Guenádi Aigui – Silêncio e Clamor reúne poemas e textos do poeta chuvache Guenádi Aigui (1934-2006), introduzidos e traduzidos por Boris Schnaiderman em volume organizado por ele e por Jerusa Pires Ferreira. Aigui começou a escrever quando a Chuváquia ainda pertencia à União Soviética e estava sob o regime comunista. A Chuváquia situa-se na parte europeia da Rússia, entre os rios Volga e Vyatka, e sua capital, Cheboksary, está a cerca de 600 km de Moscou. Tornou-se uma república autônoma da federação russa em 1992.
O percurso de Aigui e de sua obra se estabelece sob o signo do conflito e do confronto: entre duas línguas, o chuvache e o russo, duas estéticas, a da vanguarda soviética histórica, da qual é um dos raros interessados, e o realismo socialista, e entre um poeta pobre, que se quer livre, e o Estado totalitário, censor.
Segundo Schnaiderman – o mais importante tradutor de literatura russa para o português –, Aigui começou a escrever em 1958, em chuvache, traduzindo seus textos para o russo, língua na qual também escrevia. Em decorrência dos ditames soviéticos para a literatura, sua obra foi ignorada durante muito tempo em seu país; entretanto, circulava em traduções húngaras, polonesas, sérvias, tchecas e brasileiras, neste caso graças ao esforço de Schnaiderman, em parceria com Haroldo e Augusto de Campos. Aigui é um dos poetas então “jovens” publicados na seminal Poesia Russa moderna, de 1968 (Civilização Brasileira), de Augusto e Haroldo de Campos e do próprio Schnaiderman. Após a abertura na União Soviética, promovida por Mikhail Gorbachev, a Glasnost, Aigui passou a ser reconhecido e lido por seus conterrâneos, até se tornar, antes de sua morte, poeta de referência mundial.
Recusa ao realismo socialista significa recusa a modelos dedutíveis para a poesia, questão permanente para os poetas, ou seja, a busca de invenção, de inovação e de definição da própria poesia: “…Nesta/ aldeia de ninguém/ trapos indigentes nas cercas”.
O volume traz, entre outros itens, entrevista de Aigui sobre Vladímir Maiakóvski e um depoimento sobre o poeta francês René Char, com quem dialogou de modo intenso desde 1968. A poesia de Aigui debate os confrontos a que foi submetido, por meio de uma estranheza abstrata, o que se explica por sua aversão ao realismo socialista, que, como fez Schnaiderman, pode ser interpretada como tentativa de transcêndencia. Nesta perspectiva, para deixar com os leitores a forte linha: “… Toco em uns pássaros nos ramos – e eles não saem voando. (…). E há qualquer coisa de humano – nessa compreensão muda”.
Guenádi Aigui – Silêncio e Clamor, traduzido por Boris Schaiderman, com a parceria de Jerusa Pires Ferreira, publicado pela editora Perspectiva, 2011.
Entrevista com Boris Solomonóvitch Schnaiderman
Assiéiev, Bábel, Blok, Brodsky, Bunin, Dostoiévski, Ilia Ehrenburg, Gudzenko, Górki, Ievtuchenko, Kamiênski, Kharms, Khlébnikov, Kropinítzki, Krutchônikh, Lérmontov, Maiakóvski, Mandelstam, Olecha, Pasternak, Tzvietáieva, Tolstói, Púshkin, Tchékhov, Vozniessiênski, Zabolótzki. Além de serem expoentes da rica tradição da literatura em língua russa, foram traduzidos – diretamente do original – por uma das mais originais personalidades brasileiras do século XX: Boris Schnaiderman.
Professor emérito da Universidade de São Paulo, ele completou 90 anos no dia 17 de maio de 2007, além de 82 anos de Brasil. Pela sua longa trajetória de serviços prestados, esse ex-pracinha da Força Expedicionária Brasileira promoveu o intercâmbio do melhor entre Rússia e Brasil. Como se não bastasse a sua longa trajetória de tradutor e colaborador em jornais diários, fundou o curso de Russo da USP para formar mão de obra qualificada para continuar esse mesmo trabalho de interlocução.
A Revista USP publica justa homenagem nesta entrevista exclusiva em que Boris realiza um balanço parcial de suas atividades, especialmente de aspectos pouco conhecidos de sua vida. Como o de ter escrito uma grande enciclopédia praticamente só e de traduzir um mar de textos em várias línguas. Porém, Boris não cessa as suas atividades. Há anos, refaz suas traduções e as lança no mercado editorial. Ele enfeixa agora dois novos projetos: uma coletânea de versões de poemas do contemporâneo Guenádi Aigui, que trará texto de Jerusa Pires Ferreira, e uma coletânea de estudos sobre o ofício da tradução a partir de sua experiência de 65 anos.
Foi em 1943 que ele entregou a sua primeira versão russa para a então Editora Vecchi, sob o pseudônimo Boris Solomonov, extraído de seu patronímico russo Solomonóvitch, que significa “filho de Solomonon”. Apenas nesta entrevista e pela primeira vez no Brasil é grafado o seu nome completo: Boris Solomonóvitch Schnaiderman. Na verdade ela foi elaborada a partir de duas entrevistas concedidas, respectivamente, em 15 de novembro de 2000 e 26 de outubro de 2002. A primeira contou com a participação de Jerusa Pires Ferreira.
Gutemberg de Medeiros: Professor Boris Schnaiderman, o senhor nasceu em 1917, na Ucrânia, e passou parte de sua infância em Odessa. Quando veio ao Brasil, exatamente?
Boris Schnaiderman: Eu vim em fim de 1925. Portanto, com 8 anos de idade. Agora, o senhor frisou que eu nasci na Ucrânia. Está certo. Mas eu sou de formação russa. Vivi em Odessa que, pelo menos naquela época, era uma cidade exclusivamente russa. Ucraniano eu só ouvia quando ia à feira. Assim, pessoas que vinham do campo comercializar seus produtos falavam ucraniano entre si. Mas, em volta de mim, só se falava russo. Eu fui alfabetizado em russo, frequentei escola primária em russo.
GM: Era uma cidade com um teor muito cosmopolita, uma cidade portuária?
BS: Sim, uma cidade portuária que perdeu a sua importância. Porque hoje em dia a navegação marítima não tem assim aquela relevância que tinha nos velhos tempos.
GM: Qual era o nome dos seus pais?
BS: Bom, o meu sobrenome é Schnaiderman. Meu pai Salomão e minha mãe Elisa. Agora, a minha formação se deu basicamente no Brasil. Sempre procurei conservar o russo. Em casa só se falava russo, e tinha, assim (risos), uma grande nostalgia da Rússia e eu ficava lendo russo.
GM: Qual era a profissão de seu pai?
BS: Comerciante. Inclusive nós viemos ao Brasil porque, como comerciante, ele não estava se adaptando ao sistema comunista. Viemos por causa disso. Não por razões políticas. Mas ele não conseguia se adaptar ao sistema.
GM: O seu nome completo é Boris Schnaiderman? O senhor não tem um patronímico?
BS: Tenho, tenho. Boris Solomonóvitch. Todo russo tem patronímico. Na Rússia, todas as pessoas têm três nomes: o nome, o patronímico e o sobrenome. Então o meu nome completo, em russo, em qualquer documento russo que eu queira registrar será e serei Boris, mas em russo é “Báris” porque o “o” russo, como átono, soa praticamente como “a” em português. Báris Solomonóvitch Schnaiderman. Agora, conforme eu lhe disse, aqui decorreu a minha formação. Primeiro, moramos no Rio de Janeiro, depois em São Paulo, onde fiz o meu curso secundário. Depois tinha que seguir determinada profissão. Naquele tempo só eram consideradas válidas, pela classe média, as profissões de médico, engenheiro ou advogado. Por exemplo, em 1934, fundou-se a Faculdade de Filosofia aqui em São Paulo. Mas as famílias de classe média achavam que aquilo era “perfumaria”. Que um homem que quisesse avançar na sociedade, quisesse se firmar, tinha que ser médico, advogado ou engenheiro.
GM: E no Rio de Janeiro, o senhor morou até que época?
BS: Bom, foi bastante complexa essa situação, porque, de início, passamos cerca de seis meses no Rio de Janeiro, viemos a São Paulo e depois, em 34, meus pais voltaram ao Rio de Janeiro. Meu pai se deu mal durante um tempo aqui em São Paulo, não foi bem de negócios. Aí se aventurou no Rio de Janeiro. Depois eu fui para a guerra, participei da FEB em 44 e 45.
GM: Depois o senhor escreveu Guerra em Surdina?
BS: Sim. Depois, entre fim de 45 e 48, eu morei em São Paulo e depois fui morar no interior de Minas Gerais, em Barbacena. Eu me formei engenheiro agrônomo. Queria fazer literatura, mas como lhe disse, naquele tempo, literatura era “coisa” para as horas vagas. Meus pais me diziam: “Ah, você vai fazer literatura? Ótimo! Mas isto se faz aos sábados, aos domingos” (risos).
GM: Ou seja, por volta dos 30 anos o senhor se formou como engenheiro agrônomo?
BS: Trinta, não! Eu me formei quando tinha 23 anos, em 1940. Engenheiro agrônomo, não podia exercer a profissão porque era no tempo do Estado Novo. Para exercer qualquer profissão liberal era preciso estar naturalizado e ter feito serviço militar. Eu poderia ter feito serviço militar na linha de tiro, que existia na época. Era assim uma modalidade para receber certa instrução militar sem se desviar das suas atividades, sem estar incorporado ao Exército. Mas achei melhor me incorporar. Eu fui, me apresentei no Exército. Por isso, fui convocado. Eu queria ir para a guerra. Então fui servir no Exército, morava em Copacabana. Mas eu fiz serviço militar em Campinho, que é perto de Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Fiz minha instrução militar em artilharia. Depois fui convocado, saí de lá e fiz curso de sargento. Dei “baixa” em 42 e fui convocado em 44. Embarquei com o primeiro escalão, tendo sido convocado quase nas vésperas do embarque.
GM: Em Guerra em Surdina, o senhor faz um retrato que foge muito à história oficial da FEB.
BS: É verdade. Mas esse tipo de história que eu narro em Guerra em Surdina, esse tipo de realidade não estava muito presente. Hoje em dia praticamente já se tornou lugar-comum. Há até uma série televisiva que conta uma história (Aquarela do Brasil, Rede Globo de Televisão) com elementos que estavam lá em Guerra em Surdina. O livro saiu em 1964, um pouco depois do golpe. A primeira edição foi prejudicada por isso, evidentemente (risos). Naquelas condições, era muito difícil as livrarias venderem um livro como Guerra em Surdina.
GM: Mas qualquer livro do Ênio Silveira também era complicado ser vendido a partir do golpe, não é?
BS: Mas, ao mesmo tempo, os livros da Civilização Brasileira eram muito procurados. Guerra em Surdina era um livro que tinha que ficar, assim, meio escondido na livraria. Até porque teve repercussão crítica.
GM: Mas como se deu o encontro do senhor com a literatura?
BS: Acontece que eu sempre quis fazer literatura. Quando tinha uns 12 ou 13 anos, disse aos meus pais que estava muito entusiasmado com agricultura, que eu queria ser agrônomo. E eles se apegaram a isso (risos). Mas quando eu tinha assim os meus 15 para 16 anos, tive uma revelação da literatura brasileira. Até então lia principalmente em russo.
GM: Os seus pais trouxeram livros da Rússia? Tinham uma tradição livresca?
BS: Tinham, tinham… Não eram propriamente intelectuais, eram leitores. Naquela época, entre as pessoas que falavam russo, as pessoas letradas em russo, circulavam muitos livros editados em Riga, capital da Letônia. Havia muitas editoras na Letônia que difundiam muitos livros em russo pelo mundo e meus pais recebiam livros de lá. Também circulavam muitos livros de Berlim e editados em russo. Livros da União Soviética não chegavam!
GM: Mas Paris também era um centro editorial em língua russa de muita relevância…
BS: Sim, sim. Mas meus pais recebiam livros de Riga. Quando tinha meus 15, 16 anos meu contato com o português ficou sendo cada vez mais forte e acabei me interessando muito por literatura brasileira.
GM: Qual foi o primeiro livro brasileiro que lhe causou esse impacto?
BS: Bom, José de Alencar e bastante Machado de Assis. Na época, fiquei muito impressionado com a obra de um escritor que hoje em dia pouca gente lê: fiquei marcado por João Ribeiro. Filólogo, escritor, contista, tem toda uma série de crônicas. Eu lia muito as crônicas do João Ribeiro reunidas em livro. Então eu estava no Mackenzie, de São Paulo, e lá na biblioteca havia vários livros do João Ribeiro. Uma grande presença também foi Eça de Queiroz nessa fase, que eu li quase todo. Poesia, principalmente os românticos. Aos 15 ou 16 anos, era natural… (risos).
GM: Então o senhor fez agronomia, mas queria fazer literatura…
BS: Eu queria. Mas sempre havia por trás de minha expressão em português o fato de eu ser bilíngue. E também eu tinha dificuldade. Quer dizer, eu escrevia normalmente, correntemente, se precisasse fazer uma carta… Mas quando eu queria escrever algo com alguma intenção literária, tinha dificuldades. Aí aparecia a minha condição de bilíngue.
GM: Que tipo de característica ou de peculiaridade surgia nessa condição de bilíngue quando o senhor se aventurava a escrever algo mais literário?
BS: É difícil de definir. Mas, por exemplo, eu tinha dificuldade de escrever um texto mais longo em português.
GM: Como o senhor mudou a sua trajetória como agrônomo para a literatura?
BS: Eu fiquei desempregado em 1940 porque não consegui registrar o diploma, pois não havia me naturalizado nem prestado o serviço militar, exigências legais do Estado Novo. Meus pais estavam numa situação financeira bastante difícil, eu dava algumas aulas, trabalhava com meu pai… Meu pai tinha uma lojinha de perfumes. Eu queria me firmar em literatura, então comecei a traduzir. Antes de publicar trabalhos meus, publiquei traduções. Assim, publiquei traduções com pseudônimo durante anos. São traduções que eu não aceito mais. Qualquer uma daquelas traduções que queira republicar eu tenho que retrabalhar muito. Eu não tinha suficiente preparo.
GM: Além do preparo, o Paulo Rónai, em A Tradução Vivida, fala muito sobre esse labor da tradução e das condições adversas que, muitas vezes, o tradutor encontrava no mercado editorial na questão tempo e remuneração. O tradutor se via numa “roda-viva” que, para sobreviver, tinha que traduzir rapidamente. O senhor se viu, também, envolvido nessa malha?
BS: Sim, só que eu vivia com os meus pais. Então, tinha casa e comida garantidas. Mas precisava ganhar dinheiro. Rapaz, eu não podia viver sem ter algum tipo de rendimento e, então, me dediquei à tradução. Dei aulas particulares e me dediquei à tradução. Fui traduzir numa época em que traduzir do russo era quase uma novidade.
GM: Qual foi a primeira obra que o senhor traduziu do russo no Brasil?
BS: Eu nem gosto de lembrar. Saiu em 1944 uma tradução, mas com pseudônimo. O primeiro livro que eu traduzi foi nada menos que Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, uma tradução que eu não aceito mais.
GM: Editora Vecchi?
BS: Editora Vecchi.
GM: O senhor era o Boris Solomonov?
BS: Justamente. Então, é uma tradução que não aceito mais, que foi muito bem recebida. Foi elogiada pela crítica, mas é uma tradução que tem muitos defeitos. Se eu fosse republicar teria que trabalhá-la muito. Eu me esforcei, mas não tinha o preparo necessário. Saiu em 44, eu estava com 27 anos.
GM: O senhor sabe que ainda está em catálogo uma tradução do Boris Solomonov?
BS: Está nas Edições Ouro, não é?
JERUSA: Você devia cobrar direitos por isso.
BS: Mas cobrar de quem? Acontece o seguinte: naquele tempo se assinavam uns contratos leoninos, ferozes. Hoje em dia, tudo está diferente, há uma legislação. Eu me lembro que no contrato que assinei constava que cedia os direitos para qualquer tipo de reprodução: cinema, rádio, televisão ainda não existia, mas, enfim, jornal, etc., tudo para sempre.
GM: Ou seja, a editora era a dona do texto?
BS: Era norma geral, que a editora era a dona do texto. Eles pagavam um “x” pelo direito de editar, que era geralmente muito baixo. Mas houve um período em que, apesar de mal paga, tradução rendia um fixo que a edição de obras próprias não dava. Houve escritores, até conhecidos, que viveram, em grande parte, de traduções.
GM: Sim, jornalismo e tradução são flancos das atividades profissionais normais?
BS: Jornalismo ou algumas revisões para a imprensa.
JERUSA: Para você perguntar para o Boris. O Boris fez sozinho uma enciclopédia. Essa é fundamental. Porque essa dimensão do Boris ele ampliou fazendo sozinho uma enciclopédia, isso não está escrito em lugar nenhum.
GM: Bom, então o senhor terá que detalhar um pouco sobre isso.
BS: Conforme lhe expliquei eu residi em São Paulo, Rio de Janeiro, em 48. Bom, trabalhei com meu pai em distribuição de filmes durante algum tempo. Depois que eu voltei da guerra, em 1945, voltei ao emprego que tinha, eu era funcionário do Ministério da Agricultura e trabalhava no km 47 da antiga Estrada Rio-São Paulo. Ali, ficava a Escola Nacional de Agronomia e havia diversos institutos de pesquisa. Eu trabalhava num deles. No que se chamava Instituto de Ecologia Agrícola.
Pode parecer estranho hoje em dia: por que “ecologia”? Havia um professor italiano, que vinha às vezes ao Brasil, que era muito conhecido. Se não me engano, era Girolamo Azzi. Escreveu um livro chamado Ecologia Agrícola e teve, no meio dos agrônomos, dos especialistas em agricultura e pecuária, uma grande aceitação. O entusiasmo por esse livro foi tanto, que fundaram o Instituto de Ecologia Agrícola. Isso pouco depois da guerra, no Rio. Eu o conheci quando ainda era estudante de agronomia. Eu fiz curso de agronomia no Rio de Janeiro, Escola Nacional de Agronomia, ficava na Praia Vermelha. Ele vinha às vezes ao Brasil antes da guerra. Ele era funcionário do governo italiano, andava com um fascio na lapela, o distintivo fascista. Eu estava na biblioteca e ele entrou e ficou conversando comigo. Eu, assim…, todo encabulado porque estava conversando com alguém que tinha um fascio na lapela.
JERUSA: Tem duas coisas importantes. A entrada do saber, a enciclopédia, e o empenho, os sete anos que ele trabalhou. Sete anos e meio ele trabalhou sob o sinal do relógio de ponto, da sineta. Obrigado a escrever todos os verbetes.
BS: Acontece que entre 1948 e 1953 eu trabalhei no estado de Minas Gerais, em Barbacena. Dirigi o núcleo de agricultura da Escola Agrotécnica de Barbacena, entre 1948 e 1953. Em 53 eu me transferi para São Paulo. Eu tinha largado a Escola Agrotécnica e precisava ganhar a vida.
GM: Seus pais também estavam em São Paulo naquela época?
BS: Não, meus pais não estavam mais em São Paulo. Eles estavam no Rio de Janeiro e eu voltei a São Paulo. Naquela ocasião já tinha constituído família e precisava trabalhar. Uma vez, eu abri o jornal e vi um anúncio em letras quase garrafais: “Pessoas cultas: precisa-se”. O anúncio dizia: “Precisa-se de pessoas que saibam inglês, francês, é desejável também o conhecimento de italiano, latim, grego”. Eu estava desempregado, arrisquei e fui.
GM: Não tinha nenhuma referência de quem é que estava chamando?
BS: Não, nenhuma referência. Aquilo era a Editora Jackson que, depois, com a filial brasileira, passou a se chamar Mérito. Queriam fazer uma enciclopédia, então eles estavam convocando pessoas. Eu e mais um candidato, éramos os dois que fomos aprovados e ficamos trabalhando lá. Ora, aquilo era uma instituição muito estranha que devia dar um prejuízo terrível aos americanos por causa do sistema todo, era uma coisa muito complicada. Eles resolveram simplificar. De vez em quando vinha o representante da Jackson, que era um colombiano, vinha da Colômbia para cá, para controlar. Mas a coisa era completamente doida, completamente estúpida. Uma porção de gente trabalhando, outros controlando. E os que controlavam, às vezes, sabiam menos do que aqueles que estavam redigindo os verbetes, era uma confusão terrível.
GM: Então o senhor começa em 1960, na USP, com o curso livre de Russo e, em 63, acontece a estruturação da seção de Estudos Orientais.
BS: De início, essa seção de Estudos Orientais estava bastante ligada ao Departamento de História, por isso se chamava de Estudos Orientais. Não quiseram dar o nome de letras, de literatura, de língua, chamaram de Estudos Orientais. Tudo era bastante ligado ao Departamento de História. Depois se deu a desvinculação, passou a fazer parte do Departamento de Letras.
GM: Quando foi a sua estreia como tradutor como Boris Schnaiderman?
BS: Eu comecei a assinar como Schnaiderman em 1959, com uma coletânea de Tchékhov que fiz para a Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro. Em 1960 e 61 saíram vários textos traduzidos por mim. O Jogador, Niétotcka Niezvânova, O Eterno Marido, Notas de Inverno sobre Impressões de Verão, O Crocodilo e Memórias do Subsolo, pela José Olympio.
GM: Eu não me lembro de nenhuma reedição sua que não tenha sido revista. O senhor tem esse movimento contínuo de sempre apresentar um novo trabalho reformulado para reedição?
BS: É, porque eu tenho uma insatisfação muito grande com o que faço. Depois de um tempo, vou reler e encontro defeitos e sempre tenho vontade de mexer.
GM: Mas até Guerra em Surdina o senhor refez?
BS: Eu pretendo tirar uma quarta edição revista, porque há certas passagens que são um pouquinho solenes demais, acho que tenho que soltar um pouco mais.
GM: O interessante dessa obra é que o senhor fica o tempo todo no teor da oralidade. O senhor tenta, realmente, retratar o cotidiano dos soldados.
BS: É, pretendo dar um tom mais coloquial. Uma ou outra passagem ainda tem um pouco de impostação literária que eu quero tirar.
GM: Como o senhor define Guerra em Surdina? É livro de memórias, mas pode ser visto como ficção. Dependendo do ângulo, até como livro-reportagem.
BS: Sim, nem há dúvida.
GM: Ele não tem gênero. É híbrido.
BS: Justamente. Quando saiu a primeira edição, eu mandei para o Paulo Rónai e ele me respondeu com uma carta que tinha gostado do livro, mas que achava que ainda não estava resolvido na questão do gênero, que era indefinido e ele via isso como defeito. Eu acho que incorporo isso e quero o livro assim, sem definir.
GM: Para um admirador de Dostoiévski, isso não é nada estranho. Porque Dostoiévski primava pela miscigenação de gêneros literários, como diz Leonid Grossman em Dostoiévski Artista, que o senhor traduziu. Não sei por que não houve uma reedição daquela obra.
BS: É, acho muito importante aquele livro. Eu hoje faria um outro prefácio. Eu não gosto do que eu fiz, foi uma coisa de momento, estava muito marcado com a preocupação de mostrar que não havia diferença entre a crítica estruturalista ocidental que se fazia na Rússia. Eu estava um pouquinho preocupado demais com isso. Devia me preocupar era com o texto realizado como tal.
GM: Eu diria para o senhor que até hoje é um estudo, um levantamento hábil, dos mais sérios do Grossman. Ele não envelheceu.
BS: Concordo plenamente. Aliás, o Wilson Martins criticou que a Civilização Brasileira estava publicando um livro de extremista. Acontece que isso não é totalmente exato, embora esteja marcado pela época. Não se pode fugir à época. Então, tem alguma coisa, às vezes, no palavreado, mas é muito pouco.
Tem uma outra referência que me chamou a atenção na obra: o volume de informação. Ele era antes de tudo um pesquisador. Chegou até a entrevistar Anna Dostoévskaia, segunda e última esposa do escritor, para levantar dados e informações de como se formou a produção dostoievskiana. Ou seja, uma obra de fôlego.
Bom, ele é um grande especialista em Dostoiévski, já tinha publicado vários outros livros sobre Dostoiévski quando saiu esse. Esse, aliás, saiu numa publicação da Academia de Ciências da Rússia, que pôs Dostoiévski em circulação. Em 1971, para os 150 anos do nascimento de Dostoiévski, houve uma grande campanha na Rússia no sentido de reintroduzir o autor, pelo que eles chamavam do “lado bom”. Então, havia uma série de artigos que saíam na época dizendo: “Bom, Dostoiévski se opôs aos socialistas russos”. Mas que socialismo era aquele? Era um socialismo pequeno-burguês. Era semelhante ao que hoje em dia se faz no Ocidente, essa juventude de Paris, de um anarcoide. Os socialistas russos tinham algo diferente, tinham um jeito semelhante. Dostoiévski está muito próximo de nós. Dostoiévski tem que ser reivindicado. Aliás, eu me lembro de um artigo que dizia simplesmente que “Dostoiévski é um aliado do socialismo”, o que nós não podemos deixar. Houve um crítico espanhol, Augusto Vidal, que tem um livro sobre Dostoiévski em que diz claramente: “Nós não podemos ceder Dostoiévski à reação”. O que acontece é que Dostoiévski era profundamente anticapitalista e, ao mesmo tempo, muito conservador, chauvinista, racista.
Ele era fruto do tempo e da cultura dele. Mas uma particularidade que me impressiona em Dostoiévski é como ele conseguia estar numa espécie de virtude do meio, entre ocidentalistas e eslavófilos. Ou seja, como ele transitava. Até nesse aspecto era de miscigenação extrema. Não só nos gêneros literários, mas também nos pontos de vista que ele agregava na sua forma de ver o mundo. E ele fica no meio daquela tensão, como o senhor já reportou várias vezes, de ocidentalistas acusarem-no de eslavófilo e vice-versa. Ele criava uma grande polêmica e, inclusive, polêmica que ele imprimiu bastante no Diário de um Escritor, lançado pela Vecchi nos anos 40.
Não é tradução minha. Aquilo é uma tradução do francês, uma tradução que peca por um excesso de purismo em português. Num estilo elevado no qual eu acho que ele não escrevia. É uma tradução cuidada, mas que foge ao espírito de Dostoiévski, justamente pelo excesso de linguagem castiça. O Diário de um Escritor é uma obra bem densa. No Ocidente, pouca gente o leu na íntegra, pelos contatos que eu tenho. A gente conversa e percebe-se que as pessoas leram parte, pouca gente leu na íntegra. É importante ler na íntegra para conhecer Dostoiévski.
GM: Mas, para quem não domina russo, qual edição o senhor recomenda?
BS: Eu acredito que em inglês haja tradução boa. Saiu recentemente uma edição integral com um estudo introdutório longo do Joseph Frank, um estudioso que dedicou quase que a vida inteira a Dostoiévski.
Em vários momentos, Leonid Grossman pontua a importância da atividade jornalística que Dostoiévski exerceu para a sua obra. Desde aquela conhecida questão de ele iniciar Crime e Castigo a partir de uma notícia de jornal, que foi publicada na época, e que o teria inspirado para erguer a obra.
Bom, Crime e Castigo ainda teve outras características curiosas em relação com o jornalismo. Quando estava em curso a publicação, aconteceu um assassínio bem semelhante. Quer dizer, Dostoiévski estava publicando em fascículos de revista e aconteceu um crime semelhante. Há muita discussão sobre isso, em que se teria baseado Dostoiévski. Agora, eu acho de fato muito marcada a relação dele com o jornalismo. Por exemplo, o capítulo de Os Irmãos Karamazov em que o Ivan está conversando com o Aliócha vai aparecer um pouco antes do episódio do grande inquisidor. Há aquele capítulo sobre as crianças supliciadas, e ele relaciona fatos da imprensa da época. Ele vai relacionando esses episódios da imprensa cotidiana e os problemas cruciais, alguns dos problemas cruciais da obra estão ali. Por exemplo, aquela afirmação de que se é válido construir a harmonia universal, se ela só puder ser erguida à custa das lágrimas de uma criança, que seja. Ele levanta isso, quer dizer, aí ele põe em dúvida, justamente, todos os movimentos socialistas que queriam a subversão da ordem estabelecida.
Ou seja, ele está em constante diálogo com as outras vozes de seu tempo.
Ele dialoga com o socialismo, com os religiosos, ele dialoga com todas as vertentes que existiam na época.
GM: Por exemplo, poder-se-ia pensar em elementos de crônica também na produção jornalística do autor?
BS: É verdade. Dostoiévski tem crônicas jornalísticas. Tem crônicas que estão entre o jornalismo e a ficção. Agora, realmente, ele fazendo a crônica, a imaginação dele é muito fértil, então, ele extrapola, acaba fazendo, também, ficção e crônica.
GM: Além dessa característica de Dostoiévski, da forte presença da sua atividade jornalística, na sua opinião, que outras características desse autor lhe deixam mais impressão? Como escritor-filósofo, além disso, o que mais?
BS: A intensidade humana que ele consegue dar aos seus textos. Aquela vivência humana profunda, isso é uma cofilosofia mesmo, a história ficou marcada por isso. O existencialismo francês está marcado por Dostoiévski. Camus está completamente marcado por Dostoiévski, o que, aliás, ele reconhece, não esconde. Mas ele está muito marcado por Dostoiévski. O L’Etranger, do Camus, sai diretamente de uma crônica do Diário do Escritor. “O Caso Kronneberg” tem a ideia central, aquela ideia do L’Etranger, um indivíduo que é condenado não pelo que fez, mas pelo que a opinião pública criou em torno dele. Isso já está em Dostoiévski.
Outra característica que é imputada a Dostoiévski, por vários críticos, é a de que ele seria um autor “muito pesado”, “triste”, “trágico”, enquanto existe um senso de humor, um humor muito agudo.
Muito agudo. Haja vista esse conto que eu traduzi, “O Crocodilo”, é de um humor desenfreado.
Mas em toda a obra dele você percebe uma ironia, um senso de humor.
Isso, o cômico é muito forte. Bom, Bakhtin chama Dostoiévski de “o escritor do gênero sério-cômico”. Bakhtin diz isso e define muito bem, é o gênero sério-cômico. O cômico estava sempre presente no que havia de sério em Dostoiévski, no que havia de profundo, de filosófico.
GM: Professor, o senhor participou, em alguma instância, de outro momento muito interessante editorialmente de publicação de literatura russa, que foi na Editora Lux, nos anos 60?
BS: É, mas participei pouco. Há quatro contos russos traduzidos por mim. O mais longo é um conto de Górki, que eu acho admirável, “Sobre o Primeiro Amor”.
GM: Em termos de tradução direta do russo, no Brasil, temos três vertentes. Primeiro, o exilado radicado no Brasil, como o senhor e a Tatiana Belinky. Apesar de ela não ter traduzido tão fartamente, mas ela tem…
BS: Ela até traduziu bastante, Almas Mortas de Gógol, Poema Pedagógico de Makarenko.
GM: Outra possibilidade é, por exemplo, o trajeto do Paulo Bezerra. Ou seja, alguns militantes do Partidão que foram à União Soviética e aprenderam o russo e, depois, traduziram.
BS: Moacyr Werneck de Castro, Osvaldo Peralva, que traduziu A Aldeia, de Ivan Bunin. O Paulo Bezerra é um trabalhador infatigável. Ele tem dezenas de obras traduzidas.
GM: O senhor chegou a ter alguma notícia do Georges Selzoff, da Bibliotheca de Auctores Russos?
BS: Conheci. Ele era amigo dos meus pais. [Pega um livro, Águas de Primavera, 1932.] Aqui está Georges Selzoff e Brito Broca, justamente baseado no princípio de um, que escreve em português, e o outro, que sabe russo.
GM: Mas há outras obras que ele assina sozinho.
BS: Ele assinava sozinho mas não produzia sozinho.
Por exemplo, Um Jogador, de Dostoiévski.
Bibliotheca de Auctores Russos. Agora, ele publicava e ele mesmo vendia.
GM: De onde ele vem, o senhor se lembra?
BS: Ele vinha de Riga. Era de formação russa. É que em Riga, quando houve a Revolução, muitos fugiram da Rússia Soviética e ficaram nas proximidades. Muitos, certamente, esperavam que o regime comunista durasse pouco. Havia grandes núcleos de russos, principalmente em Riga. Eu o conheci pessoalmente. Quando eu tinha uns 10 anos, ele devia ter uns 35, 40.
GM: Eu só consegui ver publicações dele de 1930 a 1933. Ele durou mais como tradutor?
BS: Não. Eu o encontrei depois, mas ele já não se ocupava mais disso. Financeiramente não teve muito retorno. É estranho, porque havia um interesse grande pela literatura russa e ele procurou aproveitar isso. Então, conseguiu difundir os livros, mas ele não estava organizado como editor.
GM: Completando: primeiro, exilados russos; segundo, militantes do PCB; e terceiro, pelo que o senhor é diretamente responsável, formação de quadros da academia. Ou seja, os que passaram pela universidade e tiveram um aprendizado sistemático e estruturado. Temos a Aurora Bernardini, a Arlete Cavaliere…
BS: Mas é preciso se referir sempre a Sophia Angelides, que infelizmente não traduziu muito, faleceu. Outro é o Paulo Dal-Ri Peres, que também faleceu sem ter produzido muito.
GM: Qual foi a obra que o senhor queria traduzir e não traduziu?
BS: Houve muitas. Porque só traduzi aquilo que eu queria traduzir. Eu não traduzi nada que não fosse de meu especial interesse. Mas muita coisa que quis traduzir não foi possível porque, de momento, o editor não se interessou. Outras eu não traduzi porque exigia de mim um empenho pessoal que, na ocasião, era incapaz de ter. Agora não estou mais traduzindo sozinho. Agora, numa ou noutra ocasião, eu posso traduzir com alguém um poema, uma coisa assim.
GM: Como com os irmãos Campos?
BS: É. E também estou revendo traduções minhas, antigas. Mas se estivesse em plena atividade tradutória, eu traduziria, sem falta, um autor que acho muito importante e não foi divulgado no Brasil, Daniel Kharms. Que eu saiba só existe a tradução de um conto, uma tradução que fiz pela Revista USP. É um autor que já é conhecido no Ocidente. Ele é da segunda metade da década de 20, e, na Rússia, só existiam publicadas as obras dele para crianças. Toda a obra dele está marcada pelo nonsense. É um precursor de Ionesco, de Becket.
GM: Mas é um nonsense aproximado ou avizinhado como, por exemplo, Mikhail Bulgákov?
BS: É mais nonsense do que Bulgákov. Eu gostaria de traduzir Daniel Kharms, mas atualmente não me dedico à tradução.
GM: Como é que se deu esse encontro do senhor com os irmãos Campos, do qual acabou surgindo essa obra fundamental, Poesia Russa Moderna?
BS: Se não me engano, foi em 61. Eu tive a minha formação literária muito tradicional e, aos poucos, estava me voltando a tudo que havia de moderno em literatura. Por isso mesmo, pretendi estudar e difundir Maiakóvski. Eles, na época, estavam se voltando pelo social. O Augusto, o Haroldo de Campos e o Décio Pignatari foram incorporados à minha casa, com suas respectivas esposas. Foi o Anatol Rosenfeld que fez a comunicação deles comigo. O Haroldo teve aulas comigo de russo, uma vez por semana, durante pouco mais de um ano. O Augusto se matriculou no curso de Russo e fez dois anos. Eles aprenderam russo para traduzir poesia.
GM: Como se deu esse encontro de tradução a seis mãos?
BS: Na maioria dos casos, é a quatro mãos. Eu fazia a tradução linear, linha por linha, e eles pegavam aquilo e trabalhavam, também usavam fontes intermediárias, traduções do inglês, do francês, do italiano. Por exemplo, os valores fônicos. Eles pegavam o texto russo e tinham os valores fônicos da língua, embora não tivessem desembaraço. Eles não seriam capazes, por exemplo, de conversar em russo, mas já dominavam o texto escrito.
GM: Em Turbilhão e Semente tem o texto do seu encontro com o Bakhtin. O que mais chamou a atenção do senhor em Bakhtin e que, porventura, não tenha escrito? Foi passageiro aquele encontro?
BS: Muito rápido porque ele já estava muito doente. O Ivan Ivánov, que é um grande semioticista russo, me convidou para passar o dia com ele, um domingo, em Pieriediélkino, a aldeia dos escritores. Foi um dia inesquecível. Eu vi coisas extraordinárias, tive experiências riquíssimas, inclusive, um encontro com Lila Brik. Houve um momento em que Ivánov perguntou: “Você quer conhecer Bakhtin?”. Eu fiquei perplexo porque, no Ocidente, nem se sabia onde ele vivia, como ele vivia, nada. Eu disse: “Claro!”. Ele disse: “Então vamos visitá-lo”. Pieriediélkino, a aldeia dos escritores, tinha muitas casas de residência, construções de madeira, casas de veraneio, mas muitos escritores residiam lá em caráter permanente. Os escritores que não tinham família alojavam-se num edifício. Aquelas casas de madeira eram muito bonitas e o edifício dos escritores que não tinham família era muito feio, uma construção de cimento armado. Nós fomos nos aproximando desse prédio e, quando estávamos chegando, estava saindo a atendente do Bakhtin, que era uma senhora que tratava dele, praticamente uma enfermeira. Ela estava saindo para fazer compras. O Ivánov perguntou a ela: “Será que nós podemos visitar agora o Mikhail Mikháilovitch?”. Ela disse: “Sim, vocês podem. Mas, por favor, não se demorem e não conversem muito com ele, para não excitá-lo”. Ivánov disse: “Nós vamos tomar cuidado”. Eu entrei junto com o Ivánov e, evidentemente, fiquei calado. O Ivánov me apresentou e disse: “Este é Boris Solomonóvitch Schnaiderman, vem do Brasil e tem estudado a sua obra, tem dado curso sobre a sua obra”. Bakhtin estava deitado na cama, perto, aquela cabeça grande, recostado no travesseiro com um livro no colo. Depois que ele me apresentou, eu me dirigi também ao Bakhtin e disse: “Professor…”. Ele me corrigiu: “Desculpe, mas eu não sou professor”. Realmente tinha havido toda uma série de episódios muito desagradáveis. Ele apresentou a tese, o livro sobre Rabelais, aquele monumento, ele apresentou como tese de doutoramento. Depois de sete horas de discussão a banca resolveu não lhe conceder o título de doutor, mas sim o de candidato, que é o título imediatamente inferior ao de doutor. Também negaram a ele uma classificação que daria direito a exercer o cargo em russo, na realidade, a de professor catedrático. Não lhe deram a classificação necessária para ser professor catedrático. Então, ele me disse: “Desculpe, eu não sou professor”. Eu me calei e fiquei ouvindo a conversa dos dois e olhando aquele quarto com algumas edições das obras de Bakhtin em outras línguas e pastas e mais pastas que eu não sabia o que era. Na realidade, era a maior parte da obra dele que ainda estava para ser publicada. Ele estava muito encantado, na ocasião, com um livro do poeta russo Viatcheslav Ivánov, publicado em Bruxelas. Estava conversando sobre esse volume e ficou insistindo comigo e com o Ivánov: “Vocês deveriam estudar mais, divulgar mais a obra de Constantin Váguinov”. Váguinov foi um escritor, romancista e poeta que fez parte do grupo de Bakhtin. Na época, ainda estava no ostracismo na Rússia, só mais tarde é que ele seria reeditado.
GM: O senhor diz, em Turbilhão e Semente, que vocês entraram, viram aquele senhor deitado e, quando ele começou a falar de literatura, parece que ele virou outra pessoa, entusiasmado.
BS: Realmente. O Ivánov depois me explicou que ele tinha a perna amputada e os médicos diziam para ele que não devia ficar deitado mais do que as horas necessárias para o sono, que ele devia se movimentar. Enquanto a mulher dele viveu ele se movimentava, fazia compras. Depois que ela morreu, ele se deitou na cama e se recusou a andar. Eu o conheci em 72, ele morreu em 75.
GM: Poderia citar os principais momentos em que a literatura russa teve maior visibilidade no Brasil?
BS: A grande difusão da literatura russa no Ocidente deu-se a partir da década de 1880, com a aproximação franco-russa por razões estratégicas e de política internacional. Na sequência dessa aproximação, houve a grande difusão da literatura russa na França. Mas antes dessa aproximação, a literatura russa tinha alguma divulgação na França. Por exemplo: Prosper Mérimée foi um grande divulgador da literatura russa e correspondia-se com Púshkin no início do século XIX. Como o mundo cultural brasileiro estava muito ligado à França, repercutiu aqui.
GM: Poderia citar alguns exemplos desse interesse inicial?
BS: No começo do século XX houve um profundo interesse por Dostoiévski. Por exemplo, os especialistas em direito penal se interessaram muito. Pois Dostoiévski trazia elementos novos, de alguém que tinha vivido com criminosos na Sibéria, que tinha escrito Crime e Castigo. Era um prato cheio para os especialistas em direito penal.
Na época, quem também faz muitas referências à literatura russa é Lima Barreto.
Gutemberg de Medeiros é doutorando na Escola de Comunicação e Artes da USP e jornalista.
Rev. USP n.75, São Paulo, nov. 2007.