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A TRADUÇÃO NO BRASIL DOS ANOS 1950 — ESTUDOS DE CASO

“Traduzir é a maneira mais atenta de ler.”
(J. Salas Subirat traduzido por Paulo Rónai)

A crítica literária brasileira nos anos 1950, então dominada por uma linha sociológica de tradição francesa nas universidades e pela prática, condenada por Afrânio Coutinho, do review – uma espécie de crítica impressionista de rodapés – nos jornais, vinha respirando novos ares.

Sem desmerecer a crítica sociológica, finalmente instituída no estudo acadêmico brasileiro no começo dos anos 1960 por Antônio Cândido, entendemos que ela tem neste nome a sua mais contundente interpretação e aplicação.

Mas, infelizmente, ela vinha desde os anos 1940 sendo dominada por um uso um tanto banalizado de seus processos e métodos, cedendo espaço a uma crítica de costumes, com juízos pessoais de gosto e ignorando um dos mandamentos principais de Cândido: “ensinar de maneira aderente ao texto, evitando teorizar demais e procurando mostrar de que maneira os conceitos lucram em ser apresentados como instrumentos de prática imediata, isto é, de análise” (CÂNDIDO, 1994, p. 6).

Ou ainda, nas palavras de Mário Faustino, um dos nomes que ajudaram a transformar o cenário da crítica naquele período:

“nossos críticos (…), ao analisarem um livro de poemas, falam sobre o autor, a noiva do autor, a gravata do autor, o bairro onde mora, suas manias, complexos, paranóias, seus antepassados físicos e intelectuais, seu lugar na estante – e se esquecem do importante: do poema e do efeito positivo, indiferente, do livro em questão sobre a língua” (FAUSTINO, 10/02/1957).

Assis Brasil, em seu lúcido estudo sobre “A nova literatura” que vinha surgindo naquele período, cita o ano de 1956 como marco dessa revolução estética, devido ao lançamento naquele ano do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), do qual Mário Faustino participou com a página Poesia-Experiência e “onde foram travados os principais debates sobre o concretismo” (BRASIL, 1973, p. 17).

Este ano também foi pontuado pelo aparecimento do romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, fato que provocou “uma crítica mais aparelhada, mais culturalmente armada, a fim de enfrentar alguns aspectos estéticos do fenômeno criador” (Idem, ibidem).

Entretanto, não falamos aqui de um produto puramente nacional. Os novos ares respirados pela crítica brasileira vinham, por um lado, de uma nova tradição francesa encabeçada pela crítica simbólica ou “aberta” de Rolland Barthes, contando ainda com outros nomes europeus, como Umberto Eco e Tzvetan Todorov (búlgaro radicado em Paris), e, por outro lado, da moderna crítica norte-americana, “liderada” por autores como T. S. Eliot e Ezra Pound.

Essa nova crítica contava com uma certa liberdade estilística e de método, além de uma priorização, semelhante ao estruturalismo, do poema. Aliados a esses aspectos, seguiram-se uma noção das funções sociais do texto a partir de seu efeito sobre o idioma e da relação intrínseca entre crítica e tradução, elementos emprestados de Pound que encontraram campo fértil na voz de Mário Faustino e do grupo Noigandres.

E é justamente essa tensão entre crítica e tradução que trabalharemos neste estudo, levando em conta as contribuições desse fenômeno para a prática da tradução literária. Para tanto, passaremos pelas noções de tradução de Mário Faustino e dos Concretos, culminando na análise de um poema de e. e. cummings traduzido por ambos.

Mário Faustino

Aos 30 anos, pouco antes de sua polêmica morte, Mário Faustino já havia acumulado as funções de acadêmico de Direito, professor, intérprete, versificador invejável, tradutor de uma extensa antologia que ia de Horácio a Brecht, passando por Dante, Villon, Shakespeare – especialmente os sonetos –, Goethe, Rilke, Pound, Eliot, cummings e Artaud, entre vários outros, crítico literário lúcido e, por vezes, inclemente – principalmente dos “medalhões” da crítica e da poesia brasileiras –, jornalista do Departamento de Informação da ONU, em Nova York, editor, entre outras.

Tendo trabalhado em jornais do Pará e do Rio de Janeiro (onde publicou a página Poesia-Experiência), viajou pela primeira vez para o exterior para cursar Teoria Literária e Literatura Norte-americana no “Pomona College”, na Califórnia. Em seguida, viaja para a Europa, visitando Portugal, Espanha, França, Itália, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Áustria e Suíça.

Sua obra crítica se resume, praticamente, às páginas de Poesia-Experiência publicadas ao longo de dois anos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Nelas, Mário dispôs, de forma didática, numa sintaxe visual – em concordância com os conceitos de análise direta do objeto e dos vínculos entre tradição e modernidade e entre crítica e tradução preconizados por Pound – os debates mais relevantes da crítica literária dos anos 1950.
Além de Poesia-Experiência, o Suplemento contava ainda com diversos autores – como Ferreira Gullar e Amílcar de Castro – para discutir o que havia de mais novo ou mais significativo nas artes em geral.

Não apenas pelo choque de se criar um suplemento dessa magnitude num jornal especializado em vender classificados, o SDJB marcou sua época principalmente por transmitir, com rigor e metodologia acadêmicos, a experiência artística de seus editores e colaboradores numa linguagem didática e jornalística.

Com relação à tradução, Mário fez uso de sua formação norte-americana – que incluía nomes com T. S. Eliot, do qual o poeta logo se desvinculou, e Ezra Pound, base do pensamento crítico faustiniano – para aplicar a crítica à pratica tradutória, visando a explorar até o máximo grau possível os aspectos literários dos poemas traduzidos, aplicando-os à língua portuguesa.

Para compreender melhor a idéia de tradução como crítica, passemos a um breve estudo dos conceitos básicos de Ezra Pound.

Ezra Pound

Em Pound, como bem lembra George Steiner, não há como distinguir claramente o que é tradução do que é pura originalidade. Sua obra de maior vulto, os “Cantos”, é tido por alguns críticos como um monumento da tradução por excelência, ou, como diria Haroldo de Campos, um grande não-livro feito de fragmentos traduzidos de livros.

Como sabemos, a tradução é, para ele, “uma força motriz no ato de escrever poesia e de entender literatura. É treinamento excelente para o futuro poeta” (MILTON, 1998, p. 79). Uma forma de aprender com o passado e resgatar o que permanece vivo ao longo da história e de estudar o desenvolvimento de uma língua, refletindo, inclusive, a qualidade da poesia em uma época literária.

Assim como o “Repertir para Aprender, Criar para Renovar” preconizado por Faustino no logo de Poesia-Experiência, aqui temos um lema semelhante: ‘Make it New’, “dar nova vida ao passado literário via tradução” (CAMPOS, 2005, p. 36).

Mas, afinal, para Pound, o que pode ser traduzido de um poema?

Um caminho para se chegar a essa resposta é passarmos pelos três elementos que, na visão do autor, compõem, em conjunto com o sentido das palavras utilizadas, o significado da criação poética. Grande literatura: “linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, 2003, p. 32). São eles, a melopéia, a fanopéia e a logopéia.

A melopéia diz respeito não somente ao ritmo, ou à musicalidade, do poema, mas à interação do som com o sentido, sendo dividida em três espécies, a saber, “poesia feita para ser cantada; para ser salmodiada ou entoada; para ser falada” (Idem, p. 61).

Segundo Pound, na melopéia, as palavras “estão carregadas, além de seu significado simples, de alguma qualidade musical, que dirige a maneira ou a finalidade daquele significado… É quase impossível transferi-la ou traduzi-la de uma língua para a outra” (MILTON, 1998, p. 81).

Se esmiuçarmos o interesse de Pound pela poesia provençal, verificamos que este se dá justamente em função da grande criatividade musical, da melopéia produzida por aqueles poetas trovadores.

Na fanopéia, ou “projeção de uma imagem na retina mental” (POUND, 2003, p. 53), não podemos pensar no conceito de imagem como algo fixo ou estacionário. Pound assume o conceito de fanopéia justamente para distanciar a idéia do imagismo diluído que estava em voga e já havia se esquecido da praxis, ou ação, que anima as images/stories.

Por fim, o elemento que o poeta descreve como a “dança do intelecto entre as palavras… hábitos especiais de uso, do contexto em que esperamos encontrar a palavra, do que habitualmente acompanha seus concomitantes costumeiros, suas posições conhecidas e seu jogo irônico” (MILTON, 1998, p. 81), logopéia.

Na poesia de todos os tempos, podemos encontrar, em certas épocas ou certos autores, predominâncias desses aspectos. Por isso, na crítica poudiana, a tradução ocupa posição privilegiada, ditando um cânone especializado para cada um dos aspectos a serem apreendidos: a melopéia da poesia provençal ou a logopéia de Propércio ou Laforgue, por exemplo.

Esta foi a grande intenção das traduções de Mário Faustino, “repetir para aprender”, nas quais buscou as images/stories condensadas ou a ironia dos sonetos de Shakespeare ou a melopéia de Arnaut, etc. A esta intenção, os poetas do grupo de poesia Concreta, lembraram-se de acrescentar a segunda máxima do lema faustiniano: “criar para renovar”.

Dessa forma, o grupo Noigandres se apropriou de algumas idéias a respeito de criação, crítica e tradução para estabelecer um método que prioriza mais a criatividade percebida nos poemas a serem traduzidos que a repetição das técnicas neles contidas.

É desta técnica, chamada de recriação, na qual a tradução aparece não só como crítica, mas também como criação, que nos ocuparemos adiante.

Concretismo

Georges Mounin conclui seu clássico “Os problemas teóricos da tradução” se referindo a esta prática da seguinte forma:

“Em lugar de afirmar, como faziam os antigos práticos da tradução, que esta é sempre possível, ou sempre impossível, sempre total, ou sempre incompleta, a lingüística contemporânea chega a definir a tradução com uma operação, de sucesso relativo, e variável nos níveis de comunicação por ela atingidos. (…) Tratando-se porém de uma língua considerada em conjunto – inclusive as mensagens mais subjetivas – através da investigação de situações comuns e da multiplicação dos contatos susceptíveis de trazer esclarecimentos, a comunicação pela tradução sem dúvida alguma nunca chega a estar verdadeiramente concluída, o que significa, ao mesmo tempo, que ela nunca chega a ser inexoravelmente impossível” (MOUNIN, 1963, p. 252).

Esta noção nos é útil para termos uma idéia bem próxima de como Mário Faustino pensava a respeito do ato de traduzir. Também nos serve para contrastar essa idéia não muito ousada de trabalhar no terreno seguro das possibilidades de que se dispõe com a postura muito mais radical dos poetas concretos que consideram a tradução justamente a partir de sua impossibilidade ou, na concisão de Jakobson, “a poesia, por definição, é intraduzível. Só é possível a transposição criativa” (JAKOBSON, 1977, p. 72).

Segundo Paulo Rónai,“o objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível” (CAMPOS, 2005, p. 34). É desse argumento que partem os irmãos Campos, chegando até a lembrar os “antigos práticos da tradução” citados por Georges Mounin quando consideram que “para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca.” (Idem, p. 35. o grifo é nosso).
Temos, assim, de um lado uma interpretação faustiniana (bem mais vinculada ao passado e dependente do original) da “tradução como crítica” de Pound e, de outro, o “autoritarismo de ruptura” dos concretos, quando dizem que “o exemplo máximo de tradutor-recriador é, sem dúvida, Ezra Pound” (Idem, ibidem).

Fato curioso é que essa posição polêmica dos irmãos Campos suscita uma discussão sobre o próprio conceito poundiano de renovação, revelando duas interpretações diferentes do mesmo “make it new”.

Como afirma John Milton, corroborado por Jorge Wanderley:

“apesar de sua retórica radical, a obra sobre tradução dos irmãos Campos é ‘capaz de não ser radical’. Não consegue encontrar uma política poundiana de “Make It New” através de sua obra. O que na verdade encontra é a utilização de diferentes técnicas de tradução dentro do mesmo poema” (MILTON, 1998, p. 212).

Milton ainda cita as três grandes influências sobre a tradução dos irmãos Campos – Walter Benjamin, Ezra Pound e Roman Jakobson – enunciando, inclusive, o que foi aproveitado de cada um: de Benjamin, a noção da língua-fonte sobre a língua-alvo; de Jakobson, a idéia de se traduzir a forma da língua-fonte na língua-alvo; e de Pound, a interpretação um tanto questionável do tradutor como um recriador.

Por fim, não obstante as críticas negativas, o autor faz suas as palavras de Wanderley que mostram que apesar do radicalismo, a importância dos poetas concretos para a tradução está sobretudo no fato deles instaurarem “no panorama brasileiro uma visão… de que a tradução passe a ser considerada como chave para o literário e suas relações com o que nos cerca” (Idem, p. 213). Não poderia ter refletido de maneira mais clara a nossa posição.

Sendo assim, passaremos pela poesia de e. e. cummings e pela influência desta nas poéticas dos irmãos Campos e de Mário Faustino, realizando um estudo comparativo das noções de tradução de cada um por meio da análise das versões para o português feitas por ambos do poema “pity this busy monster, manunkind”.

Dessa forma, pretendemos verificar como esse contraste interpretativo das teorias de tradução de Faustino e dos concretos pode interferir no resultado final do poema, buscando gerar um híbrido desse estudo a partir do confronto entre as duas versões e o original.

E. E. Cummings

Embora tendo nascido ainda no século XIX, o pintor, poeta e dramaturgo e. e. cummings marcou a arte ocidental, estabelecendo-se como um dos fundadores da poesia moderna norte-americana.

Para Augusto de Campos,

“Cummings pertence ao elenco dos inventores da linguagem poética do nosso tempo, na base da qual está Mallarmé. A contribuição de Cummings — um autor que é contemporâneo dos nossos modernistas, já que seu primeiro livro de poemas, Tulips and Chimneys, é de 1923 — está no radicalismo, desconvencionalizando a sintaxe e a própria ortografia” (VASCONCELOS, 2006).

Como podemos inferir, ao associar o nome de cummings à invenção e a Mallarmé, Augusto coloca o poeta norte-americano no rol das obras significativas para o processo canônico da poesia concreta que, como ele mesmo afirma, nasce com Mallarmé e culmina no próprio concretismo.

Apesar de partilhar da mesma posição de Campos quanto ao valor da obra de cummings, Mário Faustino não faz questão de vinculá-lo a uma “tradição” de desconvencionalização da sintaxe “com vistas a uma organização não–sintática ou para-sintática e à exploração dos novos ‘mídia’ visuais e auditivos” (Idem ibidem). A preocupação de Faustino está, sobretudo, no verso.

E essas duas prioridades podem ser percebidas nas traduções de cada um. Vamos a elas.

Pity this busy monster, manunkind

Nosso original para análise é o poema intitulado “pity this busy monster, manunkind”, publicado em 1944 no livro “1 x 1”:

pity this busy monster, manunkind,

not. Progress is a comfortable disease:
your victim (death and life safely beyond)

plays with the bigness of his littleness
— electrons deify one razorblade
into a mountainrange; lenses extend

unwish through curving wherewhen till unwish
returns on its unself.
A world of made
is not a world of born — pity poor flesh

and trees,poor stars and stones,but never this
fine specimen of hypermagical

ultraomnipotence.  We doctors know

a hopeless case if — listen: there’s a hell
of a good universe next door; let’s go

E as traduções a partir das quais, aplicando o método Aubert de “modalidades de tradução”, traçaremos um exame comparativo (para tanto, adotaremos as notações AC para quando nos referirmos a Augusto de Campos e MF para Mário Faustino):

Tradução de Mário Faustino

— Piedade para esse monstro atarefado, inumanidade

— não. O progresso é doença confortável:
a vítima (morte e vida mantidas a uma distância conveniente)

brinca com a grandeza de sua pequeneza
— elétrons deificam uma lâmina de barbear
transformando-a em cadeiademontanha; lentes estendem
não desejo através de coleante ondequando
até que não desejo
se volta sobre si não mesmo.
Mundo de feito
não é mundo de nascido — piedade para a pobre carne

e para as árvores, pobre estrelas e pedras, nunca para este
ótimo espécime de hipermágica

ultraonipotência. Nós médicos sabemos

que um doente está desenganado quando… escuta aqui:
tem um universo bom como o diabo aí do lado, vambora

Tradução de Augusto de Campos

piedade desse monstro em ação, humanimaldade?

não. O progresso é uma doença confortável:
tua vítima (morte e vida a salvo à pane)

brinca com a grandeza de sua pequeneza
— elétrons deificam uma gilete
em macroescala; lentes estendem

nãodesejo por ondeante ondequando
até que ele retorne ao seu nãoeu.
Mundo de haver
não é mundo de ser — piedade desta pobre

carne e árvores, pobres pedras e estrelas, mas nunca
desse ótimo espécime de hipermágica

ultraonipotência. Nós médicos sabemos

que um caso é sem remédio quando — olhe: tem uma puta
de uma vida boa paca aí do lado: vamos lá

A começar pelo primeiro verso, já podemos identificar as diferentes escolhas de cada tradutor, bem como o que as motiva:

Original Tradução de MF Tradução de AC Justificativa
pity — Piedade
[modulação]
piedade
[tradução literal]
O uso de travessão seguido de maiúscula em MF revela uma ligeira mudança de perspectiva do original.
this para esse
[transposição + modulação]
desse
[modulação]
Transposição: uma palavra convertida em duas. Modulação obrigatória devido à transitividade do termo “piedade” que pede preposição.
busy monster, monstro atarefado,
[transposição]
monstro em ação,
[transposição + modulação]
Transposição: mudança de ordem. Modulação, pois o campo semântico é apenas parcialmente similar: “busy” contém alusões comerciais que “em ação” não possui.
manunkind, inumanidade
[modulação]
humanimaldade?
[modulação]
O Português não possui tradução literal para este neologismo, porém verificamos em ambas as traduções a preocupação em resgatar conotações de “mankind” e “unkind” contidas no termo, com AC acrescentando a palavra “animal” ao significado. Outro fato é a modulação operada pelo uso da interrogação no fim do verso de AC, semelhante ao processo adotado por MF com o travessão no começo do verso.

Embora tanto Mário como Campos procurem responder à desconstrução crítica da medida clássica de dez pés da poesia inglesa, o nosso decassílabo, presente no poema, respeitando certas quebras rítmicas e mantendo a tonalidade, nos versos acima podemos perceber uma preocupação muito maior com o choque vocabular causado especialmente pela pontuação e por neologismos como “manunkind”, de grande valor lírico.

Para resgatar este choque no nosso idioma, os poetas fizeram uso de recursos de pontuação, estabelecendo em ambos os casos um tom coloquial crítico, apenas, ou também interrogativo.

Como veremos no verso seguinte, “busy monster” é uma imagem para “Progress”, logo, mais próximo do sentido literal, fica a tradução de MF, ainda assim, ambas atentas aos aspectos mais inovadores do verso: a relação entre pontuação, uso de maiúsculas e minúsculas, e sentido; images/stories dinâmicas; neologismos; e forte estrutura ritmica marcada pelo verso de 10 pés.

Não obstante, o verso original ainda contém uma série de relações como a que existe entre “monster” e “manunkind”, tanto sonora quanto de proximidade, e a antítese gerada entre a palavra inicial e final do verso: “pity” e “manunkind”, afinal, como alguém que é o oposto de doce, gentil, amável pode ter pena?

As mesmas prioridades e problemas se mantém nos versos seguintes:

Original Tradução de MF Tradução de AC Justificativa
not. — não.
[modulação]
não.
[modulação]
Em MF, o travessão dá continuidade ao primeiro verso, assim como a caixa baixa no original. “Not” tem uma leve alteração de perspectiva sobre o termo “não”; a nosso ver, “not” é uma negativa reforçada, deveria ter sido realçada nas traduções.
Progress O progresso
[modulação]
O progresso
[modulação]
Caso freqüente em traduções do Inglês para o Português: acréscimo de artigo definido.
is a é
[implicitação]
é uma
[trad. literal]
MF considerou desnecessário o artigo indefinido em detrimento de uma equivalência de acentuação sonora na 6a.
comfortable disease: doença confortável:
[transposição]
doença confortável:
[transposição]
Vertendo a ordem do adjetivo para o usual do Português.

No terceiro, mais um desafio logo na palavra que abre o verso:

Original Tradução de MF Tradução de AC Justificativa
your a
[modulação]
tua
[modulação]
Ambos os casos optam por uma mudança de perspectiva, embora AC consiga compensar a ambigüidade que seria causada pelo pronome “sua”. Aqui podemos notar claramente que cummings se refere à vítima da “confortable disease”, entretanto, o autor brinca com nossa expectativa, substituindo o esperado “it´s” pelo pronome “your”, forçando a relação entre “manunkind” (a quem ele dirige o diálogo) e “busy monster” estabelecida no primeiro verso. Um ótimo exercício de logopéia muito bem resolvido por AC e percebido mas evitado por MF.
victim vítima
[trad. literal]
Vítima
[trad. literal]
(death and life (morte e vida
[trad. literal]
(morte e vida
[trad. literal]
safely beyond) mantidas a uma distância conveniente)
[transposição + mod.]
a salvo à pane)
[transposição + mod.]
Em ambos temos um aumento do número de palavras e uma ligeira mudança de ótica, com MF mais próximo do sentido e AC mais próximo do som do verso.

Na terceira estrofe, temos:

[trad. literal]brinca com a grandeza de sua pequeneza[trad. literal]Soluções idênticas nos casos. Embora “plays”, no contexto, possa admitir também a idéia de “jogar”, preferimos considerar os casos como palavra-por-palavra— electrons deify one razorblade— elétrons deificam uma lâmina de barbear[trad. lit. + transposição]— elétrons deificam uma gilete[trad. lit. + mod.]Novamente, MF mais próximo do original e AC mais próximo do som. Transposição de número em “lâmina de barbear” e modulação em “gilete”into a mountainrange; lenses extendtransformando-a em cadeiademontanha; lentes estendem[mod. + trad. lit.]em macroescala; lentes estendem[mod. + trad. literal]Duas modulações antes da cesura em MF, uma delas, um infeliz neologismo. Em AC, substituindo o sentido original pelo seu efeito de tamanho.
Já nos versos 7 e 8, outra dificuldade:[mod. + transposição]nãodesejo por[mod. + trad. lit.]Neste ponto, não sabemos porque, AC inaugura uma nova estrofe, distanciando-se do original. O neologismo “unwish” não possui equivalente em Português, forçando a modulação. Transposição: uma palavra se torna duas.curvindcoleante[modulação]ondeante[modulação]Ambas as modulações claramente devidas à sonoridade ondulatória do verso.wherewhenondequando[trad. lit.]ondequando[trad. lit.]Outro neologismo, dessa vez passível de tradução literal.till unwishaté que não desejo[transp. + mod.]até que ele[transp. + mod.]Aqui MF acrescentou um verso ao original, devido ao grande poder de concisão do verso de cummings. Transposição de número e modulação do termo “unwish”.returns on its unselfse volta sobre si não mesmo[modulação]retorne ao seu não eu[modulação]Modulação completa em MF e nos termos “ao” e “não eu” em AC.
Em seguida:[implicitação + trad. lit.]Mundo de haver[implicitação + modulação]Ambos desconsideraram o artigo indefinido presente no original. AC modula o sentido de “made”.is not a world of born não é mundo de nascido[transposição + implicitação + trad. lit.]não é mundo de ser[transposição + implicitação + modulação]Transposição obrigatória de ordem das palavras. Implicitação do artigo indefinido. Modulação em AC, coerente com a modulação do verso anterior.— pity poor flesh— piedade para a pobre carne[transp.]— piedade desta pobre[transp.]carneTransposição de número, com ambos mantendo a aliteração do original e AC usando “enjambemant” para incluir a palavra “carne” no verso seguinte.and trees, poor stars and stones,e para as árvores, pobres estrelas e pedras,[mod.. + trad. lit.]e árvores, pobres pedras e estrelas,[trad. lit. + transp.]Modulação em MF para acompanhar a transitividade do do termo “piedade” e transposição de ordem em AC.but never thisnunca para este[implicitação]mas nunca[trad. literal]desse[modulação]MF dispensa a conjunção adversativa e modulação em AC para seguir a transitividade de “piedade”. Ambos os tradutores respeitam o “enjambemant” do verso, mas ignoram a rima que justifica o uso deste processo.fine specimen ofótimo espécime de[trad. literal]ótimo espécime de[trad. literal] hypermagicalultraomnipotence.hipermágicaultraonipotência.[trad. literal]hipermágicaultraonipotência.[trad. literal]cummings fecha mais um verso com “enjambemant”. Os tradutores seguem o original à risca, porém descartam a tendência no Português de preceder o substantivo ao adjetivo, atitude que poderia ter sido tomada sem prejuízo do ritmo ou do sentido.We doctors knownós médicos sabemos[trad. lit.]nós médicos sabemos[trad. lit.] a hopeless case ifque um doente está desenganado quando[modulação]que um caso é sem remédio quando[modulação]Ambos os casos se empenham em extensas modulações que prejudicam o ritmo quando poderiam ter trabalhado com a expressão mais simples e literal “caso perdido”.— listen:… escuta aqui:[modulação]olhe:[modulação]Tanto em MF quanto em AC temos perspectivas diferentes do original, com pontuação mais próxima em AC e sentido mais literal em MF.there´s a hell of a good universetem um universo bom como o diabo[modulação]tem um puta de um vida boa paca[modulação]Modulação obrigatória: expressão original sem equivalente literal no Português.next door;aí do lado,[modulação]aí do lado:[modulação]Neste caso podemos perceber que muitas das soluções empregadas na tradução de AC foram resgatadas da tradução menos elaborada mas muito mais antiga de MF.let´s govambora[modulação]vamos lá[trad. literal]MF optou pelo uso, polêmico, de gírias.
Como podemos notar, apesar de mais ousada, a tradução de Augusto de Campos (um dos mais recentes trabalhos de tradução do poeta) ainda emprega várias das soluções encontradas na tradução de Mário Faustino, realizada na década de 1950.
Outro fato importante é que, muitas vezes, ambos os poetas fizeram uso de complexas modulações quando um termo mais literal e mais simples poderia facilitar a transposição do ritmo sem prejuízo algum para o sentido do poema.
Ainda assim, ambas as versões são de grande qualidade poética, transmitindo com clareza a vivacidade da escrita de cummings. É por isso que, a seguir, vamos propor uma nova versão para este poema aproveitando muitas das soluções empregadas nas versões anteriores, deixando para comentar os momentos em que a nova versão se diferencia das demais.Pena dessa besta ocupada, desumanos?Para construir esta nova versão do poema “pity this busy monster, maunkind”, adotamos os mesmos conceitos encontrados tanto em Mário Faustino, como nos irmãos Campos ou em Pound: traduzir a forma como elemento constitutivo do significado do poema, buscando resgatar ao máximo a melopéia, a fanopéia e a logopéia do original.
A grande diferença desta nova versão, como se poderá ver, já existe desde os primeiros versos. Trata-se, basicamente, de substituir termos empregados anteriormente que deixam de satisfazer alguma exigência rítmica, imagética ou lógica e de resgatar relações sugeridas pela forma do poema que não foram estabelecidas nas versões anteriores.
Assim, logo no primeiro verso, deparamo-nos com duas soluções e uma dúvida sobre qual das duas deveria ser escolhida. São elas:pena dessa besta ocupada, desumanos?
Oupena dessa besta ativa, inumanos?
Ambos os versos respeitam o jogo de assonância e aliteração de “pity this busy”. Mas o primeiro tem por vantagem estabelecer a conotação comercial de “busy” implícita em “ocupada” e não em “ativa”, além de manter a proximidade dos termos “monster” e “maunkind” a partir do emprego do prefixo “des” ao invés de “in”, dando uma conotação mais cruel ao substantivo, e da relação sonora entre “bESta” e “dESumanos”, numa tentativa de recuperar a aliteração da consoante m em “monster, maunkind”.
A vantagem do segundo verso são, sobretudo, as 10 sílabas poéticas, semelhantes aos 10 pés do original. Entretanto, foi somente no segundo verso que estabelecemos nossa escolha. Este, outro verso de 12 sílabas, sonoramente compatível com o primeiro, enfatiza a negatividade de “not” e o termo “doença”, em detrimento de “confortável”, como ocorre no original.
Nos dois versos seguintes temos mais um paralelo sonoro de 11 sílabas e o uso da segunda pessoa do singular (como na versão de Campos) para manter a ambigüidade referencial do artigo possessivo. Também preferimos a identidade sonora entre “safely beyond” e “salvas, longe”.
Nos 5° e 6° versos, poucas alterações e opção por termos mais simples como “navalha” e “cordilheira”.
A grande dificuldade surge com os versos:unwish through curving wherewhen till unwish
returns on its unself.
Aqui, o desafio consiste em manter o ritmo, cuja sílaba dominante é a décima, sem perder a força da imagem criada e seu extremo poder de concisão. Poderíamos adotar o verso:inquerer por curvo emquando até inquerer
Mas preferimos deixar implícita a idéia de “curvatura”, de “ondulação” contida em “curving”. Podendo ser percebida ainda no som do verso, mantendo assim a cesura na sexta sílaba, em paralelo com os versos seguintes, um decassílabo quebrado em dois versos de 6 e 4 sílabas poéticas respectivamente. Em seguida, mantivemos a tônica na 4a sílaba do 7o verso, sem prejuízo de sentido.
Os demais versos resgatam o “enjambemant” do original e recuperam a rima interna do 11o, com “trees” e “this” no original e “frutas” e “nunca” na nova versão. Outro ponto interessante é a inversão sintática com o adjetivo precedendo o substantivo de “hypermagical ultraomnipotence” mantida nas versões para o Português. Mas, no nosso caso, preferimos a ordem natural do idioma lusitano sem, com isso, ter que abrir mão do decassílado.
Também ganha destaque a modulação do termo “know” para “temos”, facilitando o emprego da expressão “caso perdido” no penúltimo verso. O dístico final ainda tem mais modulações com a interjeição “viu” substituindo “listen”, “puta” no lugar de “hell of” e “ao lado” para “next door”, todas tendo em vista resgatar a coloquialidade explícita que fecha o poema.
Finalmente, chegamos ao resultado:pena dessa besta ocupada, desumanos?
nunca! Progresso é uma confortável doença:
tua vítima (morte e vida salvas, longe)vive a grandeza de sua pequeneza
elétrons deificam de uma navalha
uma cordilheira; lentes estendem
inquerer por emquando até inquerer
voltar a seu nãosi.
Um mundo feito
não é um mundo nascido pobre carne
e frutas, pobres estrelas e pedras, mas nunca
pena dessa fina ultraonipotênciahipermágica. Nós, médicos, temosum caso perdido se viu, tem um
puta universo bom ao lado; vamos
Publicado em Sibila em 18 de março de 2009, escrito em 2006
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Bibliografia

AUBERT, Francis. Modalidades de tradução: teoria e resultados. In TradTerm 5.1. São Paulo: CITRAT/FFLCH/USP.
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Original Tradução de MF Tradução de AC Justificativa
pity — Piedade
[modulação]
piedade
[tradução literal]
O uso de travessão seguido de maiúscula em MF revela uma ligeira mudança de perspectiva do original.

Original

MF

AC

Justificativa

not. — não.

Original

MF

AC

Justificativa

your a

Original

MF

AC

Justificativa

plays with the bigness of his littleness brinca com a grandeza de sua pequeneza

Original

MF

AC

Justificativa

unwish through não desejo através de

Original

MF

AC

Justificativa

A world of made Mundo de feito

 Sobre Fabio Riggi

Jornalista, canhoto. Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 e 1959.