos. Os vetores da vida complexa contemporânea oferecem novos parâmetros e referências para a consecução do processo de criação literária e depositam nas mãos do artista a verdade precária de seu tempo. Lógica, quem quer a lógica? O belo, o que é se não exatamente o feio.

O equilíbrio, não será ele uma doença do desequilíbrio, que é, talvez seja, a regra?

E William James, por seu turno, oferecerá ao artista, no nascimento do século XX,  o arcabouço de uma filosofia que ao mesmo tempo é psicologia, posto que fundada na investigação da experiência humana direta, uma fonte de alimentação espiritual, e um elemento que favorecerá a separação da arte de seus entraves morais: o pragmatismo e o empirismo radical. O que é a verdade? Apenas algo de que me sirvo por conveniência. Se me é conveniente e adequado, é verdade.
Isso me basta.

 

Vamos ao poema.

“As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam [neologismo do francês bouleverser, inventado por Bandeira, por blague], me hipnotizam” – diz o sujeito de enunciação do poema, primeiro verso.
Essa transferência em boomerang para o ‘interior’ do poema, diretamente, posto que se situa fora dele, é uma espécie de moderna arqueologia poética, que precede a colagem sobre o corpo do poema. O nome pode chocar, mas o sentido não é exatamente novo.
A partir do poema “Les vin des chiffonniers”, estampado na obra Les fleurs du mal, ou, ao menos, por essa época, Baudelaire definia o poeta como um trapeiro, coletor de trapos, um coletor das sobras da vida pós-industrial. O arqueólogo a que me refiro é um parente mais atual do trapeiro. Com a diferença de que o processo em boomerang, a que acabo de mencionar, devolve o problema para o leitor. É ele que deve por derradeiro resgatar do vento a peça curva de madeira que avança perigosamente na direção de sua cabeça.
O que faz o arqueólogo quando em suas escavações descobre um osso (de um mamute? de um dinossauro?)? Ele procura resgatar as demais partes e monta a estrutura provável do animal, de acordo com pressupostos previamente traçados, fruto de sua memória, de seus estudos, de pesquisas anteriores.
O poeta arqueólogo escava na esfera do real e dele destaca fragmentos, entrechos, memória, partes, segmentos de algo infinitamente maior – e os recontextualiza no âmbito de um projeto de arte em fabricação. Entretanto, por ser moderno, essa coleta não é depositada nas mãos do leitor, seu destino, sem que carregue consigo o reflexo do próprio caos de onde foi extraída. Assim, os díspares e desordenados conteúdos do real aderem-se aos prévios conteúdos do objeto de arte em congeminação, modificando-o. Um novo e inédito produto, digamos assim, também real, inaugura-se para o nosso olhar e nossa reflexão; um produto que almeja intrinsecamente — o que faz parte de sua essência –, um espaço no cotidiano como coisa recém-fabricada, como coisa concreta.
Não posso me afastar muito do poema, dessa coisa concreta que acabo de mencionar.
Vejamos o segundo e o terceiro versos.

2º. “Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
3º. O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!”

A repetição no primeiro, segundo e terceiros versos do sintagma “as três mulheres do sabonete Araxá” tem a força e a função no poema de um mantra, que estimula o processo arqueológico, condicionando o processo de recepção e empurrando o fragmento na direção do processo que culminará com sua incorporação poética.
O efeito acústico gera o sinete musical, que oferece uma pauta de leitura previamente demarcada e sinalizada, e que pode ser obedecida pelo receptor ou não. A música infla, preenche os espaços vazios do sentido, devora e alimenta a base poética para que esta se abra.
No modernismo os processos de contaminação de sentido por contigüidade são intensificados e as oposições e semelhanças comparecem lado a lado, gerando um efeito cumulativo.
O imediato e o longínquo; o particular e o impessoal infiltram-se.
No poema, a atração/sex-appeal que as modelos de publicidade estão convocadas a estimular, a provocar, é  destinada a cada um e a todos indistintamente. Também assim o poema. Sob o efeito da infusão da comunicação de massa, sob os auspícios do mantra, torna coletivo, impessoal, o que poderia ser revelação, descortínio pessoal. Oh! as três mulheres […] às 4 horas da tarde!”
Eis uma informação que a despeito de ser uma verdade pessoal – haja vista que a pessoa civil Manuel Bandeira entranhou no poema e em sua biografia a circunstância (o engodo) de que se encontrava às 4 horas da tarde em frente a um cartaz de publicidade, menos que uma incômoda notícia pessoal a que a indiscrição permitiu mencionar –, é um registro de um sentimento coletivo, mesmo que, ainda assim, pessoal.
No modernismo a despersonalização poética, a impessoalidade autoral, se preferirem, não é pressuposto que confere prestígio e universalidade ao registro poético. A neutralidade parnasiana ficou no século XIX e serviu como um antídoto ao ultra-romantismo. (Serviu também, é verdade, para refinar a pena dos poietes sucessores, o que não é despiciendo.) Mas quando os programas de arte do século XX sacudiram nossa sensibilidade e desalojaram nosso intelecto de seu precário conforto, a questão da impessoalidade artística não tinha um encaminhamento simples.  Eliot falava que um autor, para se tornar um clássico teria que saber manejar com intensidade os materiais a sua disposição, fossem eles de cunho pessoal ou não. Um exemplo hoje já clássico é a poética de James Joyce.
Como eu dizia, a impessoalidade autoral no modernismo não é um programa de conduta a que cada poeta deve aderir. Se é certo que a universalidade é atingida quando a substância poética diz respeito a mais pessoas, como quer o heterônimo pessoano Álvaro de Campos, já em Jules Laforgue, precursor da modernidade, deparávamos um sujeito de enunciação lírico que cumpria a função de mero condutor de vozes anônimas e indiscerníveis da realidade pressentida. Examine-se, por exemplo Les complaintes de Paris.
Assim, não há e não pode haver juízo de valor quando descortinamos em um poema elementos extraídos da história de seu autor (a tuberculose de Bandeira é um exemplo oportuníssimo), desde que esses elementos sejam injetados no poema no intuito de um alargamento ou intensificação da experiência receptiva; em suma, desde que o pessoal seja também universal.
Ao poema, novamente.
Alguém alegará, lendo o mencionado verso: ‘não é um simples desabafo, um apelo tão pessoal, tão particular: “o meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!”?’ Não será esse verso exclamativo uma expressão inalienável, indissociável do sujeito de enunciação, de tal modo que só serve a ele, só faz sentido para sua substância psíquica intransferível?’
Ademais, que graça há nisso? Que coisa mais comum!
“O meu reino”, diz o terceiro verso. Reino? Força de expressão, clichê prosaico, se quiserem, clichê importado, subtraído do Ricardo III de William Shakespeare.
Diz o bardo inglês: “meu reino por um cavalo”.
A frase é uma encenação de palco… Não um recurso de alma destroçada. A repetição dela, tornada clichê, é um expediente irônico. A modernidade evita o arroubo, a menos que seja descabido.
Hoje, ou talvez desde Cervantes, “o meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá”, essa expressão provoque apenas um sorriso e um erguer de sobrancelhas por parte do leitor.
Pode-se e deve-se tomar esse verso como uma enunciação dramatizada.
Mas é também uma cutucada na sociedade de consumo.
(Se o leitor crítico quer acomodar-se sobre os falsos louros de uma leitura literal de um poema, é de se discutir a magnitude do benefício que isso trará ao conhecimento e estudo da poesia, bem como, o que é ainda pior, ao seu desenvolvimento pessoal.)

4º.  Que outros, não eu, a pedra cortem
5º.  Para brutais vos adorarem,
6º.  Ó brancaranas azedas,
7º.  Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
8º.  Ou celestes africanas:
9º.  Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
10º. São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
11º. São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
12º. São as três Marias?

 

Fernand Leger, Three Women

 

As mulheres brancaranas, mulatas, africanas são reles exemplares de carne e osso. “Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais vos adorarem”, diz o ‘poeta’ (estou falando entre aspas) dirigindo-se às mulheres do cotidiano, que ainda que merecedoras de serem homenageadas (“a pedra cortem”: aqui a pedra é potencialmente uma estátua de adoração, caso os homens brutais a trabalhem), não são para ele. Seu intento, seu alvo, seu interesse (fingido) é o de estabelecer alguma espécie de vínculo com as mulheres do cartaz publicitário. O nono verso, nesse sentido, é o eixo do poema, que divide também a realidade entre aquela experimentada por todos, versos 4º. a 8º, e a supra-realidade, acessível apenas ao sujeito de enunciação fingido.
Vamos ler o 9º. verso mais uma vez: “que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!” (É desnecessário dizer que ‘só’ neste caso é um advérbio, como ‘somente’, ‘apenas’, não é substantivo ou adjetivo.)
Pois bem, no plano da idéia, da especulação interrogativa, só elas e cada uma delas, em suma, só a tríade feminina consegue (talvez) conjugar funções afetivas como a amizade, a fraternidade e o amor, associadas a outro talentos na esfera do prazer material e físico (prostituição), no plano do ‘verbo’ (declamação) e da espiritualização (elevação, ascensão, vôo).
Carne, verbo, espírito. Não podemos nos esquecer de que esses versos, 10º. e 11º. são sempre interrogações, quimeras ansiadas, dúvidas, jamais certezas. Eis renascida a velha retórica que de modo ofegante, anelante interroga acerca dos atributos de seu objeto de desejo, ainda inabordável… Eis outra armadilha do sujeito lírico fingido de Bandeira.

Sendo, como podem talvez ser, três modos afetivos e três talentos, também o sujeito de enunciação fingido se multiplicou para lograr  uma combinação dos três desígnios indicados no 9º. verso: viver, sofrer, morrer – marcos inevitáveis de  quem vive, não é assim? (Talvez a felicidade esteja inserida na ação de viver.)

“São as três Marias?” indaga o eu do poema no 12º. verso, indagação essa que se repete na verso isolado da estrofe seguinte, o 13º.
O que são as três Marias? São elas Mintaka, Alnilan e Alnitaka, três estrelas absolutamente alinhadas no centro da constelação de Órion, que por seu turno é o caçador na mitologia grega.
Pronto, transferidas as mulheres para o plano celeste, ao menos como hipótese de devaneio, o sujeito lírico fingido consegue combinar e aliar o plano da idéia, da elevação, ao plano material, da estrela plantada no cosmos: concreta, mas convenientemente inacessível. Não estou me esquecendo de que podemos ainda nos socorrer da ‘estrela’, de uso corrente na imprensa e no cinema, sinônimo de modelo ou figura humana,  homem ou mulher, de sucesso que todos gostaríamos de copiar, e de quem gostaríamos de nos aproximar para conviver.
Mas indaguemos sobre o caçador. Quem é ele? Quem é o caçador?
O caçador é aquele que no plano celeste se saiu vitorioso, aprisionando dentro de si as três mulheres, as três estrelas.  No plano terreno, o caçador só pode ser um.
Ou podem ser todos, a coletividade de homens e mulheres hipnotizados pela publicidade.
Caçador e caça confundidos na floresta de signos.

 

Examinemos a penúltima e mais longa estrofe do poema.

É também a mais irregular em termos métricos.

 

14º. A nua é doirada borboleta.
15º. Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida,
[dava pra beber e nunca mais telefonava.
16ª. Mas se a terceira morresse… Oh, então nunca mais
[a minha vida outrora teria sido um festim!
17ª. Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei?
[queres uma ilha no Pacífico?
[ um bangalô em Copacabana?
18ª. Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só
[quero as três mulheres do sabonete Araxá:

Último verso, última estrofe:

19ª. O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

O mundo material, derivado de um ajuste do olhar, se reinstala. Atabalhoadamente as figuras estelares descem ao plano da acessibilidade, ao plano terreno, e se conformam em suas existências humanas, particulares, individuais.

Na esteira dessa readaptação, por assim dizer, o comezinho, o clichê, a expressão rasa do cotidiano, a elocubração prosaica, descarnada de poesia, tudo isso reaparece. É um baixar de olhos do alto para o chão; é o reconhecimento de que a vida tem sua rotina e os terráqueos seus limites, impostos pela realidade, pela situação material de cada um.
Entretanto, o nonsense, a fantasia fabricada sem andaimes, no rés-do-chão, marcam sua presença. É por conseguinte um olhar mal articulado entre a fantasia, o nonsense e o real que constamos agora, tudo de supetão, embaralhado, com nexo duvidoso, se quiserem, acanalhado.
Uma das mulheres, a mais despida, presumo, agrega um apelo natural. Novamente o vôo, a ilusão. Mas um vôo acanhado e trepidante, também ao nível da mata, de borboleta.
Ficamos sempre ao rés do chão nos dois versos que se seguem.
Se a segunda casasse, adviria uma reação muito humana por parte do sujeito do poema, mas nada imaginativa. Além de ficar revoltado, ele “dava pra beber e nunca mais telefonava”. A combinação do pretérito imperfeito do subjuntivo (“se a segunda casasse”) com o pretérito imperfeito do indicativo (“dava”, “telefonava”)  é uma construção coloquial, duvidosa, mas propositada. O poeta optou por essa formulação para fazer com que o discurso se acomodasse às novas circunstâncias.
Seguimos adiante.
A hipótese de uma eventual morte da terceira modelo libera certa impropriedade, agora lógica. Os sintagmas “Nunca mais”; “teria sido”, “outrora”. atritam-se em busca de um sentido e sobretudo de um ordenamento temporal que os acomode confortavelmente. Mas é inútil. “Nunca mais” implica no ensejo de um evento que não se almeja que se repita em um futuro próximo ou distante. “Teria sido”, é verbo composto no tempo pretérito mais-que-perfeito (que indica ação ou estado passado com relação ao que já ocorreu). E “outrora” é um advérbio que significa, sabemos, ‘em outro tempo’, ou ‘antigamente’, também passado.
Com a consumação dessa hipótese, o sujeito de enunciação fingido perde inclusive o passado que não teve
Oxímoro bandeirista.

O 17º. verso elenca uma série tresloucada de alternativas de vida. Ser rei, ter uma ilha, ter um bangalô na praia de Copacabana. E, claro, também, ser estrela.
É uma disparatada lista, de dimensões também disparatadas. Jogo, nonsense, que oscila entre um bangalô numa praia do Rio e a transformação em estrela. Entre o projeto possível, embora difícil, e o quimérico. Tudo decorrente de uma fantástica ação de um tetrarca mágico (que tudo tem para dar e tudo pode transformar).
Novamente o plano material, que precariamente se instalara a partir do 15º. verso, estremece pelo concurso da imaginação sem peias.
Reaparece nessa parte do poema a ambição daquele que é amigo do rei de Pasárgada?
Agora, entretanto, o sujeito lírico fingido, sempre afeito a várias alucinações e a oscilações, dirige sua atenção para o que volta a ser primordial, “as três mulheres do sabonete Araxá”. É isso definitivamente o que o sujeito fingido parece querer, como é igualmente nessa mesma direção que o inconsciente coletivo estremece e age favoravelmente à presença das mulheres do cartaz.

 

O verso isolado, que dá fecho ao poema, repete como em uma ladainha o terceiro verso do poema, decalcado em Shakespeare. E vejam que o poeta inglês planejava apenas dispor de um cavalo, e oferecia todo o seu reino em troca.
O bardo brasileiro oferece o que não tem: o reino. E almeja o que não existe. Almeja apoderar-se com todo o seu ser (afetivamente, fraternalmente, carnalmente, como vimos há pouco) das três figuras publicitárias cujo apagado destino é o de convencer-nos a nos banhar com a lama de Araxá).
Entretanto, o que conta é a imaginação provedora do poeta; o engenho que transforma algo tão apoético potencialmente, em poesia; que resiste ao tempo – e a proposta de Bandeira é inusitada até para a sua época –, e que transforma o caos da realidade em um aviso de advertência.
Esse aviso passa a nossa frente, cruza nosso caminho, buscando frustrar nosso espírito e ocupar nossas mentes, congestionadas de outros avisos e estímulos inúteis.
Esse último verso é a outra ponta da linha circular do mantra, que encerra o poema e o reinaugura: o começo é idêntico ao fim. É a repetição, o retorno; o eterno mantra tomando conta de todos nós em um processo de hipnose.
A propósito do título, “Araxá” é uma expressão do vernáculo tupi-guarani e quer dizer ‘lugar alto de onde se avista o Sol’; Sol que é, portanto, a derradeira estrela do poema. Perto de cada e de todo signo poético, mas longe, no firmamento, na constelação de Órion em que as três modelos, digo, três Marias, moram eternamente até a morte.
O sintagma estrela é um núcleo que se ramifica não apenas por todo o poema examinado, mas por todo o conjunto de poemas da antologia Estrela da manhã e para além dela; é a partir desse substantivo mágico que se articulam morte e vida, cotidiano e surpresa, distância e proximidade, otimismo e pessimismo, futuro e passado; em que ver e cegar, elevar os olhos e mergulhar na escuridão do espírito embaralham-se num embate aliciador.

 

Ricardo Daunt
São Paulo, inverno e início da primavera de 2008

*Vide também: Hamburger, Käte – A lógica da criação literária. Trad. bras. São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 221 e ss.

 

Assista ao fime O habitante de Pasárgada


 Sobre Ricardo Daunt

Poeta, ficcionista, ensaísta.