Skip to main content

A pedra no caminho, de Drummond

No meio do caminho da poesia
selva selvaggia
Território adrede
Desarrumado
Onde palavras-feras nos agridem
Encontrei Carlos Drummond de Andrade
esquipático
fino
flexiível
ácido
lúcido
até o osso.

(Murilo Mendes, “Murilograma a Carlos Drummond de Andrade”, 1965).

Carlos Drummond de Andrade foi atacado e perseguido de diversas formas por conta de sua poesia: recebeu epítetos como “autor do falso poema da pedra” e “gênio fantasma” e tanto por suas tendências políticas de esquerda e seu “gauchisme”, quanto por sua poesia, em certos períodos, de vanguarda foi acusado de farsante, ridículo, intruso, obscuro e poeta ilegítimo, incapaz de escrever verdadeira poesia. Seus acusadores, em geral, eram favoráveis a uma poesia canônica, preciosista e conservadora: “Céus! Hoje não se rima como nos velhos tempos!” – o que é comum à figura caricatural do poeta ‘sonetista’, romântico ou parnasiano, que há no Brasil desde velhos tempos e está comodamente ligado à manutenção do coronelismo cultural.

Os ataques, orquestrados ora pela, então nova, “geração de 45” – que escolhera a figura de Drummond como avatar do modernismo e arqui-inimigo –, ora por parnaso-conservadores, se concentraram, em boa parte, sobre o poema “No meio do caminho” que, como afirma Arnaldo Saraiva, representa o “pomo da discórdia modernista-antimodernista” no Brasil. Percebendo isso, seu autor resolveu, num ímpeto de jornalista/arquivista/documentarista, selecionar e organizar em volume o que ele encontrou publicado sobre esse poema. Chamou a obra de Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um poema.

Essa biografia ganhou, em 2010, nova edição – ampliada e de luxo – feita por Eucanaã Ferraz para editora do Instituto Moreira Salles. Ela traz ao público do século XXI um vasto registro crítico e jornalístico em torno das discussões que conferiram a esse poema de Drummond, publicado em Alguma Poesia (1930), o status de marco – o que Ferraz, em sua apresentação, chama de monumento de afirmação da poesia moderna. A edição do autor, de 1967, vinha com uma apresentação do escritor português Arnaldo Saraiva, mantida pela edição ampliada de Ferraz, que, após uma análise precisa do poema, o lê como objetivação material de uma monotonia que “não era, portanto, do poema: era antes do (resultante do) acontecimento a que o poema se referia: era a vida”.

Mais para o fim do livro há duas seções novas, introduzidas pelo editor, “Ainda a Pedra”, que reúne alguma fortuna crítica sobre a peça, e “Biografia da biografia”, que nos fornece resenhas sobre a edição de 1967. Nessa penúltima seção há um artigo de Gilberto Mendonça Teles que dialoga com as palavras de Saraiva acima citadas e acrescenta: “A repetição é aí quase absoluta e faculta toda espécie de recriação por parte do leitor. […] sua estrutura se auto-organiza pela repetição, não de palavras, mas de […] uma cadeia de elementos linguísticos contrastantes”. Ou seja, o poema dá a ver, como a poesia de Gertrude Stein, a sintaxe como mecanismo de interação lírica, a sintaxe como jogo, a língua como móbile.

As primeiras seções do livro, que começa com uma série de traduções que “No meio do caminho” recebeu para idiomas como o Árabe, o Alemão, o Italiano, o Espanhol, o Inglês e até o Vietnamês, se dão pela exposição das várias manifestações geradas pelo poema. São a coleção de textos impressos em revistas especializadas, livros e, em maioria, cadernos culturais dos jornais das principais capitais do Brasil. Alguns dos capítulos que se seguem são “Deus”, “Reação pelo ridículo”, “Muita gente irritada”, “Crítica Pessoal”, “Das incompreensões” e por aí se segue.

Entre gargalhadas e alguma indignação, o leitor depara com comentários como “esta pescaria feita na obra dos mais graduados representantes da lírica moderna tem ao menos uma utilidade: é provar que, em matéria de poesia, longe de avançarmos, voltamos à idade da pedra…”, de Oswaldo Orico, um dos maiores inimigos do poema, ou “A questão da pedra no Brasil é quase uma questão de petróleo. O Sr. Drummond tem recebido várias propostas, principalmente de certos cavalheiros que são contra o cimento armado, contra o asfalto e a argila seca”, de Joel Silveira, que aqui aproveita o clima de confusão para se permitir o escracho.

O livro também estampa diversas charges que mencionam o poema – que os jornais e os políticos utilizaram diversas vezes como metáfora para os problemas político-econômicos do Brasil, como se lê na seção “Na política” – e um fac-símile, junto à sua posterior crítica musical, da partitura da canção feita a partir de “No meio do caminho” por Francisco Mignone. Compositor paulistano muito conhecido por sua ópera e sua música nacionalista, nos anos 1930 estabeleceu diversas parcerias com Mário de Andrade – que, além de importante poeta, foi o primeiro musicólogo do país. Nesse período Mignone compôs um ciclo de canções futuristas, no qual se inscreve a canção “No meio do caminho”.

Esse poema de dez versos provocou todo tipo de polêmica sobre sua legitimidade e sobre os valores da produção poética no Brasil. Pode ser visto como deboche, mas, ao mesmo tempo, carrega uma dimensão obscura, de nonsense, de mistério a ser decifrado pela participação do leitor. É um poema monótono, repetitivo, tedioso. E, por assim ser, expõe seus leitores – sobretudo aqueles que não o conseguem compreender – ao ridículo do tédio cultural a que esse próprio texto reage em sua ironia. Pode-se imaginar que essa obra, no contexto cultural brasileiro dos anos 1930 e 1940, tenha causado verdadeiro ódio e levado muitos críticos e beletristas a travarem verdadeira guerra para destruí-la. A esses tantos ataques Drummond respondeu dura e ironicamente:

[O referido poema] corre o mundo e é considerado ora obra de gênio, ora monumento de estupidez. Na realidade não é nenhuma dessas coisas […]. Com efeito, quem se der ao trabalho de examinar-lhe o texto verificará que se trata tão somente da repetição, oito vezes seguidas, dos substantivos “meio”, “caminho” e “pedra”, ligados por preposições, artigos e um verbo. Não há nisso poema algum, bom ou mau. Há apenas alguns vocábulos, que podem ser encontrados facilmente no Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, revisto pelo Sr. Aurélio Buarque de Holanda. (Carlos Drummond de Andrade, “Autorretrato. Carlos Drummond visto por Carlos Drummond”, Leitura, Rio de Janeiro, VI, 1943).

Mas além de tanta ofensa, há também elogios e comentários importantes de amigos e escritores. Mesmo com muitos contras, o pequeno poema despertou reconhecimento e admiração em diversos artistas, escritores e críticos de seu tempo que, de pronto, reconheceram seus índices de ironia e novidade. Sobre esse poema Manuel Bandeira afirmou em carta a Drummond: “[Eu] soube que o Mário [de Andrade] lhe desaconselhara a publicação do poema, por julgá-lo o melhor exemplo de cansaço cerebral. De fato assim é. […] Há ocasiões em que no cansaço cerebral só fica uma célula lírica aporrinhando com uma baita força emotiva!”. E Murilo Mendes: “é o tipo de poema no meio da cabeça da gente. Nunca me esquecerei. Não sai”.

É preciso dizer que esse documentário em forma de biografia tem sua importância nos dias de hoje justamente por dar a ver a dimensão da luta cultural travada pelas gerações de artistas brasileiros da primeira metade do século passado. A certa altura, a poesia era um assunto de revolta e comentário em torno do qual Drummond atingiu seus universais, e esse poema é uma prova material disso.

Em seu ensaio “Da função moderna da poesia”, João Cabral de Melo Neto, poeta que assumidamente escreveu sua obra, digamos, ‘a partir’ da poesia de Drummond, apresenta o problema da poesia moderna como um abismo entre as necessidades das descobertas técnicas e de expansão do domínio técnico da arte por meio da experimentação e a necessidade de comunicação com o público leitor.

Esse problema, formalizado em ensaio por Cabral anos depois da fatura de “No meio do caminho”, desde os anos 1930, foi percebido e explorado por Drummond que, no “malfadado” poema da pedra, já estava a refletir sobre esse abismo. É por isso que nesse poema exemplar se nota uma apropriação de técnicas de paralelismo próprias da cultura popular ou da música coral – que, em geral, tem uma via de comunicação acessível ao leitor/ouvinte – para a transmissão de um conteúdo poético complexo. Por meio da vazão da fragilidade do eu lírico, expressa-se um misto de tédio exterior e altíssima densidade “metafísica” interior.

Poucos, ou nenhum, foram os poemas que tiveram sua própria biografia. Poucos são os poetas capazes de fazê-lo. Por isso Drummond permanece, no século XXI, um obstáculo no caminho da mediocridade poética, embora sua “pedra” precise ser recriada em outros termos, o que não costuma ocorrer, de modo geral. Sua obra, registrada, em parte, nessa biografia, fornece aos jovens escritores – como foi o caso do jovem João Cabral – um ponto de referência que faça ver a possibilidade de uma criação poética desprovida de ingenuidade lírica, rica em técnica e forma e, ainda assim altamente expressiva e pulsante, que seja capaz de interagir de modo não superficial com as contradições da realidade moderna.

Mário Quintana atesta a ideia de que esse poeta e esse poema transformaram as perspectivas nacionais: “aquela pedra foi um marco histórico na poesia brasileira. Desde então, como depois da bomba atômica, nunca mais fomos os mesmos. […] – Continue, Carlos, continue… E não lhe chamemos, por favor, de coisa nenhuma: seria impróprio adjetivar um poeta tão substantivo como Carlos Drummond de Andrade”. A seguir, como não poderia ser de outra forma, vai uma transcrição do pequeno gigante.

 

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

 

 

 

* Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um poema
Carlos Drummond de Andrade
(Ed. Ampliada Eucanaã Ferraz)
Instituto Moreira Sales
342 p.

O autor lê o poema

Sobre Drummond em Sibila


 Sobre Marcelo Flores

Marcelo Flores é compositor, com mestrado na Paris 8. Rege um coral na cidade de Angets.