Na carta do dia 28.09.1955 (n. 69), remetida de Dusseldorf, Celan nos fala um pouco de onde ele recolhe sua escrita. Cito-o:
(..) se há uma coisa que esta estada aqui me ensinou, uma vez mais, é bem esta: a língua com a qual eu faço meus poemas não depende em nada do que se fala aqui ou acolá, minhas angústias a este propósito, alimentadas por meus problemas de tradutor são sem objeto. Se há ainda fontes de onde poderiam brotar novos poemas (ou prosa), é em mim mesmo que eu as acharei e não nas conversas que eu poderei ter em alemão, com os alemães, na Alemanha. [1]
Para Celan, como para Kafka, a questão da língua é complicada. Para eles, que não eram alemães, o alemão não foi, nem uma língua de adoção nem de eleição. O alemão é escolhido como a língua de escrita. Celan escrevia nesta língua, ao mesmo tempo a língua que sua mãe falava e a língua assassina dos nazistas. Vale lembrar aqui Kafka, que também era judeu, escrevia em alemão e vivia no meio de uma população tcheca, quase meio século antes de Paul Celan. Tanto Kafka quanto Celan tinham – para usar uma expressão do poeta Manuel Bandeira –, “uma necessidade imperiosa de escrever”. [2]
Na ocupação húngara, a partir do ano de 1889, a população tcheca sofreu várias restrições, e uma delas era o impedimento, aos tchecos, de escrever em alemão. Este impossível social não impediu Kafka de escrever em alemão. Em uma carta a Max Brod, de junho de 1921, Kafka escreve: “impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outra maneira”. Escrever em alemão se impunha à mão que escreve e era uma necessidade imperiosa. Também não podemos esquecer que Paul Celan morava na França, e tinha conflitos também com a língua francesa. Em conversa com o poeta francês Yves Bonnefoy, Celan expôs sua posição: “Vocês (tratava-se dos poetas franceses, ocidentais) estão em sua casa, em sua língua, em suas referências, entre os livros que vocês amam. Eu, eu estou fora…” [3] Este fora se dá em “um não-país e em um não-tempo”[4]. Assim, em Celan, há um duplo conflito linguageiro: com a língua alemã e com a língua francesa. Por outro lado, em conversa com o poeta e amigo Jean Daive, atravessando o cruzamento da rue des Écoles e do Boulevard Saint-Michel, Celan confidenciava seu desejo e sua impossibilidade de escrever em francês. Cito a conversa:
Celan: Você pensou poder escrever em uma outra língua?
Daive: Não. E você?
Celan: Sim.,. algumas vezes em francês… Mas isto não é possível.
Daive: Por quê?
Celan sorri.[5]
Um desejo de escrever em francês esbarrava em seu pensamento poético de que o poeta só escreve em uma língua. Celan não acredita em bilinguismo na poesia. Lemos: “Poesia – essa é a inelutável unicidade da língua”[6]. Além disso, como nos diz o ensaísta Rafael Gutierrez Girardot, a poesia de Paul Celan “é a complexa expressão de um exílio absoluto que encontrou sua pátria impossível na língua alemã”,[7] sempre buscando elaborar o que parece impossível: uma pátria perdida.
Talvez, possamos aproximar Celan do escritor Edmond Jabès que pensava a língua na referência, principalmente, ao que podemos chamar de estatuto de estrangeiridade. Jabès nos fala que:
Eu nunca soube onde estava. Quando estava no Egito, estava na França. Desde que eu estou na França, estou em outra parte. Ainda o problema do estrangeiro. O estrangeiro não sabe mais qual é o seu lugar. Não há, senão a língua. Se um estrangeiro vem a um país porque ele escolheu sua língua, ele encontra aí seu lugar. Mas, onde ele encontra seu lugar? Simplesmente nessa língua. Ora, essa língua que não cessa de aperfeiçoar já não é mais a língua que se fala ao seu redor. Seu lugar é o lugar da língua: o livro. [8]
Se o lugar da língua é o livro, o lugar do poema é a estranheza. E da língua à estranheza passamos pelo estrangeiro. Estrangeiro que insiste e resiste nos poemas de Paul Celan e na correspondência dele com Gisèle. Na carta do dia 15. 3. 1966 (n.369), Celan faz referência ao nome Lestrange e sua relação com o L’étranger (“estrangeiro”). Diz a carta: “(Aqui, pensei em ti ainda, a lembrança de Saint-John Perse e de seu ‘Chant de l’Alienne’)”[9]. Ele faz alusão ao ultimo verso da primeira parte do Poème à l’Etrangère que tem como épigrafe : “‘Alien Registration act’: Rua Gît-le-coeur [Jaz-o-coração]… Rua Gît-le-coeur… canta baixinho a Alienne sob as lâmpadas, e são esses enganos de sua língua de Estrangeira”[10].
Na carta do dia 27 de dezembro de 1966 (n.469), Celan escreve, agradecendo a gravura enviada e os votos de Gisèle para o novo ano (1967). Ele ressalta que, na gravura há duas imagens, uma reagindo (no sentido de confrontação) à outra, e diz que: “os cobres, reescritos com sua mão, trocam suas mensagens, ‘lestrangement’”[11]. Celan faz alusão, uma outra vez, ao sobrenome de sua esposa, De Lestrange que sonoramente faz eco a De l’étranger[12]. A qualidade necessária para um poema, assim como para uma gravura, é ter estranheza. Celan dava ênfase “sobretudo a estranheza.(…) Sobre este tema, Paul Celan anota em 1968 esta reflexão de Paul Valéry: ‘Toda visão das coisas que não é estranha é falsa’”[13].
A carta de Celan do dia 10.8.1952 (n. 18) faz referência às cartas não publicadas de Gisèle, nesta correspondência, onde ela comentava um livro que Celan tinha lhe dado de presente. Trata-se da Montanha Mágica de Thomas Mann. Em um dos trechos, ela diz: “Eu entrei na Montanha Mágica”. Celan, responde a esta carta dizendo: “!O que eu fiz mais? (questão pertinente, pois eu não me encontro, como você, sobre uma ‘montanha mágica’, mas na planície). Oh, não muita coisa, infelizmente”[14]. Esta carta mostra um distanciamento (crítico literário) de Celan em relação a Gisèle. Ele prefere usar o pronome “vous” ao invés do “tu” habitual. É claro que a sensação de Gisèle de se sentir em uma montanha mágica é natural diante do impacto da leitura do livro de Thomas Mann. No entanto, Celan, neste momento, não se imagina em uma montanha. Tudo com ele se passa em um plano bastante árido e seco, com pedras e sombras.
Não podemos esquecer que a montanha, sete anos mais tarde, em 1959, terá para Celan uma importância capital. Do “plano árido e seco” de 1952, para a “conversa na montanha” de 1959, Celan percorreu um longo caminho. Um novo escrito surgiu, em prosa, no ano da publicação de seu livro de poemas Sprachgitter (Grelha de linguagem). Depois de Der Sand aus den Urnen (A areia das urnas, 1948), Mohn und Gedächtnis (Papoula e Memória), 1952), e Von Schwelle zu Schwelle (De limiar em limiar, 1955), Conversa na montanha foi escrito em um momento de transição, no qual o poeta trazia uma prosa repetitiva, distante “da crescente economia”[15] de seus poemas, nesta época. Excetuando o longo poema “ENGFÜHRUNG” (“Stretto”) de Grelha de linguagem, os outros poemas deste livro, já tendiam para esta economia de versos, que só iria se concretizar inteiramente em seus últimos livros.
O texto Conversa na montanha fala de um encontro entre dois judeus muito falantes. Um judeu mais novo carregava em seu nome o indizível, e caminha pela estrada e como Lenz[16], “através da montanha. (…) Veio, sim, pela estrada, a bela, a incomparável, foi como Lenz pela montanha, ele que deixaram morar lá embaixo, onde ele pertencia, nas terras baixas, ele, o Judeu veio e veio andando”[17].Veio ao encontro de seu primo. E segue o texto:
“Seu parente e primo, aquele que era mais velho do que ele um quarto de vida de Judeu, ele veio, grande, veio, ele também, na sombra emprestada, – pois eu pergunto e pergunto outra vez quem já que Deus fez nascer Judeu vem com algo que lhe seja próprio?”[18]
Aqui, na referência a sombra, o judeu mais novo veio pela sombra, não portando nada que lhe pertencesse. Cito: “pois o Judeu você o sabe, o que tem ele que lhe pertença realmente, que não lhe foi emprestado e tomado e jamais restituído”[19]. Há uma falta radical que este encontro realiza e presentifica. Os judeus não tinham nada que lhes fosse próprio.
Assim, o silêncio se fez presente: “Assim, a pedra silenciou, ela também, e o silêncio se fez na montanha. (…) Mas o silêncio não durou muito tempo, pois quando um Judeu vem e encontra um outro, o silêncio logo termina, mesmo na montanha”[20]. Apesar de a pedra ter silenciado, “o silêncio não é um silêncio, nenhuma palavra ali está calada, nenhuma frase, é apenas uma pausa, apenas um intervalo entre as palavras, é apenas um vazio, podem-se ver todas as sílabas imóveis em volta”[21]. Quando o silêncio cessa, Celan produz uma nova estética. No próprio silêncio, o vazio que o constitui desenha sílabas que dançam imóveis em volta.
A carta de Celan do dia 14.8.52 (n. 20) é reveladora, no que se refere ao seu modo peculiar de trabalhar os poemas. Depois de descrever a compra de vários livros a preço mais em conta, em um bouquiniste perto da igreja de Notre-Dame e de pedir desculpas a Gisèle por se considerar um gastador, Celan escreve: “Eu leio bastante para poder um dia escrever um novo livro para você”[22]. O novo livro a que Celan se refere, se chamará Von Schwelle zu Schwelle (De Limiar em Limiar) e sera dedicado a Gisèle.
Na nota número 8 do dia 14.8.1952 (n.20), o organizador da correspondência, Bertrand Badiou diz que: “muitos dos poemas, aforismos ou pensamentos nasceram nas margens mesmas dos livros. Numerosas páginas dos livros da Biblioteca de Paul Celan constituem verdadeiros manuscritos”[23]. Estes manuscritos contidos em muitos livros de Celan nos revelam a sua prática de escrita. A leitura, para ele, tinha uma importância crucial. É a partir dela que ele elaborava muitos de seus poemas e sua forma de pensar o mundo e a poesia. Daí suas inúmeras anotações nas margens dos livros lidos. Em uma carta, possivelmente escrita em dezembro de 1954, (n.45) Paul Celan assina com a letra “i”, sublinhando-a duas vezes. Este “i” celaniano tem relação com suas anotações nas margens dos livros lidos e aponta para sua experiência de escrita, a saber, de onde surgem as suas idéias poéticas. Vejamos a esclarecedora nota de Bertrand Badiou:
Paul Celan assina com um pequeno “i” sublinhando duas vezes. É assim que ele assinala, para ele mesmo, muitas vezes, na margem de um livro, uma idéia, uma fonte de inspiração, uma palavra ou uma frase ressaltada no momento de uma leitura, um esboço mais ou menos elaborado de tradução ou de poema, uma reflexão de natureza aforística ou especulativa. Em setembro de 1957, Gisèle Celan-Lestrange escreve a Klaus Demus sobre o tema da inicial da palabra ‘idéia’: “Eu sei que ele lê muito e que ele retoma e reflete sobre suas ‘i’ (idéias que ele vai marcando aos poucos para trabalhá-los e fazê-los evoluir depois)”. Mas esta abreviação é certamente liberada de seu sentido original no fio do tempo, para adquirir um valor idiosincrático. O ‘i’ (precedido e seguido de um hífen ou não) indica uma fonte de inspiração ou um texto em potencial – por vezes mesmo um poema já plenamente existente, e que se publicou tal qual, depois de simples recolhimento do sinal.
Assinando deste modo, Paul Celan se identifica por assim dizer à poesia, ou pelo menos a ‘idéia poética’ (confere ‘Eu sou a poesia’, proposição de Paul Celan relatada por Jean Bollack em Pierre du couer, s.l., Pierre Fanlac, 1991, p. 9).[24]
A marcação em “i” nos livros lidos, liberada de “seu sentido original no fio do tempo” adquire um valor totalmente outro. O pequeno “i” traz um potencial de escrita que desencadeia a produção de poemas e de outros textos. Potencial que fala de uma “potência próxima”, onde o “i” atua como catalizador, que aproxima o texto assinalado do texto produzido pelo poeta. Mesmo que o texto assinalado tenha perdido o seu sentido original, ele age, silenciosamente, no poema ou no texto inventado pelo poeta.
Além disso, para Celan, o livro, tinha um caráter transformador. Lembremos de Kafka em carta a seu amigo Oskar Pollak, em 1904:
(…) acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, porque o estamos lendo? (…) Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, (…) Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós É nisso que eu creio.[25]
Na correspondência a Gisèle Celan-Lestrange, encontramos Celan “escritor” de língua francesa. Podemos perceber o desdobramento de sua palavra poética nas traduções que começavam a se desenhar, ou nos poemas que ele endereçava à sua mulher. Esses poemas eram acompanhados “d’un mot à mot français”. Aqui descobrimos, pela primeira vez, Celan tradutor de Celan! Na verdade, Celan, muitas vezes, traduzia os seus versos do alemão para o francês para que Gisèle pudesse entendê-los. Na carta de 13 de agosto de 1952, Celan se mostra bem animado com a possibilidade de traduzir todos os seus poemas para o francês. Diz a carta:
(…) Mas é claro, eu traduzirei para você todos os meus poemas: já, em meus passeios, eu os ausculto um pouco, para ver para onde eles ressoarão em francês – eles são menos teimosos do que eu havia pensado. [26]
Este otimismo dará lugar a uma desconfiança em relação às traduções de seus poemas para o francês, levando-o a pensar que há uma impossibilidade de traduzi-los. Quinze anos mais tarde, na carta 27 de dezembro de 1966, quando Celan está escrevendo “Wenn ich nicht weiss, nicht weiss” (Quand je ne sais pas, sais pas), poema do futuro livro Fadensonnen (Soleils de fil), ele dá sua primeira impressão sobre este poema: “Eu escrevi um poema, duro, difícil de traduzir”.[27] Sabemos, a partir do testemunho de sua esposa Gisèle, que Celan começa a se mostrar bem pessimista quanto ao caráter traduzível de seus poemas para o francês. Então, ele toma a posição de não mais traduzi-los integralmente para sua mulher. Renuncia em parte ao gesto de “tradutor” e opta por enviar uma lista de palavras traduzidas. Esta lista servia como possibilidade de sua esposa aprender um pouco de alemão. Fazia parte de uma “lição de alemão”[28]. É nesta mudança de atitude que o poeta nos mostra o manejo singular que tem com as duas línguas: a francesa e a alemã. Assim, ao enviar uma carta contendo um poema, na carta seguinte ele envia um dicionário, que chamarei aqui de “Dicionário Celan”. Em geral, ele não vinha completo obrigando à Gisèle a consultar o dicionário de alemão-francês.
Este dicionário criado por Celan também trazia palavras inventadas em francês, a saber, traduções franco-celanianas. Este momento de invenção celaniana está sendo considerado aqui no texto como um momento de “passagem ao poético”.
Na carta do dia 2 de abril de1966 (n. 396) ele envia um poema e logo na carta seguinte ele manda o “Dicionário Celan”. Vamos transcrever o poema em alemão e depois trazer a tradução feita pelo organizador da correspondência, Bertrand Badiou, que segue, em parte, o dicionário enviado para Gisèle. A seguir, vamos transcrever a carta seguinte, do dia 3?. 4. 1966 (n.397), que traz o “Dicionário Celan”; e depois reescreveremos a tradução do poema, a partir deste Dicionário, além, é claro, de nos servir, com as palavras faltantes, de um dicionário comum de alemão-francês. Este poema vai nos dar a diretriz de nosso trabalho, no que se refere à questão da língua, em seu movimento de cicatricement, [29]que será melhor desenvolvido no capítulo seguinte. Ele diz nesta carta: “(…) Hoje, eu te beijo, antes de voltar, com as palavras (necessárias)” [30] As palavras de seu dicionário nos serão também necessárias para nos aproximarmos da escrita melancólica de Celan, escrita que traz uma cicatriz sempre em movimento. Vamos ao poema:
- 4. 66
_____
das Äusserste – l’extrême
nicht zu Entwirrende
Das Narbenwahre, verhakt
ins ÄuBerste, nicht zu
Entwirrende,
Längst
ist der Schautanz getanzt,
der schwergemünzte,
hier in der Einfahrt,
wo alles noch einmal geschieht,
endlich,
heftig,
längst.
_______
2.4.66
An Gisèle[31]
A tradução de Bertrand Badiou ficou assim:
O verdadeiro cicatricial
enganchado
no extremo, inex-
tricável,
Há muito tempo
Terminou-se de dançar a dança-espetáculo,
o peso a ser pago,
aqui, na entrada dos carros,
onde tudo acontece uma vez mais,
enfim,
com violência,
há muito tempo.
- 4. 66
A Gisèle[32]
O “Dicionário Celan”, contido na carta do dia 3. 4. 1966 (n. 397) vem com as seguintes indicações de tradução, que manterei no original:
Die Narbe – la cicatrice\ narbenwahr – vrai comme une cicatrice\ vrai-“cicatricement”\ verhakt – accroché\ der Haken – le crochet\ das ÄuBerste\ – l’ Extrême\ entwirren: antonyme de verwirren – brouiller, [sic]\ das nicht zu Entwirrende – impossible à dévider, à sortir de la confusion\ längst\ il y a bien longtemps\ der Schautanz – la danse-“show”, [sic]\ die Schaumünze – la médaille (enfin: démonstrative) \ münzen – frapper monnaie \ die Einfahrt – l’entrée (pour automobilistes?) \ heftig – avec violence. [33]
Permanecendo fiel ao “Dicionário Celan”, vou traduzir a primeira estrofe da seguinte forma, subvertendo a tradução feita por Badiou para o francês: “O verdadeiro-cicatriz sempre em movimento, enganchada / no extremo, / impossível de se desenredar”. [34] Também podemos introduzir na primeira estrofe, no primeiro verso, uma variação linguistica : em vez de traduzirmos por « O verdadeiro-cicatriz sempre em movimento » , colocamos « O verdadeiro-cicatrizmente ».
Então, introduzindo o cicatrizmente, a primeira estrofe do poema ficaria da seguinte maneira :
O verdadeiro-cicatrizmente
enganchado
no extremo,
impossível de
desenredar
Na carta seguinte, do dia quatro de abril de 1966, Celan avisa a Gisèle que provavelmente fará algumas mudanças no poema como é de seu feitio. E acrescenta: “Eu gosto muito de decompor meus poemas, voce sabe bem”.[35]
No outono de 1952, Celan envia uma carta-poema ( a de n.23) que nos remete a Novalis que nomeia toda carta como um poema. Além disso, nós a reconheceremos como carta-poema-tradução, para sermos mais fiéis a construção poética de Celan, porque o poeta, aqui, também se apresenta tradutor de seus poemas. Escreve um poema em alemão e o traduz palavra por palavra:
Ich hörte sagen, es sei
im Wasser ein Stein und ein Kreis
und über dem Wasser ein Wort,
das den Kreis um den Stein legt.
Ich sah meine Pappel hinabgehn zum Wasser,
ich sah, wie ihr Arm hinuntergriff in die Tiefe,
ich sah ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn.
Ich eilt ihr nicht nach,
ich las nur vom Boden auf jene Krume,
die deines Auges Gestalt hat und Adel,
ich nahm dir die Kette der Sprüche vom Hals
und säumte mit ihr den Tisch, wo die Krume nun lag.
Und sah meine Pappel nicht mehr.
[Paris?, automne 1952]
Ouvi dizer que havia
na água uma pedra e um círculo
e sobre a água uma palavra
que dispõe o círculo à volta da pedra.
Vi o meu choupo descer para a água,
vi o seu braço mergulhar no fundo,
vi as suas raízes suplicar noite voltadas para o céu.
Não corri atrás dele,
limitei-me a apanhar do chão essa migalha
que dos teus olhos tem a forma e a nobreza,
tirei-te do pescoço o colar daquelas falas
e debruei com ele a mesa onde agora estava a migalha
E deixei de ver o meu choupo.[36]
É curioso que João Barrento tenha traduzido o verso celaniano ich sah ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn por “vi as suas raízes suplicar noite voltadas para o céu”, fazendo uma junção do suplicar com noite que é diferente da tradução de Celan, e perde, de acordo com o meu ponto de vista, parte do movimento trazido pelo poeta. Celan prefere traduzir seu verso em alemão (ich sah ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn) para o francês – “je vis ses racines se dresser vers le ciel pour implorer/ (qu’il y ait) de la nuit” – transformando-o em dois versos, tensionando as raízes em direção à noite. Traduzo: “Vi suas raízes se erguerem em direção ao céu para implorar/ que haja noite”; versos que trazem uma respiração que a tradução de Barrento não evidencia. Há um movimento das raízes (do choupo[37], em uma clara referência ao sujeito-poeta), com esforço, endereçadas ao céu, esperando uma resposta que pudesse confirmar que haverá noite. No entanto, ele só recolhe, em silêncio, uma “migalha”, perdendo de vista a “sua árvore” (as suas raízes). Isto nos leva em direção a uma afirmação que Celan faz em sua correspondência para Gisèle: “eu sou um homem sem raízes”.
Nas últimas cartas a Gisèle, Celan retoma o oficio de tradutor de seus próprios poemas. Talvez, deixando no ar um indício de que seus poemas podiam ser traduzidos para o francês.
Após a morte de Alberto Camus, Celan preparou um texto para ser traduzido pelos seus alunos da École Normal Supérieure. O texto de Camus escolhido foi “La mer au plus près. Journal de bord”, do livro intitulado L’Eté de 1954. Na carta n. 114 de “[Paris] quarta-feira de manhã [6.1.1960]”[38], ele escreveu: “A morte de Camus: é, uma vez mais, a voz do anti-humano, indecifrável. Se nós pudéssemos pensar com os dentes!”[39]. No mesmo dia, Paul Celan escreveu uma carta ao poeta René Char (não enviada) falando a respeito da morte de Camus:
René Char! Eu gostaria de lhe falar, neste momento, que é o de seu sofrimento, qual é o meu sofrimento. O tempo luta com tenacidade contra aqueles que ousam ser humanos – é o tempo do anti-humano. Vivos, nós estamos mortos, nós também. Não há o céu da Provence; há a terra, aberta, sem hospitalidade; só há isso. Não há consolo, não há palavras. O pensamento – este é um caso de dentes. Uma palavra simples que eu escrevo: coração. Um caminho simples: aquele[40].
“O pensamento como um caso de dentes” e “pensar com os dentes” nos remete a um poema do livro póstumo Schneepart (publicado em 1975)[41]:
FALAR COM OS BECOS sem saída
ali defronte,
da sua
expatriada
significação – :
mastigar
este pão, com
dentes de escrita[42].
Os versos que nos interessam aqui são: “mastigar/ este pão, com/ dentes de escrita”. De que dentes Celan estaria falando? Seria ainda uma última possibilidade do homem falar, antes de ser tomado pelo que ele chamou de anti-humano? Os dentes de escrita remetem à escrita, ela mesma, enquanto possibilidade de dizer alguma coisa ainda, apesar de sua condição de poeta expatriado. Lembro aqui os versos do poema “Argumentum e silentio”, feito em homenagem a René Char, que além de tocar na questão da noite, agora “sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar”, fala também de uma junção da noite com o “dente venenoso” de escrita causando dor:
(…)
A ela, a noite,
sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar,
a ela, ganha pelo silêncio,
a quem não gelou o sangue quando o dente venenoso
atravessou as sílabas[43].
O ‘dente venenoso atravessou as sílabas’ traz uma referência velada ao ‘real’da Shoah, que nos faz pensar em uma espécie de ‘raiva’de dar ao ato da escrita uma dimensão de ‘real’. No extremo desta expressão, o poeta faz sua experiência poética em carne viva. Esta experiência precisa de algo que estanque o sangue, que alivie a angústia de alguma forma.
Saiba quem foi Paul Celan
https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Celan
[1] “(…) il y a une chose que ce séjour m’a, une fois de plus, apprise c’est bien celle-ci: la langue don’t je fais mes poème ne dépend en rien de celle que l’on parle ici ou ailleurs, mes angoisses à ce propos, alimentée par mes ennuis de traducteur, sont sans objet. S’il y a encore des sources d’où pourraient jaillir de nouveaux poèmes (ou de la prose), c’est en moi-même que je les trouverai et non point dans les conversations que je pourrais avoir en allemand, avec de Allemands, en Allemagne”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 83.
[2] ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel. Correspondência (organização, introdução e notas: Marcos Antonio de Moraes). São Paulo: Edusp, 2000. p. 448.
[3] “Vous (il s’agissait des poètes français, occidentaux) êtes chez vous, dans votre langue, vos références, parmi les livres, les oeuvres que vous aimez. Moi, je suis dehors…” BONNEFOY, Yves. Le nuage rouge. Paris: Mercvre de France, 1992. p. 327.
[4] BLANCHOT, Maurice. Le Dernier à parler. Paris: Fata Morgana. 1984. p. 24.
[5] DAIVE, Jean. La Condition d’infini – n. 5. Sous la coupole. Paris: P.O.L, 1996. p. 21.
[6] CELAN, Paul. “Resposta a um inquerito da Librairie Flinker, Paris” (o objetivo do inquérito era o “problema do bilinguismo”). in Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Op. cit. p.69.
[7] GIRARDOT, Rafael Gutierrez. Bogotá: Gaceta de Colcultura No. 27, 1980.
[8] Cito:“Je n’ai jamais su où j’étais. Quand j’étais en Egipte, j’étais en France. Depuis que je suis en France, je suis ailleurs. Encore le problème de l’étranger. L’étranger ne sait plus quel est son lieu. Il n’y a que la langue. Si un étranger vient dans un pays parce qu’il en choisit la langue, il y trouve son lieu. Mais il trouve son lieu où? Simplement dans cette langue. Or cette langue qu’il ne cesse de perfectionner n’est plus la langue qui se parle autour de lui. Son lieu, c’est le lieu de la langue: le livre”. “L’étranger d’Edmond Jabès”. Declarações recolhidas por André Velter. Le Monde. Paris, 28/04/1989.
[9] “(Ici, pensée pour toi encore, le souvenir de Saint-John Perse et de son ‘Chant de l’Alienne’”.) CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 387
[10] “‘Alien Registration Act.’: ‘Rue Gît-le-coeur… Rue Gît-le-coeur…’ chante tout bas l’Alienne sous ses lampes, et ce sont là méprises de sa langue d’Etrangère”. (Saint-John Perse. Exil, seguido de Poème à l’Etrangère, Pluies, Neiges,Paris, Livraria Gallimard, 1946, p. 37). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaireset illustrations. Op.cit. p. 293.
[11] “les cuivres, réécrits de votre main, échangent leurs messages, ‘lestrangement’”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p.490.
[12] L’étranger quer dizer o estrangeiro; o estranho.
[13] “surtout à l’étrangeté. (…) A ce sujet, PC note en 1968 cette réflexion de Paul Valéry: ‘Toute vue des choses qui n’est pas étrange est fausse’”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Ibidem. p. 338.
[14] “! Qu’ai-je encore fait? (question pertinente, car je ne me trouve pas, comme vous, sur une ‘montagne magique’, mais dans la plaine). Oh, pas grand-chose, hélas.” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 32.
[15] HARTMAN, Geoffrey H. “Holocausto, Testemunho, arte e trauma” in Catástrofe e Representação (organizadores: Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva). São Paulo: Editora Escuta Ltda. 2000. p.229.
[16] Lenz, personagem de Büchner. Referência também ao discurso de Celan “O Meridiano” quando recebeu o premio Büchner. O texto de Büchner também começa com Lenz subindo a montanha. Nota da tradutora Vera Lins.
[17] LINS, Vera. “Conversa na Montanha” (tradução). in Poesia e Crítica: Uns e outros. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005. p.35.
[18] Ibidem. p. 35-36.
[19] Ibidem. p. 35.
[20] Ibidem. p. 36.
[21] Ibidem. p. 36.
[22] “Je lis beaucoup pour pouvoir un jour écrire un nouveau livre pour vous”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.35.
[23] “Bien des poèmes, aphorismes ou pensées sont nés dans les marges mêmes des livres. De nombreuses pages des livres de la Bibliotèque de PC constituent de véritables manuscrits”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Op. cit. p.70.
[24] “PC signe d’un petit ‘i’ souligné deux fois. C’est ainsi qu’il signale, pour lui-même, souvent dans la marge d’un livre, une idée, une source d’inspiration, un mot ou une phrase relevés lors d’une lecture, une esquisse plus ou moins élaborée de traduction ou de poème, une réflexion de nature aphoristique ou spéculative. En septembre 1957, GCL écrit à Klaus Demus au sujet de l’initiale du mot ‘idée’: ‘Je sais qu’il lit beaucoup et qu’il reprend et réfléchit sur ses ‘i’ (idées qu’il note au fur et à mesure pour les travailler et les faire évoluer dans la suíte).’ Mais cette abréviation s’est très certainement libérée de son sens originel au fil du temps, pour acquérir une valeur idiosyncrasique. Le ‘i’ (precede et suivi d’un tiret ou non) indique une source d’inspiration ou un texte en puissance – parfois même un poème déjà pleinement existent, et qui se publié tel quel, après simple retrait de ce signe. En signant de la sorte, PC s’identifie pour ainsi dire à la poésie, ou tout au moins à l’ ‘idée poétique’ (cf. ‘Je suis la poésie’, propôs de PC rapporté par Jean Bollack dans Pierre de coeur, s.l., Pierre Fanlac, 1991, p.9)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires er illustrations. Op.cit. p.90.
[25] KAFKA, Franz. Carta aos amigos. São Paulo: Nova Época Editorial Ltda. p.9
[26] “Mais oui, je vous traduirai tous mes poèmes: déjà, en me promenant, je les ausculte un peu, pour voir par où ils résonneront en français – ils sont moins têtus que je ne l’avais pensé.” in CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 34.
[27] “J’ai écrit un poème, dur, difficile à traduire”. Ibidem. p. 491.
[28] “leçon d’allemand”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires er illustrations. Op.cit. p. 71.
[29] Podemos pensar aqui em uma cicatriz sempre em movimento.
[30] “(…)! Aujourd’hui, je t’embrasse, avant de revenir, avec les mots (nécessaires!)”. CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p.415.
[31] CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 415.
[32] “Le vrai cicatriciel,/ accroché/ dans l’extrême, in-/extricable,/ Depuis longtemps/ on a fini de danser la danse-spectacle,/ la lourdement monnayée,/ ici, à l’entrée des voitures,/ où tout arrive encore une fois,/ enfin,/ avec violence,/ depuis longtemps./ 2. 4. 66/ A Gisèle”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 415-416.
[33] CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 416.
[34] Versos do poema, a partir da tradução francêsa, modificados a partir do dicionário Celan: “Le vrai- “cicatricement” accroché/ dans l’extrême, impossible à devider”. Ibidem. p. 416. Também podemos introduzir na primeira estrofe, no primeiro verso, uma variação linguistica : em vez de traduzirmos por « O verdadeiro-cicatriz sempre em movimento »
[35] “J’aime bien me défaire de mes poèmes, tu le sais bien” Ibidem. p.398.
[36]“J’entendis dire qu’il y avait/ dans l’eau une pierre et un cercle/ et au-dessus de l’eau une Parole/ qui met le cercle autour de la pierre./ Je vis mon peuplier descendre (aller vers le bas) vers l’Eau,/ je vis comme son bras plongea dans la profondeur pour saisir,/ je vis ses racines se dresser vers le ciel pour implorer/ (qu’il y ait) de la nuit./ Je ne lui courus pas après,/ je ramassai de par terre cette miette/ qui a la forme et la noblesse de ton oeil,/ je détachai de ton cou la chaîne des dits/ et en bordai la table, où/ maintenant gisait la miette./ Et ne vis plus mon peuplier” . Tradução para o francês feita por Paul Celan. Quando Celan publica este poema, intitula-o “Ouvi dizer”. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 37. (poema do livro Von Schwelle zu Schwelle (De limiar em limiar) de Paul Celan de 1955). Aqui, estou utilizando a tradução feito por João Barrento a partir do original alemão.
[37] Lembro aqui que choupo é uma árvore ornamental, da família das Salicáceas, de flores pequenas e casca rugosa; choupo pode ser também álamo.
[38] “ [Paris] mercredi matin [6.1.1960] ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 112.
[39] “La mort de Camus: c’est, une fois de plus, la voix de l’anti-humain, indéchiffrable. Si l’on pouvait penser avec ses dents!”. Ibidem. p. 112.
[40] “René Char! Je voudrais vous dire, en ce moment, qui est celui de votre peine, quelle est ma peine. Le temps s’acharne contre ceux qui osent être humains – c’est le temps de l’anti-humain. Vivants, nous sommes morts, nous aussi. Il n’y a pas de ciel de Provence; il y a la terre, béante, et sans hospitalité; il n’y a qu’elle. Point de consolation, point de mots. La pensée – c’est une affaire de dents Un mot simple que je écris: coeur. Un chemin simple: celui-là”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Op. cit. p. 130.
[41] “A parte da neve”.Tradução feita por João Barrento. CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. Cit. p. 163.
[42] CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 169.
[43] CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Ibidem. p. 69.