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PEQUENA APRESENTAÇÃO E MENOR ANÁLISE DO PEQUENISMO

O pequenismo, como diz seu nome, é um ismo. Uma ideologia. Não em defesa do pequeno ou de seu par arcaicamente hétero, a pequenez. Mas do apequenamento. Não por acaso (mas por ação, intenção e resolução), o pequenismo é grandemente democrático, enormemente inclusor e imensamente igualitário. O pequenismo não é uma manifestação do “espírito da época”. Ele é esse espirito. A época não tem outro.

O pequenismo é uma ideia, mas também uma prática. O pequenismo é uma ideologia e um movimento. E um desejo. O pequenismo é a última, a menor e a menos utópica das utopias. A mais pragmática e pragmaticamente satisfatória. O pequenismo é uma conquista. Uma pequena conquista, somente superada em pequenez pela ingente luta por sua manutenção. Por isso agem e reagem sem descanso os pequenistas.

Há uma grandeza intrínseca no pequenismo: o ser grandemente avesso à grandeza. A grandeza é injusta.

O Brasil, país justíssimo (ao menos muito bem ajustado a si mesmo), é um gigante do pequenismo. Gigante pela própria natureza e anão por sua própria construção. Não, não é “culpa” do imperialismo, do colonialismo, do patriarcalismo, do heterossexualismo, do halterofilismo ou do “bloqueio” a Cuba, mas do brasilismo. Culpa e obra.  Culpa porque obra. A laboriosa e multissecular construção do melhor e maior pequenismo da história moderna é uma conquista, que não deve nem pode ser negada. Porque é inegável. E porque essa pequenez é uma construção, um “projeto vitorioso” (de apequenados potentados provincial-provincianos sentados e assentados nos poleiros do poder provinciano-provincial, e de uma cidadania manca, anêmica e inânime), para falar como a historiografia, e não um acidente histórico ou um mal do mau imperialismo etc., ela (nossa grandiosa pequenez) é tão grandemente difícil de desconstruir. Nossa pequenez é sólida.

Há países que dedicam enormes esforços para identificar, apoiar e impulsionar seus talentos. O Brasil especializou-se em desperdiçá-los. É, assim, o produto da soma do médio, do mediano e do medíocre. O todo é menor que a soma das partes. O resultado é o nanismo, o bananismo, a banalidade, a inanidade, a inapetência, a incompetência e a desnutrição. Não se trata de “complexo de vira-lata”. Não é complexo. É simples vira-latismo.

Não é difícil apontar o mindinho para evidências incontornáveis da imensidão dessa mansidão, sua clareza explícita e sua longa sombra. Zero Nobel. 1 Oscar. Medalhas olímpicas sempre em patamar africano (sic). Cidades invariavelmente cercadas de favelas. Distribuição de renda incivilizada. Corrupção desenfreada. IDH de merda. Proporção de saneamento básico de bosta. Produtividade idem. Educação fundamental fundamentalmente uma caca.

Por motivos não debatidos o suficiente nem compreendidos minimamente, a literatura brasileira ao longo de todo século XX foi, paradoxalmente (com o perdão da rima paupérrima), das mais importantes do mundo. Das melhores. Das maiores. O século literário brasileiro começa com o fim, que é o ápice, da obra de Machado, Memorial de Aires (1908). Menos inventivo que as memórias de Brás Cubas, paga e sobrepaga o preço pela abrangência. Pelas abrangências. Pela abrangente solidez e a não menor lucidez. A serenidade sólida e a ironia lúcida da personagem e de sua análise de si e do país têm a força da convicção consolidada pelos fatos, pela observação, pela reflexão e pela experiência. Neste sentido e nessa forma, é, para não fugir do clichê, um monumento. Do tipo horaciano, feito de palavras e “mais perene que o bronze”. Ou: se buscas um monumento, olha em torno. E não verás outro, pois tudo é pântano. À exceção do que do pântano se destaca, no sentido denotativo de se descolar, Mário, Oswald, Carlos, João, Graciliano, Rosa, Clarice. Há uns poucos outros, que são, no conjunto, muitos. Bastantes para uma grande literatura, de nível mundial, se a expressão não ofender em demasia a enorme sensibilidade dos pequenistas sempre de plantão e lhes causar alguma azia. De Machado de Assis a João Cabral, poucas literaturas se nos comparam.

Mas eis que voltamos ao lugar que onde não saímos, apesar de tudo. Prova disso é o termos voltado, pois do contrário a grandeza ter-se-ia imposto e não poderíamos retornar à pequenez, porque esmagada.

Uma das maiores pequenezas atuais do histórico nanismo brasílico é justamente (sic) a da literatura. Na prosa, se não em termos críticos (a crítica não está mais em estado crítico: morreu]), ao menos (!) em termos mercadológicos, os maiores nomes são Itamar Vieira Júnior e Paulo Coelho, os herdeiros, portanto, ou por tão pouco, de Machado e Rosa (para não falar de outro Vieira, o padre imperador, que era brasileiro e baiano por adoção [português, aqui chegou aos 10 anos e aqui ficou a maior parte de seus 90 anos]). Na poesia… Na poesia impera, inconfrontado, não o maior, o que seria pouco, pequeno, mas o mais absoluto e absolutista pequenismo. O pequenismo em estado de arte.

“Poetar” é fácil, não dá trabalho (escrever romances dá) e ainda fornece algum sentido a vidas faltas dele. Vida social, integração grupal, certo reconhecimento, escape do inferno-sou-eu-mesmo do anonimato, prêmios, palestras, podcasts, mesas redondas, resenhas quadradas, algum status, mesmo se pequeno. E ainda permite a “expressão” dos sentimentos, máxima manifestação de um direito humaníssimo, incluindo a indignação ideológica invariável e invariavelmente identitária, que se tornou (a indignação [ao lado da inação]) outra pequena ideologia, irmã xifópaga do pequenismo: o indignacionismo.

A poesia, lugar imaginário e imaginado, real e surreal, ideal e pragmático, virtual e material, tudo-que-se-queira (à exceção do que querem os que não querem que seja o que não é), foi ocupada diligente, militante e conscientemente pelos pequenistas. É agora seu feudo inexpugnável, com parte de suas largas portas de entrada espalhadas pelo país, firmemente instaladas em infinitos departamentos de letras de universidades cada vez menos universalistas. Sejamos tribalistas mais uma vez.

Além (aquém) disso, a poesia tornou-se de novo e de velho um pequeno brinquedo da pequena e da grande burguesias, que lhe abrem com elegância, sorrisos e tapinhas nas costas outras portas, como nos tempos alvissareiros de nossos bisavós parnasianos, notadamente em São Paulo. Em convenientes convescotes, saraus sem salsa nem sal, lançamentos a pouca distância, mesas polidas de bares gourmet, festivas festas literárias e festivais idem, todos devidamente noticiados indevidamente com pequeno alarde e grande alegria em velhas redações de velhos jornais, ela (a bela e aliterante burguesia paulistana-mas-não-só) se diverte, se distrai e se embeleza mais. Alguns de seus membros se aventuram, eles mesmos, em poetas. Para participar da festa mais imersivamente. Outros criam editoras para seus “pares”, especializadas em poesia inespecífica. É a bela burguesia nativa retomando (ao lado do Estado leiteiro e da oferta delivery de seus úberes culturais municipais, estaduais e federais) o histórico papel do mecenato, que pertenceu outrora à nobreza italiana renascentista. E assim se redime, se resgata, se revira, se resolve, no palco histórico da arte ocidental, na cena artística da história nacional, o menor grande país do mundo. Não foi, afinal, pela música popular ou pelo futebol, hoje apequenados. Viva a burguesia. Viva a hamburgueria. Viva a poesia.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).