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O Brasil e a língua portuguesa

1.

O debate sobre o futuro da língua portuguesa em Macau é uma daquelas lenga-lengas sem fim como as discussões sobre a educação ou o ser português. É recorrente e redundante. Na verdade, no caso da língua, não se percebe exatamente por quê. Portugal tem uma estratégia oficial definida para a promoção do português, há instituições de matriz portuguesa a funcionar em Macau, há agentes competentes no terreno, há consciência crítica, há boa vontade. Mas não há coordenação nem diálogo. Cada um age por sua conta e arbítrio e a inércia acaba por vencer o voluntarismo. Por isso não é que não pode haver consequência e este tipo de debate, genérico e estéril, se prolonga.

Vamos lá atrás: em novembro de 2008, o governo português aprovou uma estratégia para a promoção da língua considerada como elemento estruturante do vínculo de identidade nacional portuguesa, como afirmação de Portugal e dos portugueses no mundo apostando, para isso, no ensino da língua. As comunidades numa tal de “diáspora” seriam um eixo fundamental e as escolas portuguesas os pilares indispensáveis para a criação de redes internacionais. Falava-se na habilitação e formação de professores, na produção e disseminação de materiais adequados, e do desenvolvimento de um quadro de certificação das aprendizagens, entre um não sei quê de ideias, expressas naquele eduquês e diplomatiquês próprios dos documentos oficiais. O legislador lembrava-se, ainda, que a RTP e a Lusa mais o milagre das tecnologias de informação – e o Magalhães ali tão perto – também podiam dar uma perninha e, já agora, o Instituto Camões que com as finanças autonomizadas e a criação de um fundo para a língua portuguesa haviam de coroar a nova aurora do português no mundo.

A resolução entrou em vigor vai fazer, exatamente, um ano em janeiro e com que resultados? O primeiro que tiver reparado nalguma mudança, nestes últimos meses, leva um rebuçado. Houve, é verdade, aquele estudo para consumo interno sobre o valor econômico do português (17% da economia portuguesa, não era?), se bem se lembram, mas mais não houve. Isto é Portugal sem fim. E é também um erro de perspectiva.

Faz-me lembrar aquele provérbio chinês que diz: quando o sábio aponta para a lua, o imbecil olha para o dedo. Pois bem, em Macau quando hoje todos apontam para Brasília, muitos insistem em olhar para Lisboa que, aliás, ainda continua a pensar que tem o rei na barriga. Ora, o rei fugiu uma noite para as traseiras do império e, na verdade, nunca mais de lá saiu. E se hoje o Brasil se descobre como o novo rio do ouro, não deve lá por esse novo riquismo pretender substituir-se a Portugal numa luta de galos pós-coloniais. Mas, isto dito, não vamos ser ingênuos. Como em tudo neste mundo, não há chop soy grátis, ou no caso, não há feijoadas grátis: já todos percebemos que estamos – e, nisso, o acordo ortográfico é sintomático – em pleno inverno da economia, dos negócios, e que o valor cultural da língua é pouco menos que uma menção honrosa. Por isso quem pode paga e manda. E o Brasil pode, paga e há-de mandar.

Para Macau, money is no problem. O problema são mesmo as ideias, a imaginação, a inteligência, o conhecimento, a inventiva, tudo o que o dinheiro não compra. O problema é que, desde a transição de poderes, Macau e a RAEM nunca demonstraram ter uma ideia consistente, uma política de cultura em geral, e de língua, em particular. E enquanto este buraco negro continuar e se andar perdido de amores nessa miragem das indústrias culturais, ninguém, em estado lúcido, pode esperar dos senhores que mandam na língua, e dos seus dinheiros, outra coisa que não uma lusofonia assistencialista. Isso significa a incapacidade de Macau se emancipar de táticas circunstanciais e construir na região um pilar autônomo de conhecimento, de promoção da língua, da cultura e dos negócios no quadro da língua portuguesa. Um papel de figurante, portanto.
Com tanto jurista por metro quadrado, e departamentos de Direito e de Português que são os ai Jesus da cartilha do bom lusófono, – ou do segundo sistema – é incompreensível que a RAEM ainda não tenha sabido encontrar uma fórmula jurídica capaz de entregar à região um papel mais original no âmbito da CPLP, e em especial do Instituto Internacional da Língua Portuguesa!

O ceticismo sobre esta incapacidade de afirmação não é novo. Ficou bem evidente, há cerca de um ano e meio, quando este jornal organizou um debate sobre o futuro da língua portuguesa e os participantes entraram no Clube Militar com a mesma convicção com que de lá saíram: língua portuguesa? Ni puto idea. Ponto final. Nem em Lisboa, nem em Macau.

Fosse só o fraco ideário, ou a envergonhada afirmação, e podíamos nós encontrar uma caução moral qualquer para justificar tal desconsolo. Mas não é. É também a descoordenação institucional e associativa patente: a Universidade assobia para um lado, o IPOR para o outro, o Politécnico funciona segundo os seus interesses legítimos, a Escola Portuguesa idem idem, a Casa de Portugal o mesmo, as associações mais ou menos, o Fórum Macau que podia desenvolver uma ação fundamental é o que se tem visto. E, finalmente, os consulados, que instalados lá no alto das suas pirâmides, contemplados por 450 anos de português (sim, quase meio milênio, cumpriram-se em 2007, alguém notou?) – cavalgam a diplomacia do pastel de bacalhau. Dá impressão que, em vez de cooperação, prevalece uma secreta competição, especialmente entre instituições de ensino, ou, pelo menos, um autismo contraproducente para todos.

2.

Há poucos dias, Susana Chou afirmou que era importante o português deixar de ser visto como a língua do colonizador. Não podia estar mais de acordo, se bem que o meu sentido não seja coincidente com o da antiga deputada. A língua portuguesa não deve autocomprazer-se com uma ideia de império, reserva de certa elite social e cultural ou de um prestígio social e político extemporâneo. Nem, pelo contrário, ser ostracizada porque justamente representa esse passado que ninguém quer recuperar; ou porque simboliza uma presença que pouco interessa explorar e reconhecer, para além do seu potencial econômico.

A língua portuguesa deve ser compreendida como uma instância cultural de abertura ao outro, uma língua de promessa, de profecia, de hospitalidade àquele que em nós é absolutamente estranho e diferente mas que, na sua singular idiomaticidade, nos interpela como falantes e falados. A virtude de um território de coincidências e acumulações, nas franjas de impérios vários, como é e foi Macau, repousa nesta pluralidade dentro da unidade que é a língua portuguesa. Neste território da língua convivem idiomas e singularidades tão familiares e, ao mesmo tempo, estranhas entre si quanto são o português americano, o português indiano, o português da Europa ou o português da China. É a partir deste confronto conosco que a língua portuguesa deve começar por empreender uma nova agenda teórica: superar, radicalmente, toda a marca e ambição colonizadora, fazer o luto, recusar novos impérios emergentes e perfilar-se como língua-mátria, língua global de democracia erguida sobre a ética de uma hospitalidade incondicional. Em suma, uma carga de trabalhos.