“Sociedade do espetáculo”: esta expressão muito utilizada, especialmente ao se falar de televisão, no Brasil parece se impor ainda mais do que em outros lugares. Poucos, porém, sabem que na origem ela era o título de um livro de Guy Debord (1931-1994). Lançado na França em 1967, A sociedade do espetáculo tornou-se, inicialmente, um dos livros de culto da ala mais extremista do Maio de 68, em Paris; hoje é um clássico em diversos países.
No prefácio de 1982, o autor sustentaria com orgulho que seu livro não necessitava de nenhuma correção. Pois o “espetáculo” de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente seu aspecto mais visível e mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade, em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo que lhes falta em sua existência real. Eles têm de olhar para outros (celebridades, políticos etc.) que vivem em seu lugar. A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade que falta à vida se recupera no plano da imagem.
Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida se caracterizava pela notória degradação do ser em ter, no espetáculo chega-se ao reinado soberano do aparecer. As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria de que Marx falava, mas diretamente pelas imagens. Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica própria, como pensam, ao contrário, os “pós-modernos” à la Baudrillard, que saquearam amplamente Debord. A imagem é uma abstração do real, e seu predomínio, isto é, o espetáculo, significa um “tornar-se abstrato” do mundo.
A abstração generalizada, porém, é uma consequência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas as qualidades concretas do objeto são anuladas em favor da quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo, a economia, de meio que era, transforma-se em fim, a que os homens se submetem totalmente, e a alienação social alcança seu ápice: o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê governado por algo que, na realidade, ele próprio criou. Nesse sentido, Debord condena toda a sociedade existente, não somente fraquezas e imperfeições individuais.
Em 1967, Debord distinguia dois tipos de espetáculo. O “difundido” (o tipo ocidental, “democrático”) caracterizava-se pela abundância de mercadorias e por uma aparente liberdade de escolha. No espetáculo “concentrado”, ou seja, nos regimes totalitários de todo tipo, a identificação mágica com a ideologia no poder era imposta a todos para suprir a falta de um real desenvolvimento econômico.
Cada forma de poder espetacular se justificava denunciando a outra; e nenhum sistema, além desses dois, devia ser imaginável. Debord, portanto, reconheceu na URSS, nada menos do que 25 anos antes de seu fim, uma forma subalterna − e destinada, enfim, a sucumbir − da sociedade da mercadoria. Mas, por um longo período, enquanto existia um proletariado inquieto, o comunismo de Estado desempenhou uma função essencial para o espetáculo ocidental: a de assegurar que os rebeldes potenciais se identificassem com a mera imagem da revolução, delegando a ação real aos Estados e aos partidos comunistas − totalmente cúmplices do espetáculo ocidental; ou, então, a pressupostos revolucionários muito distantes, no Terceiro Mundo.
Debord anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação de um tipo novo: retomando o conteúdo libertário da arte moderna, teria como programa a revolução da vida cotidiana, a realização dos desejos oprimidos, a recusa dos partidos, dos sindicatos e de todas as outras formas de luta alienadas e hierárquicas, a abolição do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Por isso, Debord sempre considerou o conteúdo profundo de 1968 como uma confirmação de suas ideias.
Teve, porém, de admitir, em Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988), que o domínio espetacular conseguiu se aperfeiçoar e vencer todos seus adversários; de modo que agora é sua própria dinâmica, sua desenfreada loucura econômica que o arrasta em direção à irracionalidade total e à ruína.
Os dois tipos anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um único tipo: o “integrado”. Sob a máscara da democracia, ele remodelou totalmente a sociedade segundo a própria imagem, pretendendo que nenhuma outra alternativa seja sequer concebível. Nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar tudo, desde a cerveja e o pensamento até os próprios revolucionários. Ninguém pode verificar nada pessoalmente, ao contrário, temos de confiar em imagens, e, como se não bastasse, imagens que outros escolheram. Para os donos da sociedade, o espetáculo integrado é muito mais conveniente do que os velhos totalitarismos. A América Latina sabe algo a respeito.
Mas Debord não é apenas um dos poucos autores de inspiração marxista que hoje podem dar uma contribuição válida para a análise do capitalismo globalizado e “pós-moderno”. Ele também fascina por sua vida singular, sem compromissos, conforme suas teorias.
A busca da aventura e da vida “verdadeira” esteve na base de sua vida pessoal − da qual a sua autobiografia Panegírico e seus filmes falam, assim como sua teoria. Levou uma existência intencionalmente “maldita”, às margens da sociedade, sem um trabalho reconhecido, sem nenhum contato com as instituições, sem nunca ter frequentado uma universidade, concedido uma entrevista ou participado de um congresso − e, no entanto, conseguiu ser escutado.
Levou adiante sua batalha contra a sociedade espetacular exclusivamente com os meios que ele próprio criou para si: em primeiro lugar, com a Internacional Situacionista, pequena organização que existiu entre 1957 e 1972 e que se originou da decomposição do surrealismo parisiense e outras experiências artísticas. Com a revista homônima e os novos meios de agitação (quadrinhos, organização de escândalos), os “situacionistas” souberam prefigurar, muito melhor do que a esquerda “política”, as novas linhas de conflito na sociedade “da abundância”.
Entre outras coisas, criticavam impiedosamente a nova arquitetura e o vazio e o tédio do pós-guerra. Com poucas intervenções pontuais, os “situacionistas” fizeram com que ideias subversivas, que, por volta de 1960, eram compartilhadas por um punhado de pessoas, se tornassem, em 1968 e depois, um fator histórico de primeira ordem.
Os “situacionistas” e, particularmente, Debord, distinguem-se pelo estilo inconfundível, e não somente no plano literário. São o resultado da mistura entre um conteúdo radical − que remetia, entre outros, aos dadaístas, aos anarquistas e à vida popular parisiense − e um tom sofisticado e aristocrático, com muitas referências à cultura clássica francesa. Esse estilo − assim como sua verve polêmica, incluindo todos os demais supostos contestadores (esquerda oficial, artistas “engajados” etc.), sua inacessibilidade e a sua transgressividade nas formas − logo os cercou de um ódio significativo, mas, sobretudo, de uma aura de mistério, que trinta anos depois ainda vive: de fato, ainda se publicam textos dos “situacionistas” e sobre eles, embora se busque fazê-los passar exclusivamente pela “última vanguarda cultural”. Na França, só querem enxergar em Debord o escritor. Ainda hoje não querem perdoá-lo por ter escrito A sociedade do espetáculo.
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- Maio 1968