Skip to main content

Drummond e Leminski ainda valem?


Um par de botas vale tanto quanto Shakespeare.

Alain Finkielkraut

A projeção e a influência: ser drummondiano é estar morto

O gancho destes apontamentos surgiu de forma quase acidental, quando por acaso encontro uma entrevista dada recentemente por Régis Bonvicino a Paulo Werneck, editor da Ilustríssima, publicada na Sibila. Quatro perguntas, um pouco descontextualizadas, talvez, se não quisermos considerá-las tendenciosas ou propagandísticas, contra três respostas apenas, que parecem contestar a importância ou o valor dos próprios questionamentos feitos por Werneck. À primeira pergunta – “Somos todos drummondianos?” – Régis Bonvicino responde com poucas palavras, afirmando “ser drummondiano equivale a estar morto”. Se a entrevista fosse uma espécie de jogo no qual só pudéssemos responder sim ou não, nenhum ser pensante e falante do português responderia sim a tal pergunta. Considera Bonvicino o óbvio, que ser seguidor de um só poeta representa um empobrecimento na produção de um autor, visto que existem e existiram, no Brasil e no mundo, inúmeros poetas cujas obras podemos apreciar e dos quais podemos aprender muita coisa, e por eles, em termos de formas de escrita, nos deixarmos influenciar; ou poetas que também teriam muito a nos dizer – sem que precisemos nos referir, neste momento, à chamada “angústia da influência” de Harold Bloom, já que todo e qualquer discurso é formado por outros seus predecessores e, naturalmente, a nossa linguagem também, o que depreendemos de diversos estudos na área linguística e, sendo um texto literário ou poético, suas referências poderiam, inclusive, fugir quase que completamente de quaisquer tradições literárias para produzir uma poesia nova em sua linguagem, preferindo um diálogo com vozes extraliterárias, ou apenas fora da tradição literária mais canônica.

Voltando às palavras da entrevista com Bonvicino, nosso gancho, temos que considerar que, se fôssemos falar neste nosso texto sobre o empobrecimento poético através da influência de um único autor teríamos de observar que Drummond (pois penso também conforme assinala Bonvicino na referida entrevista) é muitos, não um, e não tem e nunca teve o monopólio da influência em todas as regiões do Brasil, em todas as faixas etárias, grupos sociais, etc., nem é possível dizer que toda poesia de hoje é uma resposta à sua poesia e, jamais, poderíamos considerá-lo o poeta de maior influência sobre os vates brasileiros de hoje, mesmo que possa ter sido o mais influente em algum momento no passado da nossa poesia. Dificilmente, também, podemos considerá-lo o maior poeta brasileiro de sua época, não precisando ir muito longe para encontrarmos poetas contemporâneos seus com maior consciência no trato da palavra como entidade feita de fonética, de som como matéria primordial que será utilizada pelo autor, ou do seu aspecto gráfico, icônico-visual.

Um exemplo da influência como geradora de marginalidade

Por falar em “angústia da influência”, ficando apenas no caso do Rio Grande do Sul, como exemplo, estado onde nasci e onde vivo, a sufocante influência de Mario Quintana há vinte anos era tão devastadora entre os poetas que, se algum deles dissesse “eu não gosto de Mario Quintana”, isto equivalia a no Brasil dizer, há alguns anos, falando de futebol a um interlocutor médio, “eu não vou torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo”; ou, recuando mais no tempo, gritar em praça pública “eu não acredito em Deus”. Você estaria prestes a passar por um linchamento moral. Você seria discriminado e marginalizado pela sua própria classe, a dos poetas.

Este prestígio de que gozava Quintana, mesmo quando a qualidade de sua produção entrou em uma fase de declínio qualitativo, a predominância de seu estilo interferindo no trabalho de outros poetas, permaneceu por longos anos e só começa a sofrer um certo recuo a partir do momento em que, na onda da luta pela redemocratização do Brasil, começa a alavancar-se uma poesia regionalista e predominantemente de crítica social e política, dentro de um movimento chamado “nativismo”, o qual extrapolava em muito os limites da literatura. Por outro lado, existiam os poetas marginais, atuando da mesma forma que os poetas pertencentes ao grupo da chamada “Geração mimeógrafo”, através do uso do mimeógrafo, livretos artesanais, caseiros, ofertados em alguns estratégicos locais públicos, outros meios, enfim, de “apresentar e veicular” suas obras, usando as palavras de Glauco Mattoso, um dos raros autores a tentar estudar o fenômeno daquela geração como literatura, não apenas como fenômeno sociopolítico. Tais palavras provêm do livrinho O que é poesia marginal, de Glauco (Brasiliense, 1981), no qual o autor demonstra que, de fato, o fenômeno da “Geração mimeógrafo” era um fenômeno nacional, havendo publicações artesanais de vários tipos, em diversos estados do Brasil, distribuindo-as da mesma forma, demonstrando também que estes “poetas marginais” não possuíam nenhuma unidade formal ou teórica, embora possamos concordar com Glauco que, apenas no geral, se existia um traço comum à maioria deles era “a desorganização, a desorientação  e a desinformação” produzindo uma poesia que  demonstrava “despreocupação com o próprio conceito de poesia e o descompromisso com qualquer diretriz estética” resultando em uma “espécie de displicência”. Os “marginais” gaúchos poetas estão, de fato, inspirados pela maneira “militante”, artesanal, de atuar de todos aqueles poetas  publicados no livro organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, 26 Poetas Hoje, em 1975, que, excluindo-se dois ou três, são considerados os “poetas marginais” por excelência (tais como Chacal, Cacaso, Ana Cristina César). No entanto, já a partir de meados dos anos 80 e antes, os poetas marginais gaúchos estão afastados da simplicidade formal dominante no grupo de “26 poetas”. Mais assemelhados em sua maioria ao trabalho de Roberto Piva, um caso à parte entre os poetas publicados na antologia de H. B. de Holanda, buscam outras formas de expressão verbal, muitos se aproximando da poética da Geração Beat e seus predecessores. Outros buscam o aprendizado do concretismo e, em seguida, de toda a bagagem que carregam os irmãos Campos & companhia, tal como fez Geraldo Carneiro, outra voz um tanto destoante na antologia mais representativa da Geração Mimeógrafo.

Já observávamos, com Régis Bonvicino, que afirma em Tantas Máscaras (Reconhecimento de uma Nova Poesia Brasileira) que “o movimento da ‘Poesia Marginal’, de 1975, pode ser visto como um dos desdobramentos do Tropicalismo (esta, por sua vez, neto do modernismo), sobretudo no Rio de Janeiro. A ‘Poesia Marginal’ explorou detalhes modernistas como o ‘poema-piada’ e resolveu precariamente o tópico da reinvenção de uma poesia coloquial”, pode-se observar, também, ainda conforme Bonvicino, que a maior parte da poesia marginal usou de um experimentalismo linguístico dispersivo, ingênuo, ante o qual acabaram por surgir algumas “respostas criativas individuais”.

Na segunda metade dos 80, ainda, começa a surgir entre estudantes do Rio Grande do Sul a figura meteórica do Paulo Leminski poeta, uma voz inconfundível, para não usarmos a palavra original, sempre contestável, que mistura um pouco da ironia e certo desleixo coloquial da Geração Mimeografada a um muito de rebeldia beat e às propostas formais do concretismo, estas também começando a despertar interesse no público em função da música de compositores como Arnaldo Antunes, ainda participante do grupo de rock “Os Titãs”. E Leminski, aliás, dominou com precisão, como poucos, as técnicas de escrita dos concretistas, a qual aliou a liberdade linguística na exploração do coloquial, situando-se na poesia – como o principal nome daquela “resposta criativa” mencionada por Bonvicino.

Seguindo o nosso diálogo com a breve entrevista de Régis Bonvicino, este chega a silenciar sobre uma das perguntas, pois o entrevistador parece não estar compreendendo a crítica feita por Bonvicino. Resumindo a pergunta, “A herança de Drummond gerou, de alguma forma, uma poesia conservadora? Qual é o caráter desestabilizador da poesia de Drummond?”. Eis aí uma pergunta que, realmente, não necessitava de uma resposta, já que Bonvicino encerrara a contestação anterior com as palavras “acho que nem mesmo Drummond é tão ‘imitado’ quanto sua pergunta sugere”. Além disso, observação minha, formalmente falando, em termos de linguagem, não há nada de “desestabilizador” na poesia de Drummond, a não ser, talvez, no conteúdo, aquilo que não costumo analisar. Poderia haver alguma inovação na década de 30, com aquela sua pedra no meio do caminho, que saiu na Revista de Antropofagia em julho de 1928 e contribuiu para o escândalo geral que já era o próprio movimento antropofágico, podendo ser o poema, inclusive, um precursor da própria poesia concreta. No entanto, naquele momento, muitas inovações, até mais radicais, como na poesia e prosa/poesia de Oswald de Andrade, já haviam chocado o público desde um primeiro momento do modernismo, Drummond já não poderia ter a suprema glória de todo aquele que sonhava em ser um vanguardista legítimo, a de deixar todo e qualquer receptor absolutamente estupefacto (talvez nem o desejasse) e, posteriormente,  se a sua poesia fosse de fato desestabilizadora, haveria muita polêmica em torno do seu nome, em função da sua estética, como haveria em torno do nome do grupo Noigandres e também de Paulo Leminski.

Por fim, ainda atendo-nos à curta confabulação de Werneck com Régis, produtiva apenas em função das curtas respostas que nos dizem muito, parece-nos que Bonvicino está fazendo ali uma crítica, e um pouco mal-humorada, a algo que poderia incluir uma analogia com a própria atuação do entrevistador Werneck naquele momento.  Atendo-nos à resposta de Bonvicino na última pergunta de Werneck, a qual diz respeito mais diretamente ao tema sobre o qual gostaríamos de conversar aqui, tal questionamento de Werneck parece ser uma acusação à poesia feita pelos verdadeiros poetas de hoje, como o próprio Bonvicino, afirmando que à época de Drummond esta poesia poderia ser compreendida por qualquer leitor comum, “culto, mas não especializado”. Ou seja, Paulo Werneck chega onde demonstrou pretender chegar com a pergunta anterior, aqui não citada ainda, com a qual procura atribuir o adjetivo de “hermético” a toda poesia que entende como “experimental”: uma velha adjetivação dos tempos em que chamavam o concretismo de vanguarda e qualificavam as vanguardas como “elitistas”.

De fato, como já dissemos, concordando com as palavras de Bonvicino em sua entrevista, há muitas facetas no próprio Drummond, não da mesma forma que isto ocorria com Fernando Pessoa, naturalmente, e, podemos acrescentar, copiando fielmente a fala de Bonvicino, que “Existe poesia experimental de fácil leitura e há poemas não experimentais de Drummond de difícil leitura”.  Mas Werneck pretende, na realidade, que se alcance voltar a uma suposta “Idade de Ouro”, na qual os poetas buscavam e atingiam a comunicação com o público, havendo uma total sintonia, empatia, comunhão com este. Propõe, então, que “a poesia”, toda ela, está encerrada em um “nicho”. Desconheço que algum dia tenha existido esta fase, esta “Idade de Ouro”, no Brasil. Diferentemente de países como a Espanha, onde a poesia da época de Lorca era recitada na rua e atraía multidões, ou do Irã, onde desde os tempos da Pérsia a poesia é a arte mais praticada, ou do Chile e da Rússia, onde a poesia sempre assumiu extrema importância, a poesia jamais obteve muita repercussão além de estampar os diários e cadernos de meninas do Ginásio e normalistas com palavras de amor, até a década de 60 ou 70, no máximo. Muitos sonetos de amor.

Régis Bonvicino, no entanto, através de sua reposta, demonstra muito lucidamente entender que, a partir do advento da popularização da internet, não se pode mais falar em “nichos” para a poesia. O poeta-crítico fala na existência de um “boom” da poesia no Brasil, o que talvez não seja exatamente uma realidade. Pode estar ocorrendo, simplesmente, que muitas pessoas com algum anseio de expressar suas ideias, sentimentos, sensações, inclusive meras opiniões (nem sempre com muita arte) já estivessem escrevendo há muito tempo, tendo encontrado na rede internacional de computadores uma ferramenta poderosíssima para mostrar o seu trabalho (ou seu mero passatempo sem algum esforço para atingir um texto de qualidade, e quanto menos excelente). Tal poesia que, no geral, antes que a qualidade, busca um caminho alternativo para engendrar um público ou apenas expressar-se perante os amigos e criar novas amizades, de certo modo poderia ser considerada uma “poesia marginal”, tendo em comum com a antiga Geração Mimeógrafo o fato de utilizar um suporte alternativo para a sua divulgação, sendo feita por poetas ou proto-poetas independentes e autônomos em relação à grande mídia (como toda poesia) e ao mercado editorial, quando não indiferentes a estes, não encontrando um motivo para a sua utilização.

No meio do caos informacional que representa a internet, entretanto, teremos muita dificuldade para separar o joio do trigo, embora possamos dizer que a poesia esteja aí, buscando e encontrando caminhos válidos para ser lida, vista ou ouvida, enfim, divulgada e debatida.  A respeito,  muito diz o texto de apresentação do blog de Jerome Rothenberg, “poems and poetics”, o qual ele intitula, sugestivamente, “A Prospectus”: “In this age of internet and blog the possibility opens of a free circulation of works (poems and poetics in the present instance) outside of any commercial or academic nexus. I will therefore be posting work of my own, both new & old, that may otherwise be difficult or impossible to access, and I will also, from time to time, post work by others who have been close to me, in the manner of a freewheeling on-line anthology or magazine. I take this to be in the tradition of autonomous publication by poets, going back to Blake and Whitman and Dickinson, among numerous others.” É interessante notar que Rothenberg aponta para a mesma autonomia dos que pretendemos denominar de “marginais” como uma longa tradição na melhor poesia de língua inglesa, tradição esta que estaria recebendo um novo impulso através do uso da rede internacional de computadores.

Portanto, se olharmos com clareza para o tempo presente, logo percebemos que a poesia não se encontra oculta, restrita a círculos especializados, está em circulação e, somente (considerando que o livro de poesia impresso já não serve para captar o interesse de um grande número de pessoas) a ela carece espaço nos jornais e televisão, veículos que ainda parecem interferir e condicionar mais a formação da opinião e do gosto público, num sentido behaviorista, inclusive. Isto já nos parece normal, e pareceria uma perda de tempo reclamar desta situação. Todo tipo de discussão intelectual dificilmente chega aos veículos tradicionais de comunicação de massa. Ocorre o quê? Talvez não exista, em realidade, um espaço para a inteligência na grande mídia. Ou melhor, não sei se um veículo como a televisão, por exemplo, nos moldes de hoje, seria um espaço adequado para a discussão sobre poética. Temos canais sobre música, por exemplo, mas não canais que nos ensinem como fazer música. Ao público, isto não interessa. Interessa ouvir e apreciar a música. De outro modo, a televisão se afastaria de seus objetivos, antes de nada comerciais.

Por outro lado, quando se inventa um espaço para a poesia, caso que nos interessa, dificilmente se verá uma discussão crítica séria. Bonvicino observa que estes veículos “mais institucionalizados”, bem como as editoras, que não investem nos autores com o seu próprio dinheiro, não possuem especialistas em literatura e, podemos observar, seus editores compreendem menos ainda a poesia; por este motivo Régis fala em uma “deseducação geral”, provavelmente gerada por esta situação da predominância informativa da televisão e do jornal, os quais não assumem compromisso algum com o pensamento, com a literatura e, menos ainda, com a poesia, já transformada em uma manifestação marginal de nossa(s) cultura(s).

Pouco acompanho a grande mídia de maior alcance popular, porém, é possível observar facilmente a veracidade da afirmação de Bonvicino: mesmo um gigante em audiência como a Rede Globo, que poderia aproveitar seu “poder de fogo” para transformar aquele quadro da deseducação referido pelo poeta paulista, se inclui neste perfil.

Sucesso e marginalidade em poesia no Brasil recente

Dando um grande giro no assunto, para voltar à temática que aqui nos interessa, Carlos Drummond de Andrade, de fato, em um dado momento, atingiu uma popularidade bastante significativa, talvez em função de certa simplicidade em alguns exemplos de sua poética, um tipo de “afrouxamento” que jamais encontraríamos em um poeta como João Cabral de Mello Neto e, mesmo, em Mario Quintana (antes da sua “decadência”), outros dois grandes nomes da poesia de seu tempo, embora o primeiro, já naquela época, não tivesse possibilidade, com sua poesia mais característica, de atingir a um público médio, somente o conseguindo em baixo grau, quando escreveu poemas moldados em padrões de cantares populares, tal qual “Morte e Vida Severina”. Isto, diferentemente do que ocorre com o poeta mineiro, bem como com o gaúcho, o transformou no que se costuma chamar de “um poeta para poetas”, aquele que Maiakóvski, de outra forma, teria definido como uma “usina” ou “estação”, tema ao qual voltaremos mais adiante. Por alguns motivos semelhantes ao que ocorreu com Carlos Drummond de Andrade, encontraremos os livros do poeta curitibano Paulo Leminski atingindo a um grande público, na máxima medida que a poesia poderia atingir ao público leitor, naquele determinado momento. Este Leminski controvertido, visto por muitos como um poeta irregular em sua produção, em cuja poesia encontraríamos altos e baixos, muitíssimo mais contestado que Carlos Drummond de Andrade, seu antecessor em termos de projeção nacional, o qual raríssimas vezes é lembrado por semelhante irregularidade na qualidade da sua produção poética. A crítica, normalmente, saudará mais à prosa inventiva de Leminski. Mas este Leminski é o mesmo poeta que participou das páginas da revista Invenção, do núcleo concretista de São Paulo, e não há como negar que o curitibano carregou consigo toda a bagagem técnico-teórica daquele grupo de poetas para chegar à sua produção de uma poesia “mais leve”, menos sisuda, coloquial como a dos ditos poetas marginais, no geral, e de acordo com o projeto modernista da década de 1920. E parece ser um fato que Leminski possuísse aquilo que deveria ser o maior desejo dos poetas concretistas, mas que de fato nunca possuíram, que seria o “conhecimento exato (ou sentimento) dos desejos do grupo o qual representa” como apregoava o recém citado Maiakóvski ser uma das exigências para realizar um bom trabalho em poesia, ou talvez uma poesia revolucionária, no seu “Como fazer versos”.

E considerando, para desespero dos seus críticos, os momentos mais significativos da poesia de Leminski, poderíamos enquadrá-lo, dentro da conhecidíssima distinção que Ezra Pound faz dos diversos tipos de criadores de poesia (sendo as principais as de inventor, a de mestre e a de diluidor), como o mais popular mestre difusor das técnicas do concretismo. Sua intenção, ao se afastar do racionalismo concretista, além de ser a de criar um público para uma proposta ainda vista como de vanguarda, ou experimental, abocanhando os leitores da poesia marginal, era atingir uma expressão livre, nas suas palavras “a ampliação dos espaços da imaginação e das possibilidades de novo dizer, de novo sentir, de novo e mais expressar”, que Leminski acreditava estar já presente na poesia concreta. Não há dúvida, acrescenta-se, diante do que o curitibano demonstrou, ao longo de sua obra poética, que ele próprio promoveu esta ampliação de espaços e daquelas possibilidades, através de um rico “reservatório de palavras necessárias, expressivas, raras, inventadas, compostas, etc.”, usando mais uma vez a teoria de Maiakóvski, mas também através de combinações inusitadas de palavras e deslocamentos de sentido ou de classe gramatical, por exemplo. No entanto, de fato, até onde acompanhei, pareceria haver certo equívoco na interpretação que Leminski faz da poesia concreta clássica, que não procurava, de forma alguma, promover “um novo sentir” e um “novo e mais expressar”: ele estaria mais correto se dissesse que o concretismo desejava promover um “estar afinado com um novo pensar” e promover um “novo e mais comunicar”.  Ou seja, Leminski deseja (e consegue) expressar-se com criatividade, um tanto afastado do racionalismo concreto, atingindo em seus poemas, inclusive, por vezes, feições neodadaístas como em poemas como “Signo ascendente”, ao mesmo tempo que atinge a comunicação com um público que era carente em termos de competência linguística para a leitura de certos autores; público que, a estas alturas, chegando à década de 1980, já incluía mesmo os leitores (ou, por que não dizer, não leitores) das classes média e alta, alienados pela educação deformante do sujeito imposta pela ditadura militar dos golpistas de 1964. Leminski, assim, atingia algum objetivo proposto, por exemplo, pelo próprio Ferreira Gullar em seu “Subdesenvolvimento e Vanguarda”, o de chegar ao “povo”, enquanto fugia à causa do martírio de um Maiakóvski, a de ser um “incompreendido pelas massas”, razão pela qual o poeta oficial da Revolução Russa acabou sendo perseguido – por mais que tenha ele se esforçado a fim de simplificar a linguagem de sua poesia, afastando-se de um inicial parentesco com um inventivo simbolismo – bem como foram perseguidos todos os poetas de vanguarda na recém-criada União Soviética, durante o regime de Stálin, chegando consequentemente à morte, seja por uma bala suicida diante das pressões sofridas, seja por um assassinato político real.

Já que queremos falar de uma poesia que não está atrelada a verdadeiros “nichos”, como pretendeu Werneck em sua entrevista com Régis Bonvicino, podemos ainda levar mais adiante as observações sobre o poeta curitibano, que conseguiu levar a poesia a um público considerável, simpatizante que era da “poesia de rua”, aquela que buscava um contato direto entre autor e leitor, à qual se convencionou chamar de poesia marginal e que, utilizando-se porém de um coloquialismo exclusivamente  urbano, como o desta poesia, aproxima-se também da poesia modernista de 22 e, indo mais longe, de ideias como as de Kurt Schwitters  –  recolhendo o “lixo verbal”, o “Kitsch da linguagem verbal diária” (Haroldo de Campos em “A arte no horizonte do provável”) e transformando-o em poesia: slogans, ditos populares, provérbios, etc. Nisto, parece estar próximo, na verdade, de uma característica quase geral entre todos os poetas das vanguardas iniciais e tardias, que pretendiam transformar em poesia tudo aquilo que, antes delas,  era considerado matéria apoética (“a poesia que não se permite certos temas é uma poesia inferior” – dizia, por exemplo, Paul Éluard, embora não se atendo à questão da matéria verbal usada, como o fez o, diríamos, pós-dadaísta Schwitters); e Leminski também parece próximo de todas aquelas tendências que a crítica Marjorie Perlof chama de “retaguarda” (porque pretendem/pretendiam consolidar as conquistas das vanguardas). De minha parte, prefiro, no entanto, o termo usado por Cláudio Willer, Segunda Vanguarda, considerando que a proposta desta retaguarda de Perlof também é levar a inovação em poesia mais adiante, e que alguns destes grupos, buscando a arte e o espírito das vanguardas, conseguiram desencadear, em certo momento, uma grande revolução, como pretendiam e não conseguiram as vanguardas históricas, com exceção da vanguarda russa, sendo esta revolução das Segundas Vanguardas, relacionada à norte-americana Geração Beat, desencadeadora, no entanto, de uma revolução de costumes, moral, basicamente (a dos anos de 1960), que conseguiu influenciar, minimamente, a política mundial. Uma revolução, até o momento, não revertida.

Leminski, herdeiro e participante de todo este contexto da contracultura, no entanto, é criticado por aquela aproximação com o lado mais “desleixado” da poesia de 22, o piadismo, etc., e de certo superficialismo de alguns poetas marginais mais conhecidos, aqueles que conseguiram ir mais longe neste descaso com a matéria-prima da poesia verbal.

É fato que a quase totalidade do público com sensibilidade para a leitura crítica de poesia, na época, os 70, início dos 80, ditadura militar, era o da poesia marginal: ela era “levada” diretamente pelo poeta até o público, que os acolhia num ato rebelde de solidariedade. Leminski, por algo natural da sua personalidade e da sua poesia, conseguiu conquistar este mesmo público. E, conforme já observamos anteriormente com relação aos “poetas da internet” (como eu próprio) podemos, aqui, entender poesia marginal em um sentido muito mais amplo que o historicamente aceito. Se um grupo de poetas que conhecemos como “Geração mimeógrafo” parece ter se autoempossado do termo, ou mesmo se passou a ser reconhecido contra a sua vontade como o grupo oficial dos “poetas marginais”, por antonomásia, temos inúmeras razões para expandir o uso desta expressão, tornando-a um conceito mais amplo, ou de aplicar o conceito de marginalidade a toda poesia feita com base nas evoluções do gênero artístico.

Tal grupo, setentista e oitentista, possuía certa unidade formal (ou informal), escrevendo praticamente todos dentro de um mesmo estilo, e se concentrava no centro do país, principalmente no Rio de Janeiro. É fato, no entanto, que o poeta marginal da época atuou também fora daquele circuito e da ponte aérea Rio-São Paulo, conforme já havia comentado Glauco Mattoso. Daí que muitos poetas produziram de forma “marginal” trabalhos em diferentes estilos, sob as mais diversas influências. Seria possível dizer que a poesia marginal foi uma necessidade imposta pela ditadura e que ocorreu sob diversas maneiras de escritura ao longo do país. Posso citar poetas que foram marginais fora daquele círculo, escrevendo de forma muito diferente daqueles mais conhecidos na época, como Ronald Augusto do Rio Grande do Sul, que hoje dispensa apresentações, poeta que perambulou também pela Bahia, e Bento Nascimento, em Santa Catarina, que sempre viveu na mesma residência, na cidade de Itajaí, até seu falecimento em 1993, e publicou apenas um livro em vida, em parceria com o professor e poeta Antônio Carlos Floriano (Celacanto, 1989). Praticando a divulgação da poesia via cartaz, por exemplo, Bento desenvolvia um estilo às vezes próximo de um Manuel Bandeira, “uma estética ao natural”, raras vezes uma dicção drummondiana, algumas vezes se percebem ecos de uma poesia filosófica à moda de Pessoa, às vezes era econômico como Oswald. Enfim, marginal como fosse, procurou aprender tudo que era possível do verdadeiro modernismo brasileiro:

quando vou ao supermercado
em sua companhia
a cidade aprende alegria

arroz, fósforo
café
….

Exercito a minha sina adiando os compromissos.

Dou sumiço em certas responsabilidades,
engaveto problemas e fico horas sem tempo para nada.

A vida é um anzol, vivo com água na boca.

Ivo tinha uma campina de cravos
na cara.

Tinha época que aquilo se dilatava
arroxeava..
e eram mais crisântemos.

Ivo nunca ganhou uma rosa
e muita coisa que sentia
nunca floresceu para o mundo.

Tudo ficou à flor da pele.

Como podemos notar, a qualidade do trabalho de um poeta, nos anos ainda posteriores àqueles chamados “anos de chumbo” da ditadura militar de 1964, não garantia a sua publicação, no caso de Bento a maior parte dos seus poemas sendo publicados em livro apenas após a sua prematura morte.

Findo o momento da chamada Geração Mimeógrafo, muitos poetas, intelectuais, cartunistas, etc., sem conseguir publicar os seus trabalhos de outra forma, e ainda diante da censura do regime de 64, passaram a  produzir e distribuir os chamados “fanzines”, muitos deles especializados em poesia, embora estivessem se apropriando de um termo mais relacionado às histórias em quadrinhos, vindo de “fã”, sendo os primeiros fanzines criados por fãs de das chamadas HQ. Estes fanzines ou “zines”, indo mais adiante, continuavam sendo feitos em mimeógrafos na década de 80, e em reprografia, principalmente, em seguida. O catarinense Bento Nascimento, acima citado, por exemplo, foi muito publicado, mesmo que às vezes não tivesse conhecimento do fato, em fanzines de toda a região sul. Durante os anos 90, já afastados do espectro da ditadura militar, embora ainda convivendo com as mazelas daquele período nebuloso, os fanzines continuaram a produzir uma cultura autônoma, independente, porém agora fora dos meios “usuais” de publicação mais por motivos econômicos ou por falta de oportunidades do que políticos, propriamente, apesar de ser provável que a opção política de um indivíduo possa levá-lo, muitas vezes, à carência de meios.

Observemos que o fenômeno de buscar formas alternativas de publicação, como fizeram estes tantos marginais brasileiros, não é nada novo e se configura em escala internacional, normalmente em função de repressão política, como foi o caso também do samizdat sob os regimes stalinistas da Europa Oriental. Na época, década de 1950, apesar da tentativa de Nikita Khrushchov de abertura no degenerado regime soviético, ocorreu uma reação negativa por parte de outras autoridades e, voltando a forte censura do regime de Stálin, toda a literatura proibida passou a circular através de cópias datilografadas ou manuscritas, gerando desta forma, no leste europeu, toda uma literatura publicada e distribuída pelos próprios autores, que esperavam que aquele que recebesse uma cópia de um livro fizesse outras cópias e as repassasse a outros leitores. Autores como o Nobel de Literatura de 1987, Joseph Brodsky, por um longo período, necessitaram recorrer ao samizdat como única forma de publicar os seus livros.

Já a tradição da procura de vias alternativas no Brasil para a produção e distribuição cultural permaneceu até que a internet se consolidasse como tecnologia e veículo de comunicação estável, fato que não se deu antes do final dos anos de 1990, e que teria proporcionado aquele “boom” da poesia de que nos falou Régis Bonvicino, ou, reitero, apenas trouxe à tona aqueles poetas ou proto-poetas que estavam no completo ou quase completo anonimato. Evidentemente, da mesma forma que já ocorria com os “zines” dos anos 80 e 90, vieram a aparecer poetas que, no geral, produziam e produzem um trabalho de baixa qualidade, porém agora procurando um espaço de divulgação ou mera expressão em meio a um verdadeiro caos informacional, uma muito maior babel do que aquela da época em que a poesia independente dos marginais circulava de mão em mão.

Em meio à confusão de conceitos desta multiculturalidade de uma já megalópole chamada poesia onde, queiramos ou não, temos que conviver todos os poetas, por mais diferentes que sejamos uns dos outros, desde que Platão conseguiu de fato o seu intento de nos expulsar da sua ideal república, o conceito de poesia marginal, como vemos, poderia ser ampliado ainda mais. Então, o que é poesia marginal? Uma velha pergunta, mas que importou a poucos poetas, título de um único livro, bastante singelo. Talvez este quadro de pobreza teórica com relação ao conceito de “marginalização em poesia” mudasse se estes mesmos poetas pudessem perceber que a poesia, bastando para isso ser um pouco mais complexa em sua linguagem, seu modo de comunicar, bastando que ela seja ímpar, mesmo sem pertencer a nenhuma tendência de “vanguarda”, começa a correr o risco de se tornar um produto cultural marginal. Aliás, pensando na analogia com Platão, acima exposta, logo concluiremos que toda a poesia pode ser considerada um produto cultural marginal na história mais contemporânea.

Aqui, já temos concluído que não se pode aplicar o “rótulo” de marginal à poesia produzida somente pelos autores mais conhecidos dos 26 poetas hoje de 1975. Que conceito amplo de poesia marginal poderíamos forjar, desde que isto seja relevante? Numa época de internet como tecnologia estável e plenamente funcional não é difícil mostrarmos nossa poesia ao mundo, e isto nos dá aquela impressão citada por Régis Bonvino de que vivemos uma explosão nesta área, uma proliferação de poetas, em quantidade, não em qualidade. É o fato de não publicar em livro que cria um poeta marginal, então? Também não creio. O livro de poesia, hoje, no Brasil, conforme já sabemos, não atinge o grande público e, no passado, poucos poetas atingiram tal façanha.

Só para ficar no estado do Rio Grande do Sul, onde vivo, temos o caso recente de um poeta que produziu um trabalho em livro bastante interessante (Minuto diminuto, 1990), chamado Flávio Luís Ferrarini. Muito elogiado por alguns críticos, como o controvertido José Paulo Paes em seu “Os perigos da poesia e outros ensaios (1997)”,  o poeta conseguiu criar bons poemas, fora dos padrões mais comuns da poesia mais conhecida, porém vivendo em certo isolamento geográfico, longe  das nossas “arcádias literárias”, na cidade de Flores da Cunha, e hoje se volta mais para a crônica de jornal, trabalhando em jornais pequenos do interior do Estado. Esta é, aliás, uma tendência de poetas que produzem um trabalho diferenciado, partir para outras áreas de atuação. Há, inclusive, aqueles que abandonaram a poesia sem haver publicado um poema sequer, indo trabalhar nas mais diversas áreas, e não devemos nos surpreender se encontrarmos um gênio da poesia trabalhando, por exemplo, como vigilante noturno, como foi o caso do revolucionário poeta russo Velimir Khlébnikov. Ou mesmo na cadeia, como um Villon. O trabalho de Ferrarini, certamente, é um destes trabalhos que não teve uma repercussão crítica merecida e, naturalmente, em se tratando da sua poesia, não teve o retorno comercial devido (embora, diante de tudo que exponho, eu já possa me perguntar se a poesia deva se transformar em um produto vendável).

Sem considerar as proporções de cada um, Flávio Luís Ferrarini, que era ou é um poeta promissor, pode se sentir como um Mario Quintana sonhando em participar da ABL, mas sendo rejeitado por algum motivo insabido que não tem relação com a qualidade literária, pois Ferrarini espera por um maior reconhecimento e, mesmo que possa ser considerado por um leitor atento como um poeta menor (se pensarmos nos maiores), está muito longe da mediocridade que verte aos milhares em páginas de outros livros e da internet, como podem atestar tais versos, de Minuto diminuto:

As casas na cidade pequena
São vacas deitadas à sombra
As ruas são cobras tristes
Esticadas ao sol                                

Na cidade pequena as línguas
São enxadas que carpem intimidades
Como cobras tristes
Tristes como as vacas deitadas

Na cidade pequena as intimidades
São roupas esticadas no varal
Confissões de pequenas cobras
Sobre as vacas deitadas

Os rostos na cidade pequena
São molduras tristes
Como cobras à sombra
Das janelas das vacas deitadas

Na cidade pequena são os postes
Que vigiam as cobras das vacas
Se a língua neles encosta
Os postes desabam

Desabam os postes na cidade
Pequena de vidas menores
Sobre as cobras tristes
À sombra das vacas deitadas

(“Cidade pequena”, Minuto diminuto, 1991)