“Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.” [1]
(Luís de Camões, Os Lusíadas)
“Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma coisa se lia no mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta História será o silêncio de todas as histórias.” [2]
(Antonio Vieira, Livro Anteprimeiro da História do Futuro)
Nem Camões, nem Vieira propõem as artes como tema fora da própria prática em que são os melhores que conheceu a língua portuguesa. Não são, nenhum deles, preceptistas, embora pelo menos Vieira o pudesse ser, espírito adestrado nas lides escolásticas. Entretanto, vivido e louvado em meio a uma das cortes mais refinadas de seu século, a do palazzo romano de Cristina da Suécia, o jesuíta passa olimpicamente pelas questões mais gerais a propósito das artes, e mesmo não se surpreende em suas correspondências familiares qualquer afeto mais aprofundado pelo assunto. Parece sempre muito mais preocupado com alguma recôndita notícia do avanço do turco ou a respeito das intrigas da provinciana corte portuguesa do que com as questões culturais ou o ambiente intelectual daquilo que hoje chamaríamos de “barroco romano”, já às vésperas do movimento da “Arcádia”. Arte que lhe interessa comentar é essencialmente a sua, de pregador cristão, cuja finalidade está em semear as palavras de Deus e fazê-las frutificar no coração dos fiéis e no corpo místico do reino.
Compreender o que pensam sobre a arte, assim, obriga a repassar os modos efetivos como a empregam, os seus escritos tão vastos e diversos, sem ter a priori uma entrada necessária ou óbvia — a não ser, talvez, para o caso de Vieira, o célebre Sermão da Sexagésima, uma espécie de meta-sermão (se não fizer violência o termo) em que comenta o “rumo particular” que imprimira aos seus. Infelizmente nunca chegou a nossas mãos o Pregador e Ouvinte Cristão, livro que Vieira, no prólogo ao leitor da Primeira Parte dos Sermões, refere ter ideado, e em que, segundo afirma, veríamos “as regras, não sei se da arte, se do gênio, que me guiaram por este novo caminho” [3] . Tampouco podemos contar — pois hoje já não é sustentável a sua atribuição a Vieira — com a leitura de certa Retórica Sagrada ou Arte de Pregar, supostamente encontrada em seus papéis, e que apareceu em Lisboa em 1745 [4] .
De qualquer maneira, uma pista óbvia, para restringir as inúmeras direções possíveis e, ao menos, dividir o labirinto, é assinalar certos pontos genéricos que Camões e Vieira guardam em comum, cada qual, entretanto, às voltas com o seu próprio ofício e tempo, muito diferentes: poeta, o quinhentista; pregador, o que vive no século XVII.
I
O primeiro desses pontos evidentes é a própria distinção — repleta, entretanto, de árduo sofrimento e imensa mágoa — que tanto Camões quanto Vieira postulam para si em terreno pátrio: a luz de seus engenhos, segundo pensam, brilha quase peregrina nas trevas do tempo. Eis o que diz Camões, em quem o fogo do demônio amoroso do neoplatonismo florentino queima igualmente com o ressentimento local:
“Pois se o desejo afina
Uma alma acesa tanto
Que por vós use as partes de divina,
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Bétis me ouças, e o Tibre me levante;
Que o nosso claro Tejo
Envolto um pouco o vejo e dissonante.
“O campo não o esmaltam
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltam
Ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
Que o Sol, que em vós está,
Na escuridão dará mais claro lume.” [5]
Quanto a Vieira, julga-se bem apartado, com sua arte de pregar, do caminho “mais seguido e ordinário” dos “estilos modernos” tão apreciados na época por oradores sacros e ouvintes agudos. O púlpito, como acusa no Sermão da Sexagésima, tornou-se palco de “comédia”, pela afetação culta dos pregadores contemporâneos:
“Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se, passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria, por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um profeta profano e gentio que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes sobre cristão religioso!” [6]
E se a falta de decoro, paradoxalmente, granjeia para tais oradores da moda os aplausos do auditório tão desvanecido quanto enganado, para o pregar mais conveniente faltam ouvidos, estima e favor:
“O pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o apóstolo: há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mudo, mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo.” [7]
Para o jesuíta, mais que impróprio, seria indigno submeter o juízo do sermão ao gosto do auditório — já por ser gosto, faculdade mais da vontade que do intelecto, incapaz de avaliar a justiça com que se repõem as palavras sagradas, aspecto mais irredutível da arte de pregar:
“Pois o gostar ou não gostarem os ouvintes! Oh! Que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo quando trata de lhe dar saúde? Sarem, e não gostem; salvem-se, e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas.” [8]
Um segundo ponto comum que vem logo à mente quando se pensa em Camões e Vieira é que, cada um em relação ao seu próprio gênero, compreende a sua arte como estímulo, louvor e documento das proezas memoráveis dos antepassados, de virtudes sublimes dos heróis, e de esperanças futuras do Reino. Proezas, virtudes e esperanças que o gênio apenas, encendido na Graça e Fúria divinas, logra vislumbrar claramente, e busca trazê-las, com arte rigorosa, à vista de todos, de modo a movê-los em direção a estes altos princípios, que são igualmente desígnios providenciais.
Em ambos, supostos sempre tanto o engenho natural quanto o domínio técnico das regras, arte é divulgação do feito extraordinário e, também, anúncio profético de outro maior e mais perfeito, que apenas após a intervenção do poeta ou pregador poder-se-ia conceber com nitidez. Arte é, para estes dois monstros do engenho, publicidade de um passado elevado e vibrante, e, ao mesmo tempo, fiança de uma história futura ainda mais alta que ela descobre embutida ou figurada na antiga. Ao revelar esse futuro e torná-lo presente em sua própria perfeição, tal arte antecipadamente participa de sua existência e assegura a sua vinda.
Camões o diz, por exemplo, com modéstia afetada, na celebérrima Invocação do Primeiro Canto dos Lusíadas, quando postula para o seu “novo engenho” a faculdade de efetuar um canto cuja sublimidade alcança o preço do feito que se dispõe a divulgar:
“E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
“Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda:
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.” [9]
Também o afirma naquela segunda invocação, no Canto Terceiro, desta vez para dar voz concertada à narração de Vasco da Gama, exigida pela curiosidade deslumbrada do Rei de Melinde, ansioso por conhecer detidamente “as obras Portuguesas singulares”. Novamente aqui é o fino desejo do intérprete, ordenado em canto pela Ninfa, que pode, ele apenas, descobrir e espalhar o verdadeiro merecimento dos lusitanos:
“Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum receio
Que se escureça o teu querido Orfeio.” [10]
Quanto ao jesuíta, há um trecho do Livro Anteprimeiro de sua projetada História do Futuro em que justamente explicita o que entende ser o “ofício” por excelência do poeta épico. Combinando uma tópica de Aristóteles — a distinção hierárquica entre o poeta e o historiador –, com o passo de Virgílio em que, no Canto VIII de sua epopéia, Vulcano forja para Enéias um escudo com a gravação dos sucessos futuros de Roma, associa a essência de sua arte à inteligência profética e à energia decorrente dela:
“O ofício e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas como haviam de ser ou como era bem que fossem. E achou o mais levantado e judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético que, para vencer as mais dificultosas empresas, para conquistar as mais belicosas nações e para fundar o mais poderoso e dilatado Império, nenhuma arma poderia haver mais forte, nem mais impenetrável, nem que mais enchesse de ânimo, confiança e valor o peito que fosse coberto e defendido com ela, que um escudo formado por arte e saber divino, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviam de obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao seu Enéias.” [11]