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Um Baudelaire para o século XXI

Há pouco mais de 150 anos, na cidade de Paris, saíam do prelo duas obras destinadas a realizar uma verdadeira revolução – no pleno sentido da palavra – na literatura europeia. Ambas foram motivo de processos na Justiça, levando seus autores, como se diz, “às barras dos tribunais”. A prosa e a poesia moderna pediam passagem, escandalosamente. Falo de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e de As flores do Mal, de Charles Baudelaire. Mas cabe aqui uma observação interessante, que dilui em parte essa coincidência.

É que a obra de Flaubert divide com algumas outras, dependendo da perspectiva crítica adotada, a glória pela introdução da prosa moderna, leia-se, romance moderno. Ainda que a citada revolução causada pela obra do romancista francês seja reconhecida pela totalidade da crítica, alguns preferem delegar a Dom Quixote, no século XVII, o marco inicial do romance moderno, outros ao romance inglês do século XVIII, alguns optam pelos dois grandes antecessores franceses de Flaubert, Sthendal e/ou Balzac, e outros veem em Dostoievski a grande passagem para a modernidade no gênero. Há ainda aqueles que só no século XX de Proust, Joyce ou Kafka encontrarão a prosa efetivamente moderna. Ou seja, todos reconhecem unanimemente o valor daqueles mestres citados, mas divergem quanto à precedência.

A lírica moderna, ao contrário, parece ter encontrado no Baudelaire de As flores do Mal o seu inequívoco momento fundador. Talvez, como lembra o crítico Hugo Friedrich, essa unanimidade em torno do chamado “pai da poesia moderna” advenha simplesmente de ter sido ele o criador do próprio termo modernidade (modernité). Seja como for, tem-se cada vez mais a impressão de que o ano de 1857, efetivamente, aparece como um anus mirabilis da poesia francesa moderna e, por consequência, ocidental, já que é na França que se estabelecem as bases da poesia moderna.

Neste sentido, As flores do Mal acabou se constituindo como um ponto de fuga de toda a poesia posterior, repercutindo, em um primeiro momento, na trindade simbolista formada por Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, e, a partir desses, espalhando-se pelos principais poetas do século XX, incluindo já então outras nacionalidades. É claro que esse não é um esquema “natural”, e sim fruto de uma construção crítica, mas que teve, sem dúvida, ampla aceitação. Da mesma forma, com As flores do Mal, a crítica foi forçada a rever e a repensar obras e autores anteriores a Baudelaire. Foi levada a criar seus “precursores”, um pouco no sentido borgiano da palavra. Irá constatar que o poeta francês assimila o melhor da literatura clássica da Antiguidade, em especial da latina, assim como do século XVII francês. Percebe como o poeta bebeu, igualmente, dos grandes românticos, e mesmo de alguns parnasianos seus contemporâneos como Gautier, a quem dedica As flores do Mal. Livro que vinha há muito tempo sendo esperado por toda a Paris literária e boêmia, depois de 15 anos de elaboração, resultado de muito trabalho e de inumeráveis modificações e arranjos do autor, nada boêmio nesse sentido.

a “banalidade do Mal”, de Hanna Arendt

Antecedidos pelo célebre poema introdutório “Ao leitor”, reuniam-se no livro exatos 100 poemas, distribuídos por cinco seções. Em 1861 ocorre uma segunda edição, aumentada agora para 129 poemas, mas tendo sido excluídos aqueles seis condenados pela Justiça. Em 1868, um ano depois da morte do autor, vem à luz a chamada “edição definitiva”, contendo já 166 poemas. São esses poemas, são essas “flores do Mal”, ou essas “flores doentias”, como as chamava também Baudelaire, que se estabeleceram como um marco decisivo da poesia moderna e que, daí em diante, iriam exercer, a partir de Paris, uma enorme influência.

A leitura e recepção de tais poemas, no entanto, como seria de esperar, não se deram de maneira uniforme, e nem sempre na mesma direção. As flores do Mal se constituiu em um daqueles livros que vão deixando atrás de si uma enorme massa crítica, em constante crescimento, merecendo releituras a cada geração. E, dada a sua qualidade e complexidade, tem atraído a atenção dos mais capacitados críticos, escritores e leitores. De maneira que já não foi pouco o que se disse sobre esse livro. Gide, em uma de suas típicas boutades, aqui tingida pela provocação, nos lembra que “Baudelaire é provavelmente o artista sobre o qual se escreveram mais bobagens”. Ocorre que mesmo análises brilhantes são submetidas à passagem do tempo e podem envelhecer. Ou, quando não envelhecem, podem deixar de interessar, pelo menos temporariamente, aos leitores contemporâneos.

Daí que, para quem tomou contato com Baudelaire dos anos 1980 para cá, pode sentir como distantes muitas das discussões que anteriormente se travavam em torno da obra do poeta francês em geral e de sua poesia em particular. Questões ligadas ao “satanismo”, por exemplo, podem parecer aos leitores de hoje por demais vinculadas aos românticos. Assim como decidir pela autenticidade ou não de Baudelaire no que diz respeito à sua religiosidade não chega a ser uma questão que empolgue os leitores contemporâneos em geral. O tema das “correspondências” possíveis entre o Natural e o Espiritual, que tanta importância teve para a crítica, e mesmo para muitos poetas e discípulos simbolistas, não parece ter ocupado com tanta intensidade a mente de Baudelaire, e teve bastante diminuído seu interesse mais recentemente.

Na mesma direção situam-se as ideias em torno do poeta como um “tradutor”, um decifrador de “hieróglifos divinos”, mais ou menos ligados a estados de consciência anormais, assim como uma busca pelo sentido do mistério gerado pelas forças mágicas da linguagem. Tudo isso parece um pouco seráfico demais para a nossa sensibilidade contemporânea. Mas temos aí todo um repertório de temas que durante muito tempo ocupou a atenção de poetas e críticos desde o Simbolismo, entrando século XX adentro, e que tiveram em Baudelaire um ponto de referência muito forte. Principalmente nos assuntos referentes à “linguagem” e tudo que ela implica, de tão grande importância para as reflexões modernas sobre a poesia. Não há dúvida de que tais questões, com o tempo, foram sofrendo um desgaste, foram conhecendo um declínio, mesmo que lento.

Isso tudo, me parece, vem a ser muito natural, e só confirma a obra de Baudelaire como uma das forças vivas de nosso tempo, pois se alguns temas saem do primeiro plano do palco baudelairiano, outros vêm ocupar o seu lugar. Há aqueles, inclusive, que continuam candentes, mas que necessitam mudar o figurino, para se adaptar melhor aos tempos. É o caso, me parece, da “questão do Mal”, presente já no título do livro em foco e, sem dúvida, central na poética de Baudelaire. Pensá-lo, por exemplo, a partir de um diálogo com a reflexão sobre a “banalidade do Mal”, de Hanna Arendt, me parece algo altamente produtivo e atual, se não urgente, mas deixando para trás o que Eliot chamou, com alguma razão, de toda uma “conversa fiada” em torno do Diabo.

Quem pode complementar e apoiar essa perspectiva é a crítica Anna Balakian, quando afirma que “a característica mais saliente em Baudelaire é sua diversidade, sua real ausência de um traço saliente, a virtual reversibilidade e multiplicidade de seu caráter. É precisamente esta complexidade que torna Baudelaire uma personalidade interessante, um poeta sobre o qual a crítica pode escrever indefinidamente, porque as facetas são muitas e paradoxais”. Temos aí, entre outras coisas, o tópico das máscaras baudelairianas, da sua constante transfiguração, e não apenas em nível metafórico. É o Baudelaire como mímico, sempre mutável. O pintor Courbet observava que a cada dia ele mostrava uma expressão diferente. Estamos a um passo do Baudelaire benjaminiano, encarnando ou se assemelhando a vários tipos de “heróis” metropolitanos, todos eles anônimos, a começar pelo poeta moderno, envolvido em uma “estranha esgrima”, à cata de palavras, como se lê no poema “O Sol”. Estranha, entre outras coisas, porque não há mais lugar para o poeta em uma sociedade totalmente mercantilizada. Daí o seu caráter heroico. Poucos sabem que, na gíria dos desclassificados daquela Paris de então, esgrimir tinha um significado aproximado ao de mendigar, o que esclarece melhor, além de justificar plenamente, a aproximação estabelecida por Baudelaire/Benjamin entre o poeta e sua real situação naquela sociedade. Trata-se, como afirma Hugo Friedrich, de um “problema específico de Baudelaire, ou seja, a possibilidade da poesia na civilização comercializada e dominada pela técnica”.

Deslocado, gauche

Com isso chegamos ao nosso tempo, genialmente prefigurado pelo poeta francês. E com esse tema chegamos também a um dos maiores críticos de Baudelaire, provavelmente o mais contemporâneo e vivo, ainda que tenha morrido há quase 70 anos. Estou falando, claro, do já citado Walter Benjamin.

Dada a tardia recepção dos chamados “ensaios baudelairianos” do crítico alemão, que só irão ocorrer a partir do último quarto do século XX, ainda estamos vivendo, ainda estamos aprendendo a lidar com o Baudelaire benjaminiano. Mas seu impacto foi tão grande e generalizado que, como argutamente observou o crítico João Alexandre Barbosa na apresentação que fez para a edição brasileira desses ensaios, “ler Baudelaire é necessariamente ler a leitura que se faz de Baudelaire e, por isso, é ler Benjamin”. E lembra também a outra face da moeda, ou seja, que ler Benjamin hoje é ler Baudelaire. Essa, pode-se dizer, foi a grande virada na recepção da obra do poeta francês nos últimos 20 ou 30 anos. Toda uma geração de críticos e leitores “descobriu” Baudelaire através dos textos de Benjamin. Com isso, sem dúvida, passou-se a ter um Baudelaire mais materialista e mais vinculado à história, distanciando-o daquela perspectiva excessivamente formalista, purista mesmo, em alguns casos, e que era a dominante até então. Cabe daí a pergunta: como Benjamin lê As flores do Mal?

Em primeiro lugar é preciso dizer que o crítico alemão pensou a obra de Baudelaire como sintetizando a Paris do século XIX. Ele expressou isso com uma tão bela quanto precisa imagem: “O que pretendo mostrar é como Baudelaire está incrustado no século XIX. A impressão que nele deixou deve surgir tão nítida e intacta como a de uma pedra que, certo dia, é movida de seu lugar depois de aí ter jazido por décadas”. Portanto, ele percorre, em busca de seus objetivos, todos os escritos do poeta francês, não se contentando com os poemas desse livro. Irá revalorizar um conjunto de poemas em prosa, reunidos sob o título de Spleen de Paris, assim como vários de seus textos críticos, sejam relativos à literatura como também à música e às artes plásticas. Também se ocupará daquilo que hoje chamamos “escritas do eu”, como diários íntimos, memórias, cartas etc.

Especificamente com relação ao livro As flores do Mal, Benjamin o submeterá a um deslocamento importante. Como o seu grande projeto crítico era de estabelecer Paris como a “capital do século XIX”, com a obra de Baudelaire no centro, é natural que a seção do livro que mais o interessou tenha sido os “Tableaux parisiens” ou “Quadros parisienses”, em que o poeta francês evocava, de forma específica, a poesia da cidade, ainda que a presença de Paris se estenda por toda a obra. A tal ponto que um crítico já sugeriu que o livro bem que poderia se chamar Quadros parisienses. Exagero, talvez, mas que serviria muito bem para caracterizar a leitura que Benjamin faz desse livro.

Um dos textos mais interessantes que serão recuperados, por parte de Benjamin, para um enfoque renovado do livro As flores do Mal, será um pequeno ensaio de Baudelaire, de 1846, escrito aos 25 anos, intitulado “Do heroísmo da vida moderna”. O poeta francês dava forma aí ao que entendia por moderno, mais especificamente à beleza particular da vida moderna, que não deveria ser confundida com aquela beleza absoluta e intemporal, consagrada pela arte até então. Baudelaire estava reivindicando, assim, uma arte específica de seu tempo, já que, “assim como todos os séculos e todos os povos tiveram sua beleza, nós certamente temos a nossa”.

Na verdade, a reivindicação consciente do novo na arte vinha já do movimento romântico, como se sabe. Mas o poeta francês, mais do que pensar na questão do novo na arte, estava com a atenção toda dirigida para o novo em sua volta, no seu dia a dia, na própria sociedade em que vivia. (“Que narinas abertas a tudo!”, seria o comentário de Laforgue.) Diz Baudelaire que “a vida parisiense é fecunda em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos impregna como a atmosfera, mas nós não o vemos”. Como estamos longe, aqui, daquela imagem do Baudelaire esteticista! – adepto da “arte pela arte”, que tão largamente se difundiu pelo Ocidente. É, sem dúvida, um outro Baudelaire que escreverá, anos depois, poemas como “Os sete velhos”, em cujas três primeiras estrofes, se lê:

Cidade a formigar, cheia de sonhos, onde
O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante
Flui o mistério em cada esquina, cada fronde,
Cada estreito canal do colosso possante.

Certa manhã, quando na rua triste e alheia,
As casas, a esgueirar-se no úmido vapor,
Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,
E em que, cenário semelhante à alma do ator,

Uma névoa encardida enchia todo o espaço,
Eu ia, qual herói de nervos retesados,
A discutir com meu espírito ermo e lasso
Por vielas onde ecoavam carroções pesados.

Com esses versos já estamos dentro da seção “Quadros parisienses”, uma das mais extensas de As flores do Mal. Com os poemas dessa seção, Baudelaire irá expressar o que o crítico norte-americano Marshall Berman chamou de “cenas primordiais da modernidade”. Pela primeira vez na história a cidade deixava de ser, para seus habitantes, aquele universo conhecido e estável. A velocidade das mudanças fazia com que as pessoas se sentissem perdidas, pelo menos até entenderem o que de fato estava acontecendo. Os velhos quarteirões da Paris medieval são postos abaixo, viram escombros, largas avenidas são abertas, com até 100 metros de largura, e a orientação espacial da cidade é toda modificada. O sentimento súbito de orfandade a que foram submetidos muitos de seus habitantes é compartilhado pelo poeta, ele próprio, Baudelaire, órfão aos seis anos, melancólico desde sempre. É o que se lê em um trecho do poema “O cisne”, talvez o principal dos “Quadros parisienses” e um dos melhores de As flores do Mal:

Paris muda! Mas nada em minha melancolia
Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.

O poema fala de uma época e lugares extintos pelas rápidas transformações da cidade:

Ali havia outrora os bichos de uma feira;
Ali eu vi, certa manhã, quando ao céu frio
E límpido o Trabalho acorda, quando a poeira
Levanta no ar silente um furacão sombrio,

Um cisne que escapara enfim ao cativeiro
E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,
As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro.
Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,

No pó banhava as asas cheias de aflição,
E dizia, a evocar o lago de onde viera:
“Água, quando cairás? Quando soarás, trovão?”

O tema do exílio, claro, era muito anterior a Baudelaire, mas não o tema do exilado em sua própria cidade. No limite, em uma projeção temática em direção aos tempos que correm, a pessoa se sentirá uma exilada em relação até ao seu próprio corpo, configurando os numerosos casos de total alienação de si, de errâncias identitárias, tão presentes nos grandes centros urbanos do planeta a partir do século XX. Com a metáfora do cisne Baudelaire representa, no sentido mais restrito, o poeta perdido na realidade fragmentada da cidade.

No sentido mais amplo (todos seríamos cisnes, em alguma medida), o poeta está representando qualquer cidadão deslocado, gauche, para utilizarmos a conhecida expressão drummondiana, alguém perdido entre as vertiginosas e cada vez mais aceleradas mudanças do mundo contemporâneo. Aquilo que seria experimentado por milhões de pessoas nas décadas seguintes em todo o mundo, este sentimento de espanto em relação às velozes mudanças urbanas, é apreendido aqui no seu nascedouro. E o mais importante, lembra ainda Berman, “Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos”. Neste sentido, um dos textos mais significativos é o célebre e hoje muito conhecido poema “A uma passante”:

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa,
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz … e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! Tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

O comentário de Benjamin ao poema é brilhante. Diz ele que “o arrebatamento desse habitante da cidade grande não é tanto um amor à primeira vista quanto à última”. O tema do amor à “mulher que passa” também é anterior a Baudelaire, mas não é o fundamental aqui. O que mais importa na leitura benjaminiana é a presença implícita da multidão, a corrente humana que arrebata a mulher e a leva para longe do poeta. A multidão, sim, era o elemento novo na poesia lírica nos meados do século XIX. Mas no caso do autor de As flores do Mal não se tratava de uma “multidão insuportável”, como a denominavam os poetas ainda circunscritos ao romantismo, assustados com as consequências funestas que a industrialização e a urbanização iam impondo progressivamente à Europa.

Parnasianos e simbolistas levariam ainda mais longe essa ojeriza ao “turbilhão das ruas” (somente os modernistas, já no século XX, iriam ter para com a multidão o mesmo tipo de vinculação que o pioneiro Baudelaire.). Engels, ao falar do corre-corre das ruas de Londres, dirá que “o próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a natureza humana”. Baudelaire, ao contrário, dirá em um de seus poemas em prosa, intitulado justamente “As multidões”: “Não é dado a qualquer um tomar um banho de multidão: gozar a multidão é uma arte; e somente pode gozá-la aquele a quem uma fada tenha insuflado no berço o gosto pelo disfarce e pela máscara”. Um pouco mais adiante: “Multidão, solidão: termos iguais e permutáveis para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão tampouco sabe estar só em meio a uma massa atarefada”. Insinua-se, aqui, a figura do flanêur, o “homem das multidões”, que tanto fascinou Benjamin e hoje nos fascina também, figura em eterna peregrinação em meio à massa de pessoas, perto e ao mesmo tempo distante delas, “multidão, solidão”, a tão falada “solidão das grandes cidades”, apreendida pelo grande poeta francês no momento mesmo em que se configurava.

Mas o estranho – e Baudelaire é sempre mais estranho do que se imagina – é que ele amava essa solidão, mas a queria na multidão. Ainda no mesmo poema em prosa ele vai dizer que “o poeta goza deste incomparável privilégio de poder ser, a seu bel-prazer, ele próprio e outro. Tal como essas almas errantes que buscam um corpo, ele entra, quando quer, na personagem de cada um”. Isso dito por um romancista não seria de espantar, mas, por um poeta lírico, parece indicar uma profunda mudança no gênero.

Estamos assistindo aqui ao trânsito de um lirismo pessoal para um lirismo da persona, da máscara. Começa a sair de campo a lírica confessional dos românticos e a entrar nele a lírica como “operadora de linguagem”, ou seja, o “eu empírico” do poeta deixa de coincidir com o “eu poético”, com o “eu lírico”. Os heterônimos de Pessoa já estão em germe aqui, o “homem comum” de Eliot, a total despersonalização da lírica de Pound, o “sou trezentos, sou trezentos e cinquenta” de Mário de Andrade. Enfim, anuncia-se aí, de certa forma, toda a lírica moderna.

A leitura dos poemas de As flores do Mal, em especial os da seção “Quadros parisienses”, leva-nos a perceber o verdadeiro mergulho que Baudelaire deu nas ruas de Paris, naquela “formigante multidão”, dos pobres, dos trapeiros e catadores de papéis, das prostitutas, dos velhos e velhas desamparados que andam como fantasmas pela cidade. Mas ele também voltou a sua atenção para as belas mulheres, para os trabalhadores, os burgueses, os militares. Esses poemas mostram, junto a muitos outros textos, como Baudelaire foi o primeiro poeta lírico a aceitar plenamente a vida da cidade moderna. Como tema e como problema, já que era preciso uma linguagem nova e totalmente despida de preconceitos puristas para descrever essas vidas humanas. Os trabalhos de Benjamin em torno de Baudelaire e da Paris do Segundo Império provam, à exaustão, o quanto a criação do grande poeta francês estava vinculada à sua cidade e como isso se refletia nos seus poemas.

No Brasil

Antes de concluir, cabe falar um pouco sobre a influência de As flores do Mal no Brasil, que, segundo Antonio Candido, inicia-se bem cedo, em torno de 1870. Chega depois aos nossos parnasianos e, principalmente, aos simbolistas, Cruz e Sousa em especial. Quanto aos modernistas, não parece ter exercido influência propriamente ou, como lembra o mesmo Candido, a partir desse período “não se pode mais falar em influência, mas apenas [na] presença normal de um grande poeta na sensibilidade dos escritores e leitores”. Vários poetas brasileiros, das mais diversas gerações, verteram para o português poemas do famoso livro, mas sem dúvida cabe uma menção especial ao poeta modernista Guilherme de Almeida, hoje bastante esquecido. Em 1947 ele publicou as suas Flores das flores do Mal, um conjunto de 21 poemas cuidadosamente escolhidos pelo próprio, e que muitos consideram as melhores traduções de Baudelaire em língua vernácula. Mas sabe-se que dois outros poetas significativos da literatura brasileira também traduziram, com alto rendimento estético, um número considerável de poemas. Um desses poetas vem a ser o simbolista gaúcho Eduardo Guimarães, o outro é Dante Milano. Infelizmente, tanto um como o outro deram a público apenas uma parcela reduzida de suas traduções, e mesmo assim em publicações esparsas e difíceis de encontrar hoje. Além dos poetas citados, muitos outros tradutores se aventuraram na tarefa de trazer poemas de As flores do Mal para o idioma vernáculo. Caberia um especial destaque a Jamil Almansur Haddad, quem primeiro traduziu de forma (quase) completa o livro de Baudelaire. Tratava-se de uma edição comemorativa aos 100 anos de publicação de As flores do Mal, mas que acabou saindo apenas em 1958. Finalmente, deve-se referir aquele que é hoje o maior ou um dos maiores especialistas em Baudelaire no Brasil, certamente seu principal tradutor contemporâneo. Trata-se de Ivan Junqueira que, em 1985, publicou pela Nova Fronteira a versão completa de As flores do Mal, com seus 166 poemas. São dele, aliás, as traduções dos poemas transcritos anteriormente.

Quero terminar com duas sugestões que poderiam ser postas em prática para dinamizar ainda mais a recepção de Baudelaire no país. A primeira, com vistas aos jovens leitores, seria a de que se publicasse As flores do Mal em formato pocket, caso ainda não tenha sido publicado. Uma outra opção, mais barata mas nem por isso menos interessante, seria a publicação em separado dos “Quadros parisienses”. A segunda sugestão é de caráter acadêmico e visa mais aos especialistas. Seria o caso de se tentar publicar as traduções inéditas de Eduardo Guimarães e/ou Dante Milano. Acho que seria uma bela e enriquecedora contribuição para uma leitura não só mais abrangente como mais qualificada de As flores do Mal neste início do século XXI em terras de Pindorama.

Ilha de Santa Catarina, verão de 2010


 Sobre Claudio Cruz

Claudio Cruz é escritor e poeta. Doutor em Teoria Literária pela PUC do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires e professor de Literatura Brasileira na UFSC. É autor de, entre outros, Literatura e cidade moderna (1994), do romance Arrabaleros (2006) e do conjunto A ilha do tesouro e outros poemas (2009).