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Rubem Braga comemora os quarenta anos de Vidas secas

“Em 1937 escrevi algumas linhas sobre a morte duma cachorra, um bicho que saiu inteligente demais, creio eu, e por isso um pouco diferente dos meus bípedes. Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas a retalho, a jornais e revistas. E, como José Olympio me pedisse um livro para o começo do ano passado, arranjei outras narrações, que tanto podem ser contos como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia, as últimas criaturas que pus em circulação.”

Assim Graciliano se referiu certa vez (em 1939) ao seu romance Vidas secas.

Acontece que neste ano de 1978, em que se comemora o 25º aniversário da morte de Graciliano Ramos, também se lembra o quadragésimo aniversário da publicação de Vidas secas.

Acontece ainda que esse livro está hoje com 38 edições brasileiras e treze traduções publicadas. Cada vez é mais lido, e o fato de cada ano ser adotado por um maior número de professores de português mostra que em pouco tempo ele chegará ao milhão de exemplares.

Ora, eu vi quando ele escreveu o livro.

Foi em maio de 1937 que eu conheci Graciliano Ramos; um amigo comum levou-me a morar na mesma pensão em que ele estava, na rua Correia Dutra. Era um sobradinho; o número, provavelmente, 164. Uma das últimas, talvez a penúltima casa do lado direito de quem vinha da rua do Catete, antes de chegar à Bento Lisboa. Não existe mais.

Não me lembro do tempo que vivi ali. Foram alguns meses, poucos. Meu quarto era o de frente, e do outro lado da rua moravam, com seus pais, as irmãs Batista, cantoras. A comida era simples e sadia, e geralmente abundante; de vez em quando, porém, minguava de maneira triste. “Ovo não tem mais; a carne acabou…” Não custamos a descobrir a explicação: a dona da pensão, uma viúva magrinha, tinha ido na véspera ao Cassino da Urca e arriscado seu dinheirinho, como ela confessava, “no número da catacumba do Flôri”. O major Fleury, em vida, podia ter sido um bom marido e excelente pessoa; mas seus palpites de defunto eram sinistramente errados.

Lembro-me de um investigador de polícia que morava lá: presença incômoda, porque éramos quase todos gente não muito limpa na Polícia Política, a começar por Graciliano Ramos, que tinha acabado de chegar, ainda de coco rapado, da Ilha Grande.

Pois o “tira” procurava ser simpático e até mesmo intelectual; e uma vez, ao jantar, pediu a nossa opinião sobre Vítor Hugo. O velho Graça não se fez de rogado:

— Vítor Hugo? Uma besta!

O rapaz ficou desolado. Mas Graciliano era assim. A dona da pensão não acertava seu nome, e o chamava de Brasiliano; ele a princípio reclamava, depois se conformou, me explicando: “Eu pago tão pouco que ela pode me chamar como quiser”. Mas era intransigente em outras coisas, inclusive Vítor Hugo. E sobre poesia em geral gostava de dizer: “Não leio, não entendo, sou burro, não gosto, não percebo”.

Era mentira. Uma vez Lúcio Rangel, entrando em seu quarto, surpreendeu-o a calçar os sapatos enquanto recitava em voz alta um poema de Manuel Bandeira:

Bembelelém
Viva Belém!
Nortista gostosa
Eu te quero bem!

Outras pessoas que moraram na pensão: Vanderlino Nunes, meu amigo desde o Recife, companheiro de Graciliano na Casa de Detenção do Rio e depois na Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande; Barreto Falcão, Simeão Leal, Gentil Noronha. Havia um intendente naval e sua senhora, que não era sua senhora; um velho surdo e o vulto suave de dona Gilda, tão boazinha e tão dadeira, que a tuberculose levou.

Afligia um pouco ver Graciliano morar em um só quarto, o dos fundos, com a mulher e duas filhas meninas. Estava com a saúde estragada e sem tostão, e não se queixava, nem pedia nada a ninguém. Acordava cedo, lavava a cara quando o dia ainda estava clareando e ali no quarto, onde a mulher e as filhas ainda dormiam, abria o armário de pinho envernizado, tomava um trago de cachaça, tirava da carteira seis cigarros Selma, batia-os e apertava o seu fumo até que a parte da ponta de cortiça ficasse vazia, dispunha-os na mesa, colocava ao lado seis paus de fósforos, abria o tinteiro, pegava a caneta — e lentamente, com sua letra bem legível, onde até as emendas são rigorosamente corretas, escrevia um capítulo de romance numa prosa seca, precisa, limpa e entretanto estranhamente sensível.

Seu quarto era o dos fundos, e dava para o zinco de uma garagem imensa, onde os gatos do Catete se amavam sem vergonha, um pátio onde os motores dos caminhões sempre custavam a pegar. Queria fazer um romance, mas a conta da pensão não podia esperar um romance. Por isso cada capítulo ficou sendo um conto, que era vendido logo para um jornal do Rio e outro de Buenos Aires, único meio de aplacar a fome de dinheiro de dona Elvira. E enquanto armava, peça por peça, seu romance desmontável, ia fazendo um ou outro artigo que lhe pediam.

Lembro-me de que nas noites de calor a gente podia apagar a luz do banheiro e ficar espiando a janela da vizinha, até que ela viesse tirar a roupa, mostrando o belo corpo moreno completamente nu. Como era bonita a nossa vizinha, Graciliano! Você vivia zombando de mim e do Vanderlino porque nós gostávamos de espiar; mas uma noite pegamos você lá no escuro, de tocaia. Corremos para a outra janela. E sabemos que você cuspiu de nojo e disse a palavra “peste!” quando, no lugar da bela mulher morena, quem se mostrou nua foi a cafetina de carnes brancas e bambas.

Lembro-me de que certa vez Augusto Frederico Schmidt arranjou um emprego para Graciliano em uma companhia de seguros. Mas era um lugar de caixa, muito trabalhoso e muito mal pago, que ele teve de largar. Fui-me embora para São Paulo, mas sei que Graciliano ficou na pensão até outubro de 1939, quando Carlos Drummond de Andrade arranjou para ele um emprego de inspetor de ensino. Aí ele foi morar melhorzinho na rua Carvalho Monteiro; nunca mais fez romance nenhum.

O sapotizeiro de Angústia

Angústia é um romance de Maceió. Luís da Silva mora na rua do Macena, senta-se num banco da praia dos Martírios, sobe a ladeira de Santa Cruz, sonha com um bangalô no alto do Farol, conhece Julião Tavares numa festa de arte do Instituto Histórico, fica sabendo que ele é sócio de Tavares & Cia., casa de secos e molhados da rua do Comércio…

Há várias paisagens urbanas descritas de maneira sucinta, mas sensível; há vento, há chuva, lama, areia. Graciliano escreveu: “nunca vejo a paisagem”, mas via, sim. Quando fez Angústia, ele morava na rua da Caridade, em Pajuçara, e tinha seu gabinete de diretor de Instrução Pública no próprio Palácio dos Martírios. Às vezes se deixava ficar no palácio, escrevendo, até altas horas. O mais das vezes, entretanto, escrevia na sala de jantar de sua casa, como relembra em Memórias do cárcere:

“Era noite. Sentado à mesa, entranhava-me na composição de largo capítulo: vinte e sete dias de esforço para matar um personagem, amarrar-lhe o pescoço, elevá-lo a uma árvore, dar-lhe aparência de suicida. Esse crime extenso enjoava-me. Necessários os excitantes para concluí-lo. O maço de cigarros ao alcance da mão, o café e a aguardente em cima do aparador. Estirava-me às vezes pela madrugada, queria abandonar a tarefa e obstinava-me nela, as ideias a pingar mesquinhas, as mãos trêmulas. Rumor das ondas, do vento. Pela janela aberta, um sopro salgado; a enorme folhagem de um sapotizeiro escurecia o quintal.” (Aurélio Buarque de Holanda disse-me que era assim mesmo que Graciliano escrevia, e acrescentou: de cuecas.)

Mas o sapotizeiro ainda existe. Está lá, no quintal da casa número 167 da rua Almeida Guimarães, antiga rua da Caridade. Em abril deste ano estive em Maceió, e Heloísa, a viúva de Graciliano, pediu licença à família que hoje vive ali, e me conduziu pelo alpendre até o quintal, para ver. Lá está o pé de sapoti, 32 anos depois da última vez que o viu Graciliano, naquele dia 3 de março de 1936 em que foi preso e levado para o Sul; nunca mais ele voltaria a Alagoas.

Rubem Braga

“Rubem Braga comemora aqui uma outra data: os quarenta anos de Vidas secas. ‘Eu vi este livro nascer’”. Status, n. 52, pp. 151-2, nov. 1978. Texto que integrará o segundo volume de Conversas. Org. Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Editora Record.