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Kafka ou Sob o Signo de Odradek

Dizem alguns que a palavra odradek provém do eslavo, e procuram determinar a formação da palavra com base nesta afirmação. Já outros acreditam que ela provenha do alemão, do eslavo ela teria apenas a influência. A incerteza das duas interpretações autoriza entretanto a supor que nenhuma delas acerta, mormente porque nenhuma nos leva a encontrar um sentido para a palavra.

Como é natural, ninguém se ocuparia de tais estudos se não existisse realmente um ser chamado odradek. A primeira vista, parece um carretel de linha, achatado e estreliforme, e aparenta, de fato, estar enrolado em fio; é bem verdade que os fios não serão mais do que fiapos, restos remendados ou simplesmente embaraçados de fio gasto, da mais diversa cor e espécie. Mas não se trata apenas de um carretel, pois no centro da estrela nasce uma vareta transversal, de cuja extremidade sai mais outra, em ângulo reto. Com auxílio desta segunda vareta, por um lado, e duma das pontas da estrela por outro, o todo se põe de pé, como sobre duas pernas.

Seria o caso de se acreditar que este objeto, outrora, tenha tido alguma finalidade, que agora esteja apenas quebrado. Mas ao que parece, não é o que se dá; ao menos não há sinal disso; não se vê marca alguma de inserção ou de ruptura, que indicasse uma coisa destas; embora sem sentido, o todo parece completo à sua maneira. Aliás, não há como dizer coisa mais exata a respeito, pois Odradek é extraordinariamente móvel e impossível de ser pego.

Ele vive alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no vestíbulo. Às vezes desaparece por semanas inteiras; provavelmente se muda para outras casas, mas é certo que acaba voltando à nossa. Cruzando a soleira, se ele está encostado no corrimão, lá embaixo, às vezes dá vontade de lhe falar. Não se fazem naturalmente perguntas difíceis, ele é tratado – já o seu tamaninho nos induz – como uma criança. Pergunta-se “qual o teu nome?” Ele responde, “Odradek”. “E onde você mora?” Ele responde, “residência indeterminada”, e ri; mas é uma risada, como só sem pulmões se produz. Soa, quem sabe, como o cochicho de folhas caídas. De hábito, este é o fim da conversa. Mesmo estas respostas, aliás, não é sempre que se obtém; com frequência ele fica mudo, por longo tempo, como a madeira que aparenta ser.

Inutilmente eu me pergunto, – dele, o que será? É possível que ele morra? Tudo que morre terá tido, anteriormente, uma espécie de finalidade, uma espécie de atividade, na qual se desgastou; não é o que se passa com Odradek. Será então que no futuro, quem sabe se diante dos pés de meus filhos, e filhos de meus filhos, ele ainda rolará pelas escadas, arrastando os seus fiapos? Evidentemente ele não faz mal a ninguém; mas a ideia de que além de tudo ele me sobreviva, para mim é quase dolorosa.1

Fábula às avessas, a “Tribulação de um pai de família”, de Franz Kafka, em suas poucas linhas, opera por meio de uma lógica desconcertante. Se nas fábulas tradicionais, os seres inanimados ganham vida e protagonizam uma história de cunho edificador e moralizante, nesta obra-prima de Kafka tudo se passa de maneira inversa. A narrativa se constrói na medida em que a humanização de um ser é apresentada por meio da sua desumanização. Uma técnica de narrar em que o esvaziamento existencial de um personagem, que percorre toda a história, encobre outro personagem que fica, por assim dizer, escondido nas entrelinhas. Neste caso, a moral da história que nos é apresentada é ácida e corrói as estruturas essenciais de poder e dominação por dentro. Talvez mais que isso, trata-se de uma moralidade que é quase que autofágica.

Odradek é um personagem singular. Existe na medida de sua quase inexistência. Ou, pelo menos, da sua insignificância. Tudo nele aponta para a indeterminação, nos cinco parágrafos que compõem a totalidade da história.

Logo de início, no primeiro parágrafo, é a palavra “odradek” que é alvo de investigação. Por meio de uma linguagem quase acadêmica, como se a questão se reduzisse a um problema etimológico, uma disputa sobre a origem da palavra – seria de proveniência eslava ou alemã? – é apresentada, para no mesmo parágrafo, ser afastada. Qualquer que seja a origem da palavra “odradek”, na medida em que estamos em campo incerto, como se faz questão de sublinhar, nada nos autoriza a encontrar um sentido para a palavra. A conclusão a que se chega é que a palavra “odradek” é indeterminada e, de qualquer forma, o que dizem alguns sobre ela não pode ser muito preciso.

É no parágrafo seguinte que é anunciada a efetiva existência de um ser chamado Odradek. Até aqui, tínhamos apenas um confronto entre as correntes interpretativas da etimologia do termo, mas agora, trata-se de falar sobre este ser-objeto-criatura que, realmente, tem existência. Odradek é descrito com perfeição, no limite de cada detalhe, mas isso é feito para nos enganar. Tudo é muito preciso nesta descrição, mas se, de fato, tentarmos imaginar este ser, encontraríamos severas dificuldades. É justamente desta precisão que decorre a nebulosidade da figura de Odradek. Agora é o próprio ser-objeto, este tal de Odradek, que é indeterminado. O que nos causa espanto, na medida em que ao fim do parágrafo lemos que Odradek pode se por de pé, como sobre duas pernas, ou seja, ele tem algo de vivo, apesar de ser apresentado de maneira indefinida.

É no terceiro parágrafo que verificamos que Odradek não tem uma função ou finalidade. Isto nos é mostrado na medida em que se questiona se ele não teve uma finalidade no passado, uma vez que, agora, dá a impressão de estar quebrado, apesar de estar completo à sua maneira. Como Odradek é extremamente móvel e difícil de ser pego, a indeterminação de sua função atual está em pleno acordo com o caráter fugidio com que é apresentada a sua existência e a palavra que a nomeia. De qualquer modo, é anunciado que não há como dizer coisa mais exata a respeito, o que nos induz a entender que Odradek é ser perfeitamente inútil.

Quando no quarto parágrafo se fala a respeito das moradas de Odradek, verificamos que o personagem foge aos espaços: Ele vive alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no vestíbulo. Também muda, provisoriamente, para outras casas. Sua habitação, portanto, é indefinida. É nesse parágrafo que verificamos que Odradek se assemelha a seres humanos, afinal, pode falar. No entanto, sua fala é mais que indeterminada, é idiota também. Duas perguntas ocasionais e hipotéticas são feitas, perguntas protocolares, meio policialescas: qual o seu nome? e onde você mora? O curioso é que a primeira pergunta, a pergunta sobre o nome de Odradek, é justamente uma tentativa de definição do personagem, uma vez que este ser pode ter um nome. Mas sua resposta corresponde justamente à palavra indefinida do primeiro parágrafo: “odradek”. Ele não tem direito nem a um nome próprio que tenha um significado, pois já ficou estabelecido, logo nas primeiras linhas da história, que independentemente da origem etimológica do termo, não encontramos um sentido para a palavra. A pergunta sobre o local onde mora recebe, então, uma resposta já intuída: residência indeterminada. Com um nome sem nome e uma moradia sem endereço fixo, mesmo o discurso de Odradek é indeterminado, quase sem sentido. Seu corpo volta a ser impreciso. Tem vida, mas mesmo a sua alegria (sua risada) somente é expressa como sem pulmões se produz. Na totalidade de seu ser, há algo de menos corpo em Odradek.

No último parágrafo do texto, percebe-se que Odradek também não está determinado pelo tempo. A questão aparece na passagem que se questiona se ele teve, no passado, vida. E, também sobre o julgamento de seu futuro, em que se tem a impressão de que ele de algum modo sobreviverá. Atemporal, Odradek não demonstra ter certidão de nascimento e tudo leva a crer que mesmo a morte, inexorável, também não pode afetá-lo.

A indeterminação e a insignificância de Odradek condizem, perfeitamente, com seu caráter. Como se coloca neste quinto parágrafo, Odradek evidentemente não faz mal a ninguém. É inofensivo, portanto, e pode passar perfeitamente despercebido.

Talvez pudéssemos passar ilesos pela história de Odradek. À primeira vista, trata-se de uma construção de um personagem vazio. Um quase nada. Caminhando pelos breves parágrafos desta pequena obra, tudo parece ser indeterminado. A palavra “odradek”, o ser Odradek, a função-finalidade, o discurso, os espaços, o tempo, o caráter de Odradek constroem um personagem que só se determina em seu caráter fugidio. Mas, quem sabe seja o caso de lembrarmos que existe um verbo tcheco que se aproxima muito ao nome deste ser absolutamente improvável: “odraditi”. O significado deste verbo, pelo que consta nos dicionários, é o de “conduzir alguém ao erro”. E o curioso é justamente que a terminação “ek” aponta para o diminutivo desta palavra. Ficamos, portanto, com algo como “coisinha que induz alguém ao erro”.

Mas, neste sentido, o que Odradek esconde? O que no personagem nos induz ao engano?

Pode ser que a maneira magistral com que Kafka cria o personagem Odradek nos deixe tão fascinados que acabamos por perder o enredo principal da história. Afinal, o conto é sobre quem? É preciso, em todo caso, levar o título do conto a sério: “Tribulações de um pai de família”. E aí lembrarmos que existe um outro personagem na história. Um certo pai de família que é o narrador que descreve Odradek. Curiosamente, será que Odradek, o indeterminado, esconde, por trás de sua insignificância, o verdadeiro personagem principal?

E, se assim for o caso, será que esse personagem principal, que se serviu de Odradek, o personagem insignificante que não faz mal a ninguém, esse narrador que se esconde nas entrelinhas, é, tal qual Odradek, um ser inofensivo?

A técnica narrativa, neste caso, é precisa. Lembra alguém que deixou rastros na areia e que voltou para encobrir as suas pegadas. Tudo é contado de maneira objetiva, nos levando a crer que o narrador é onisciente, coisa e tal. O narrador, no entanto, deixa algumas pistas, talvez mesmo que à sua revelia, para que investiguemos com o máximo cuidado a sua posição privilegiada dentro da história.

Apenas uma palavra denuncia o narrador, antes da reviravolta absolutamente desconcertante das últimas linhas da obra. No quarto parágrafo aparece uma breve menção ao fato de que Odradek sempre volta à casa do narrador (mas é certo que acaba voltando à nossa [casa]). Aliás, existe, na história toda, apenas uma única referência ao “eu” (inutilmente eu me pergunto) e esta somente aparece no último parágrafo do texto, nas linhas finais em que, finalmente, surge o narrador como personagem.

Então temos que perceber que existia, desde o começo da história, conforme é contada por este narrador, algo de técnica. O narrador, o pai de família que dá título à obra, estrategicamente somente fala de Odradek, o ser que ostenta todas as características de um não-ser. É preciso situar, então, o modo como o pai de família descreve Odradek e encontrar por trás desta descrição os indícios, as pistas, que possam indicar o que caracteriza efetivamente o pai de família. Tudo se passa como se o nosso esforço para entender esta figura que propositalmente se escondeu de nós durante quase toda a narrativa fosse analisar novamente Odradek, mas assim o fazer, não para repetir a análise deste personagem, mas para investigar outro personagem, este pai de família, inconformado com a possibilidade de sobrevida de Odradek. É olhar para este personagem insignificante que é Odradek para encontrar os significados, atributos e astúcia de quem o descreve, um certo pai de família.

A figura do pai de família aponta, antes de tudo, para a ideia de um homem, adulto – ele já tem filhos – e respeitável. Por ser o pai em uma família é, também, a figura que detém a autoridade simbólica. Se o título do conto é “Tribulação de um pai de família”, o que cabe investigar é o que pode incomodar ou colocar em xeque esta autoridade simbólica.

No primeiro parágrafo desta fábula, ao narrar o conflito entre as duas correntes que disputam a palavra “odradek”, a eslava e a alemã, o pai de família se mostra homem culto, afinal, discussões sobre a etimologia das palavras são, tradicionalmente, a porta de entrada para a conceituação. Também se apresenta, o pai de família, como homem ponderado. Nas primeiras linhas do texto, a incerteza quanto à origem etimológica de “odradek” autoriza, como o pai proclama, a dizer, em meio as tentativas de apropriação da palavra pelo eslavo ou pelo alemão, que, no fundo, a palavra não tem um sentido próprio. O imbróglio etimológico permite ao homem culto escapar da pretensão de conceituar “odradek”, o que soa natural uma vez que nada na origem da palavra leva a um significado manifesto.

O pai de família também se propõe, no segundo parágrafo, como um sujeito. Ele descreve Odradek ao limite da perfeição, o estudo das formas e deformações por incompletude de Odradek é preciso, mas dada a indeterminação de Odradek, um caráter fugidio que lhe é peculiar, a descrição exata nos escapa justamente por este cálculo na descrição. Ao explicar a forma de Odradek para o leitor, o pai de família, ao mesmo tempo, reforça seu caráter de sujeito que observa e que, nem por isso, proporciona vida ao objeto-coisa que analisa.

Seria o caso de se acreditar que este objeto, outrora, tenha tido alguma finalidade… – o pai de família é também homem prático. No terceiro parágrafo, o narrador faz um movimento interessante. Algo que denuncia seu caráter de homem produtivo. Suspeita, de inicio, que Odradek tenha tido uma finalidade no passado, mas que agora está quebrado. E quase que se indigna ao se referir ao fato de que Odradek parece estar completo à sua maneira. Tanto que faz questão de dizer que a completude de Odradek se dá apesar dele não ter um sentido. Claro está que esta perda de sentido somente se propõe na medida em que Odradek não é produtivo, não tem finalidade específica, é objeto mais livre que o próprio narrador, que parece confundir significado com função.

Mas é no quarto parágrafo que a posição do narrador se resolve. Se é verdade que Odradek, às vezes, desaparece por semanas inteiras, provavelmente se mudando para outras casas, ele sempre retorna à casa do pai de família. O narrador, então, é um proprietário. As consequências desta posição no mundo são vastas. E, nesse momento do texto, ser proprietário equivale à somatória de todos os elementos que caracterizavam o narrador.

Homem culto, ponderado, sujeito, prático, produtivo, o pai de família reúne em si os atributos da classe a que pertence: a dos proprietários.

A negação de um maior significado para Odradek, a forma por meio da qual se constrói este personagem somente para se mostrar superior a ele, é próprio do método de narrar do pai de família. Este se afirma no mundo na medida em que diminui o outro. O pai de família escreve bem e de propósito. Apesar de se esconder enquanto personagem, pelo menos até o último momento, nas linhas finais em que demonstra uma brutalidade própria de classe, ele se mostra suficientemente competente para ser ao mesmo tempo sério e irônico na descrição de Odradek. Pode ser que isso seja sinal de civilidade, mas o cinismo também se nutre desta mistura de afirmações que se levam à sério e de comentários jocosos. De qualquer modo, o pai de família é astuto demais para ser colocado sob regime de suspeita durante uma história que domina por completo. Seu ato final de confissão, sua dor, pode ser facilmente confundida com um rompante de sinceridade. Porém, por outro lado, pode ser que esse narrador tenha sido pego na própria armadilha que arquitetou para Odradek.

Kafka em pouquíssimos casos escreve na 1ª pessoa. Isso já apontaria para um texto diferenciado em sua obra. Tanto isso é verdade que temos apenas uma ou duas pistas a nos mostrar que o narrador não é onisciente nesse conto.

Porém, algo está nitidamente fora das estratégias de narrar de Kafka.

Quando escreve em terceira pessoa, Kafka sempre se propõe a mostrar as dimensões de poder e dominação a partir dos homens que se veem de alguma maneira alienados e oprimidos. Estes são seus heróis. Mesmo quando escreve na 1ª pessoa, a narração é sempre dada a partir do ponto de vista daqueles que, por algum motivo, estão por baixo, os vencidos, os oprimidos.

Kafka não compactua, nunca, com o poder.

As “Tribulações de um pai de família”, no entanto, correspondem ao único caso na obra de Kafka em que o narrador é o opressor, o homem bem-sucedido, o proprietário. Odradek, o outro personagem do texto, é perfeitamente alienado e diminuído pelo pai de família, apesar de causar a impressão inicial de que é o centro da fábula.

Vale lembrar que se é verdade que os personagens principais de seus romances, seus heróis, contém sempre a letra “K” em seus nomes (Joseph K em O Processo, o agrimensor K em O Castelo, Karl Rossmann em Amerika), nesse breve escrito intitulado Tribulações de um pai de família, a letra “K” que é simbólica para Kafka, também aparece no nome do personagem Odradek.

Mas, Odradek, aparentemente, não é herói de causa alguma.

Ele é a perfeita construção de um ser-objeto que é, contraditoriamente, apenas signo. Seu esvaziamento ao longo da narrativa, em uma técnica afiada de construir significado retirando significado, o coloca como o signo do ser plenamente alienado. E é curioso que tal personagem atribule o pai de família.

Na verdade, o narrador, em sua posição de proprietário, não deveria se importar tanto com o mundo dos objetos que, a bem da verdade, estão por aí apenas para servi-lo. O que incomoda o pai de família nas “Tribulações”, é que Odradek meio que sem querer representa a reviravolta dos seres-objetos, os oriundos de baixo, frente a sua figura de proprietário. Toda a impostura de Odradek consiste em simplesmente poder sobreviver mesmo após o tempo de vida do narrador.

É claro que as últimas linhas do texto apontam para o capricho do pai de família. Como proprietário, ele sofre (a ideia de que além de tudo ele me sobreviva, para mim é quase dolorosa) por antecipação. Sua confissão final é de uma violência extrema. O que não pode servi-lo, o que não poderá servi-lo, o que ele não poderá mais usufruir, não merece maior atenção e, claro, não merece sequer lhe sobreviver. Os objetos, transformados em fetiche no sistema do capital, ganham dimensões mágicas e transformam o homem em proprietário, essa figura respeitosa que por cinco parágrafos riu cinicamente de Odradek como se fosse superior a ele.

Mas, certamente, o pai de família é demasiado cuidadoso. Mesmo nos momentos finais da narrativa. É civilizado. Então, a possibilidade de sobrevida de Odradek não é, em si, abertamente uma afronta. O narrador lamenta essa situação, ela é dolorosa, mas introduz ao fim um termo que define todo o problema, uma palavra que permeava toda a narração que, em suas idas e vindas, jogando com a indeterminação de Odradek e com a invisibilidade do pai de família enquanto narrador, estabelecia o ritmo absolutamente desconcertante do conto: “quase”.

Sob o signo de Odradek, a tribulação do pai de família, não é total. O narrador ainda se sente superior. E é, na medida em que se propõe como proprietário. Mas, o mesmo sistema que o privilegia, também provoca a impressão desconcertante de que algo escapa à dominação que o pai representa, que existe, sim, uma conexão entre as formas de opressão mais mundanas, advindas da ordem burguesa, com a própria existência.

No “quase” – da ideia de que Odradek ao pai de família sobreviva ser “quase” dolorosa – toda uma ordem estabelecida estremece. É a vingança dos seres-objetos inanimados e alienados. A confissão final do narrador é caprichosa, como não poderia deixar de ser, mas lhe foi arrancada por Odradek. O pai de família foi obrigado a ter um momento de autoconsciência.

Kafka não compactua, nunca, com o poder.

Talvez o narrador perceba, mesmo que na última linha dessa obra-prima, que exerce uma posição de dominador, que seu método de narrar é próprio de uma classe. Talvez se assuste um pouco com o fato de que o insignificante Odradek possa lhe proporcionar uma postura mais reflexiva.

Não que isso seja por completo doloroso ao pai, ele é respeitável o suficiente para não se importar em demasia com a questão. Mas, uma posição em falso do narrador é revelada nas últimas palavras do conto: mas a ideia de que além de tudo ele me sobreviva, para mim é quase dolorosa. O pai de família se encontra visivelmente contrariado. Por trás deste “quase” podemos ver a insolência de Odradek, o insignificante e indeterminado Odradek, o alienado Odradek, como que a dar uma piscadela para nós leitores, certamente rindo baixinho – como só sem pulmões se produz.

Notas

  1. A tradução do conto de Kafka, intitulada Tribulação de um pai de família, é de autoria de Roberto Schwarz.

 Sobre Rodrigo S. Cintra

Rodrigo Suzuki Cintra, filósofo e poeta, é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo de São Francisco/USP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Realizou o mestrado (2008) e o doutorado (2012) na área de concentração Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Estudou a obra de Shakespeare na University of Cambridge, na Inglaterra. Realizou suas pesquisas de Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra, em Portugal (2014), no Programa de Pós-Doutoramento em Democracia e Direitos Humanos. É Socius in Collatione Juridica Conimbrigensi (Parceiro na Discussão Jurídica Coimbrã), pelo Centro de Direitos Humanos do Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra. É membro da International Association for the Philosophy of Law and Social Philosophy (IVR). Está publicando, periodicamente, capítulos do livro "A Galeria Invisível" (Ekphrasis de obras Dadaístas e Surrealistas) no website zagaiaemrevista.com.br. É Professor Adjunto III da Universidade São Judas Tadeu. Atua principalmente nos seguintes temas e autores: relações entre Direito, Filosofia Política e Arte, Direitos Humanos, Ideologia, Sociologia, John Locke, Maquiavel, Shakespeare e Kafka. É um dos editores da Revista Zagaia. Líder do grupo de pesquisa "Revolução 4.0: Ética, Direitos e Arte na Era Pós-Moderna. Poemas do livro Geometrias do Cosmos, Ateliê Editorial, 2019.