Lygia Clark. “A Casa é o Corpo: Labirinto”, 1968. Instalação
realizada no MAM-RJ e na Bienal de Veneza, em 1968.
O corpo como enfoque das reflexões da obra – com exceção daquela que usa o próprio corpo como suporte – não é mais percebido unicamente por suas características basilares, e sim como parte da imensa teia de significações que a obra opera. Uma vez que o corpo, concebido no cruzamento de conceitos e processos, passa a ser compreendido – tanto na experiência artística quanto na experiência reflexiva – como algo amalgamado ao contexto da obra. O corpo, nesse nível de percepção e análise, está impregnado de um rumoroso mundo externo a ponto de confundir-se com o mesmo e permanecer na impossibilidade de uma identidade conferida apenas por suas inerentes singularidades. O corpo pertence ao espaço do mundo, com o qual nunca atinge uma estabilidade.
Freqüentemente podemos observar em certas propostas de arte que o corpo físico se faz entrever fragmentado, desconstruído, ou distorcido, e assim, (e apesar disso) facilmente identificável. Porém em outras, o corpo encontra-se tão pulverizado em múltiplas referências – sociais, históricas, políticas, científicas, metafísicas, etc. – que não há qualquer elemento identificador de sua organicidade. Em todas essas abordagens, há sempre uma idéia de prolongamento do corpo – o corpo individual está expandido em seus desdobramentos conceituais e, ao mesmo tempo, na acepção plástica da obra.
Casa e corpo – uma engrenagem simbólica
Há exatamente quarenta anos atrás, Lygia Clark (1920-1988) apresentou, duas vezes, e no mesmo ano, a instalação “A Casa é o Corpo”, obra de fundamental importância para a história da arte brasileira: pela primeira vez, no MAM-RJ e posteriormente, na Bienal de Veneza, quando expôs em sala especial, toda a sua trajetória artística até aquele momento, em 1968.
“A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético” (MILLIET, Maria Alice. 1992. p.111)
A palavra “abrigo” proclama a função primordial da casa: a de abrigar o corpo. Nesse caso, a casa-obra de Clark é basicamente um espaço que “acolhe” o público para a revivência intra-uterina. A obra-casa é um corpo fecundo – um imenso útero; um espaço-continente. O título da instalação aponta essa determinada compreensão, porém, por si só, evoca outros imprecisos sentidos, os quais, inevitavelmente, repercutirão em inexauríveis leituras.
A Casa é o Corpo – o coletivo e o individual
A instalação “A Casa é o Corpo” funda a noção clarkiana de “corpo coletivo” a qual, através de outras proposições, passa a se desenvolver muito significativamente ao longo dos anos 70, época da ditadura militar no Brasil. Nessa época, dedicando-se às “vivências criativas”, e no objetivo de distanciar-se cada vez mais do objeto, Clark continuava se referindo ao termo “abrigo poético” ao mesmo tempo em que inverteu as palavras do título da instalação e, enunciou: “o corpo é a casa”. O corpo que, a partir daquele momento, passa a ser o meio estruturante das “ações vivenciadas”; das ações coletivas transformadoras, ou transgressoras – porque “o gesto é soberano e insubmisso a qualquer regra” (MILLIET, Maria Alice. 1992. p.117). Evidentemente que essa “poética de corpo” construída na emergência de uma imaginação criadora e crítica, continha nítidas intenções anti-establishment – e não somente em relação ao sistema das artes.
É importante ressaltarmos que nessas ações coletivas, os corpos individuais dos participantes tornavam-se um “todo orgânico” ou, uma “arquitetura viva”, conforme Clark. “Trata-se de um abrigo poético onde habitar é equivalente do comunicar” (Clark in MILLIET, Maria Alice. 1992. p.131). As ações, através dos gestos dos participantes, construíam esse “corpo-casa”, ou mais precisamente, essa obra com qualidade de corpo no sentido atribuído por Merleau Ponty: “Ser corpo, (…), é estar atado a um certo mundo” (PONTY, Merleau. 1999. p.205).
A Casa é o Corpo – na Contemporaneidade
O embate “corpo individual x corpo coletivo” está geralmente referenciado conscientemente pelo próprio artista. Doris Salcedo (1958), por exemplo, artista colombiana, ao usar roupas, móveis e objetos domésticos – em obras realizadas na década de 90 e, até início de 2000 – estava, sobretudo, se referindo às atrocidades políticas cometidas em seu país. O título da obra “La Casa Viuda” (A Casa Viúva, 1992 -1995), se refere à expressão colombiana que aponta o lar em que subitamente um membro da família desapareceu pela violência política.
Para Salcedo, os móveis, alterados com cimento, e por vezes desarticulados ou, empilhados em grandes blocos, plasmam a idéia de brutalidade suportada pelo indivíduo e, por conseguinte pela coletividade.
A imagem da “casa”, re-significada na obra de arte, reflete sobre o “corpo individual” dentro do “corpo social”: essa é uma reflexão de corpo em sua totalidade. O espaço da moradia representado tanto pelos aspectos arquiteturais internos e externos, quanto pelo mobiliário e objetos cotidianos, perpassa, além do conceito de “abrigo” ou, de “espaço privado”, a idéia de um “espaço coletivo” primordial. A casa é o ambiente em que se processam os primeiros sentimentos de coletividade; o lugar onde se estruturam modelos de sociedade baseados na organização familiar. Assim, a casa constitui o espaço fundamental das experiências socializantes, e como tal estabelece uma metáfora poderosa do “corpo coletivo” ou, do “corpo social” – uma simbologia que se faz muito presente na arte contemporânea.
Cildo Meirelles (1948) Tunga (1952), Adriana Varejão (1964) e José Bechara (1957) são alguns exemplos de artistas brasileiros – para citar apenas alguns – que, em certos momentos articulam os desdobramentos dessa premissa, cada um a seu modo, em uma escala de múltiplas variações conceituais e formais.
Cildo Meireles. “Desvio para o Vermelho” (1967 – 1984).
Cildo Meireles com a instalação “Desvio para o Vermelho: Impregnação, Entorno e Desvio” conceitualiza o “corpo individual” e o “corpo coletivo”, nos transportando ao espaço de uma residência, um lugar muito “particular”. E, tal como na obra de Lygia Clark em questão, a ambigüidade do título nos oferece as pistas para uma instigante reflexão.
“O título revela o seu duplo sentido: o ‘desvio para o vermelho’ era a resistência, combatida pelos militares com a tortura e a morte dos opositores, cujo sangue correu nas prisões e nos lugares, muitas vezes clandestinos, de interrogatório.
O artista associa também ‘Desvio para o Vermelho’ a um episódio de sua vida: seu pai muito engajado politicamente, levou-o, ainda criança, ao lugar do assassinato de um jornalista político. Os colegas deste tinham escrito nas paredes, com o sangue do próprio morto: Aqui jaz um jornalista que defendia a liberdade de expressão. A polícia apagou: à noite, os amigos reescreveram com tinta vermelha. Essa disputa entre as “forças da ordem” e os contestadores se prolongou por vários dias.
O vermelho como metáfora, simultaneamente, da opressão e da resistência; o vermelho como meio de expressão.” (CATTANI, Icléia. 2004: 110)
A instalação “Desvio para o Vermelho” (1967, 1984 e 1998) possui três ambientes: uma sala branca (Impregnação), onde móveis de diferentes designs, obras de arte e diversos objetos estão encobertos pela cor vermelha; um corredor estreito e escuro (Entorno), onde uma pequena garrafa deixa escorrer uma poça vermelha no chão; e uma sala final (Desvio), no qual uma pia de louça branca, parecendo flutuar no espaço negro, recebe um jorro vermelho da torneira. Toda a instalação, portanto, compõe uma insólita habitação. E a cor vermelha que impregna o seu interior, e que também alude ao sangue, lhe confere um sentido de corpo. Casa e corpo estão completamente amalgamados.
“(…) o vermelho vivo sugere mais do que a memória sensorial pode guardar. Em contraste com a ordem perfeita da disposição da mobília e dos objetos decorativos, ali se deposita um rastro de paixão e conflito, um imenso borrão de ações incomuns deixado por desmesurados habitantes do apartamento-país-mundo, cujas vidas tivessem emigrado da pele de seus humanos corpos para o ambiente paralisado.” (WERNECK, Maria Helena. 2002).
Werneck (2002), ao comentar a obra “Desvio para o Vermelho” de Cildo Meireles – relacionando-a a uma performance de Nardja Zulpério, ambas apresentadas em 1998, na Bienal Internacional de São Paulo, – também alude que o vermelho seria uma metáfora da força da expressão individual sobre a homogeneização produzida pela economia global:
“Este o desafio de individuação. (…) mesmo quando as individualidades são absorvidas nos fluxos de comunicação e consumo da mundialização. Transformam-se, assim, em discursos de espera de um tempo em que os objetos internacionalmente grifados ou indiferentemente massificados sejam inteiramente recobertos de múltiplos tons de vermelho e o cotidiano seja invadido pelo mundo da arte”.
Sobre a questão das leituras propiciadas pelos diferentes contextos histórico-culturais em que uma mesma obra é apresentada (nesse caso, “Desvio para o Vermelho” em 1984 e depois, em 1998), Fonseca interroga: “Quatorze anos mais tarde, (…) Que novos sentidos ela assume? Que outros sentidos ligados ao contexto de seu momento histórico-cultural original ficam menos evidentes?” (FONSECA, Maria da Penha. 2007).
Contudo, apesar das diversas leituras possíveis, (e além mesmo das próprias referências do artista), a obra ficará sempre relacionada à idéia de um “corpo social”. A casa, concebida no espaço da instalação, é o que elabora eficientemente a metáfora de um contexto histórico, político e sociocultural.
Tunga. “Laminadas Almas”, 2004-2007.
Resina, latão, lâmpadas, madeira, metal
polido. Dimensão variável. Fotografia de
Otavio Shipper.
Tunga utilizou dezenas de luminárias e mesas em uma exuberante exposição – composta de instalação e performance – intitulada “Laminadas Almas” (2004-2007), apresentada no Arquivo Geral do Jardim Botânico–RJ em 2006; e no MOMA-NY, em 2007. Fixando-nos apenas em um dos três ambientes: mesas e luminárias estão permeadas por diversos materiais como placas de vidro temperado, telas de metal e fios emaranhados. Seria injusto abordarmos essa instalação, apenas sob o ponto de vista formal desses objetos-esculturas. A obra em sua totalidade é, acima de tudo, produto de elaborações poéticas, filosóficas e intelectuais – um processo muito peculiar do artista, que nesse caso, explora significações sobre “metamorfoses”. Além do que, Tunga sempre teve respostas críticas perante o contexto político-cultural. O próprio fato de apresentar essa obra específica no Jardim Botânico-RJ, por ex., um espaço fora do circuito de arte, demonstrava uma atitude assumidamente política do artista perante a falta de programas culturais das instituições.
Em uma rápida leitura de “Laminadas Almas” fica difícil evitar as considerações sobre um certo “contexto” não somente brasileiro, mas global. Ou seja, sobre um mundo de referências recentes, sejam essas econômicas, culturais ou ambientais. Mesas atravessadas por metais dourados e pelos suportes de luminárias acesas, se equilibram sobre bases desiguais. Que “laminadas almas” são essas que atravessam os objetos, desorganizando o contexto simétrico? Seria esse um “corpo social” luxuoso, (repleto de luzes e dourados), porém ao mesmo tempo, vulnerável – ferido e desestabilizado? Um mundo que, em suas estruturas básicas, sofre com abruptas cisões? Um “corpo social” que, mesmo desestruturado, tenta se equilibrar (teimando em continuar ‘aceso’ e vivo)? Os “cortes” e “perfurações” em cada mesa (metáfora do corpo individual?) seriam as marcas deixadas pelo impacto das turbulentas transições ocorridas nesse “corpo expandido”? Essas seriam algumas das possíveis leituras sobre uma obra de poesia infinda. No entanto, as images/stories geradas por esses objetos (relativos ao espaço privado da casa) produzem analogias entre o “corpo individual” e o “corpo social”, invariavelmente.
Adriana Varejão. “Língua com Padrão Sinuoso”, 1998.
Óleo sobre tela, poliuretano em suporte de madeira
e alumínio, 200 x 160 x 57.
Adriana Varejão, artista que articula uma obra entre pintura, escultura e arquitetura, tem buscado os elementos constitutivos de sua poética nas referências históricas brasileiras. Na série “Azulejaria”, por exemplo, menciona elementos visuais referentes ao barroco, como os desenhos da azulejaria portuguesa, relacionando-os às crueldades da escravatura. Citações essas que na pintura estão dramaticamente associadas a um simulacro de carne: poliuretano pintado de vermelho. Essa solução técnica possibilita uma imagem atroz: a parede (da casa) é um corpo dilacerado e sanguinolento. Corpo e casa formam uma estrutura única, rasgada em sua pele-casca, exposta em sofrimento pulsante. Nessa visão unificante de mundo, o “Corpo individual” está fundido a um “corpo social”. A História é o corpo. O corpo é a obra.
“O quadro põe-se aqui como corpo do mundo. O quadro ferido – a vitimação física conecta a pintura de Varejão ao sentido edificante da vida dos mártires, indo do barroco ao mito fundamental da cultura brasileira do século XX, a Antropofagia. Estamos diante da moldagem histórica do corpo pela religião, pelos encontros violentos e amorosos, do processo de formação da América pelas políticas de gênero relativas à mulher, pelas lições de anatomia do conhecimento científico e da arte” (HERKENHOFF, Paulo. 1996).
De um modo similar à instalação “A casa é o Corpo” de Lygia Clark, a obra de Varejão “ganha qualidade de corpo”. O quadro é um corpo, e como tal, se ata a “um certo mundo” – um universo histórico-cultural.
José Bechara. “A Casa”, 2002. Vista parcial Faxinal das Artes.
Faxinal do Céu, Paraná. Registro Fotográfico: Dedina Bernadelli.
José Bechara apresenta “A Casa”, em Faxinal do Céu, em um encontro/residência de artistas plásticos realizado no município de Pinhão, Paraná em 2002. Partindo de uma casa que servia, durante o evento, como habitação e ateliê para o artista, Bechara buscou estabelecer relações físicas, metafísicas e visuais sobre o habitat. A casa (a própria obra) está bloqueada por um ajuntamento de móveis que se projetam comprimidos, uns contra os outros, obstruindo as portas e janelas, e de tal modo, impedindo a passagem humana.
“Mas o fato é que a atmosfera anda pesada, a violência perpassa os espíritos em versões variadas, algumas delas silenciosas embora avassaladoramente sufocantes, abalando qualquer ilusão de que exista um refúgio seguro, a começar por sua expressão mais essencial, a casa.” (FARIAS, Agnaldo. 2005)
A casa de Bechara é um corpo vulnerável que estremece e vomita, negando a sua função de abrigo. Essa “casa insana” parece ser a síntese visual de um “corpo social” que – na inversão de suas funções – nos ameaça com os mais inesperados atos de abandono e violência. Um “corpo social” que assim, de tão brutal e caótico, tornou-se inabitável. As associações entre “corpo individual” e “corpo social” são imensuráveis, e algumas, por serem tão agudas, são potencializadoras das mais incômodas leituras.
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Nas análises críticas a respeito dessas e também, de outras propostas contemporâneas que usam a imagem da casa para refletir sobre o corpo – não somente em relação à sua individualidade e organicidade, mas em seus movimentos dinâmicos dentro do coletivo – notamos que há sempre uma indicação da fusão do “corpo individual” no “corpo coletivo” (contexto sócio-político, sócio-cultural, e/ou sócio-histórico). O “corpo individual” está impregnado desse “corpo social”, e a esse diretamente relacionado. Definitivamente, como Lygia Clark afirmou: “a casa é o corpo”. E vice-versa.
Dione Veiga Vieira
Novembro, 2008
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Nota
¹Título da Palestra ministrada pela autora do texto, na UFT – Universidade Finis Terrae, Santiago do Chile, com o convite de Sergio González Valenzuela e do centro de alunos de arte dessa universidade; e também, na UVM – Universidade de Viña Del Mar, com o convite de Ismael Frigerio, artista chileno, professor e chefe do Curso de Artes Visuais, em setembro de 2008.
Referências Bibliográficas
CATTANI, Icléia Borsa. 2004. “Arriscar a Pele, Arriscar a Arte: O Risco como Resistência” in “Icléia Cattani”. Organizador: Agnaldo Farias, Pensamento Crítico; vol.3. Rio de Janeiro. FUNARTE.
FARIAS, Agnaldo. 2005. “O Sumo da Violência” in http://www.josebechara.com/texto3.html Acessado em setembro de 2008.
FONSECA, Maria da Penha, “A Arte Contemporânea: instalações artísticas e suas contribuições para um processo educativo em arte”, in http://www.ppge.ufes.br/dissertacoes/2007/MARIA%20DA%20PENHA%20FONSECA.pdf Acessado em outubro de 2008.
HERKENHOFF, Paulo. 1996. “Pintura/Sutura” in “Adriana Varejão”, Catálogo de exposição. Galeria Fortes Vilaça, São Paulo.
MILLIET, Maria Alice. 1992. “ Lygia Clark: obra-trajeto”. São Paulo, EDUSP.
PONTY, Merleau. 1999. “Fenomenologia da Percepção”. Tradução de C. A. R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes.
WERNECK, Maria Helena. 2002. “A mundialização no Cotidiano: images/stories e vozes em dois monólogos brasileiros” in Revista Semear 6. (http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/6Sem_13.html) Acessado em novembro de 2008.