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A poesia de Dolhnikoff

Desde que eu li o então último livro de Luis Dolhnikoff, As rugosidades do caos, passaram-se quase dez anos em que o mundo se “eviscerou” e, como diz o poeta (Estudo crítico): “… os poetas metem as mãos nas vísceras/ou na merda/dos seus versos anais/ai de mim/que poeta vim/a ser em tempos tão ásperos/mas ainda espero/por amenos amores/e ao menos uma/lustrosa resenha release(…)”.

Pois aqui vai um texto, sem que eu tenha lido o “release”, uma vez que recebi convite da revista Sibila para escrevê-lo com certeza  a resenha que o livro merece, e sim,  lustrosa,  –“qualidade de corpos cuja superfície reflete a luz”, diz o dicionário ( Hoepli. Ed. It.) –, porque nesses dez anos a poesia de Luis esmerou-se por refletir não apenas as nuances dessa luz, mas seus estilhaços, seus talhos, seus ralos…  até quase apagar o brilho fraco da esperança, “vislumbres de beleza” que ainda teimam em não morrer. “Vivemos na época da paronomásia” dizia Antonio Candido, e Luis jogou bem com o sentido dessas trocas de palavras de mesmo som em muitos poemas, como – exemplarmente — no que ele chamou Névoa semântica: “… a névoa evapora do lago/ou sobre sua fria humidade/se condensa?  /se dele parte/dele é parte/ainda que separada…/se dele parte/em parte é ele/reflexo fosco/de um corpo claro…”. Mas não só de trocadilhos, é claro, vive sua poesia. Há outros procedimentos que ele combina: ironia, enumeração, metáfora – esta, especialmente – que ele define como o desvelamento de uma possível verdade além da verdade possível (Em lugar de um prefácio) ou operações semânticas realizadas via sintaxe: “ Que matéria dará forma/à forma que se transforma/de uma nuvem/ou à nuvem de formas/de uma metáfora? (p.39)” ; “a dor de saber/e o saber da dor; alguns coágulos de amor/ coágulos de algum amor ( p.269)”; “possível poema de amor/poema de amor possível (p.205)”.

Não são apenas as palavras que se retomam umas às outras, mas os próprios poemas, ora os dele mesmo: Introdução/Reintrodução; A mesma /A mesma 2; Toda teodiceia/Outra teodiceia/Terceira teodiceia/Última teodiceia…, ora os que ecoam a  voz dos outros: “ a carne é triste, hélas/e lá nenhuma alma existe (p.102)”; “Só o que sei /é do que somos feitos:/”da matéria dos/ sonhos”/ disse Shakespeare/ a mesma/dos pesadelos (p.64)”; “brasil/meu brasil/extremamente brasileiro/o país do passado permanente/o país do eterno presente (p.48)”; “e mais escreveria se não fora/para tão longa dor tão breve a vida(p.35)…”.

Entre os poemas longos destaca-se o trágicômico dos acidentes que acometem o Brasil, desde Portugal até hoje (O autor) – et pourtant –  que levam o autor ao poema Questões de filosofia : “e  eu sei/de uma só coisa/e se eu sei/ de alguma coisa/alguma coisa/existe/além de mim/para eu dela saber/   se algo existe/e sei disso/eu e a realidade/existirmos… “ e a Meditações: “a mente/é ela mesma/a consciência/   o caminho/não é a meditação/ mas a demência…”.

Na sequência integrada que é o livro, passa-se da Filosofia às Divagações sociológicas, em prosa, que não é poesia, lembrou o autor (Em lugar do prefácio): “poesia em prosa” e “prosa poética” são prosa sem narrativa”. Divagações essas que começam com  uma ácida catilinária  contra a mediocridade que nos assola e  que conduzem , num rompante de ironia, o poeta previamente desengajado (p.61) a se reengajar:“(p.229):”glória/aleluia/hurra/hosana/salve/saravá/viva/   viva/o capitalismo/  que ele leve logo essa merda toda para o abismo” ;  Mas, enquanto durarem, Os trabalhos e os dias: “a noite é um giro da terra / para longe / do sol/ o dia/ o mesmo/ para perto/ até que tudo pare/ quando o sol exploda/ a noite acenda/ o tempo acabe/ mas se acabará/ para que tanto trabalho/ tanto barulho?/ Para que enquanto dure/ a dor de saber/ o medo/ a memória/ a amargura/ algum sabor mais doce/ passe entre o que não perdure”.

 

 

Impressões do pântano

Código978-65-88672-02-0

Editora Quatro Cantos

https://www.editoraquatrocantos.com.br/

 


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.