O desenhista, pintor e escritor inglês Edward Lear (1812 –1888), considerado junto com Lewis Carroll um dos pais da literatura nonsense vitoriana, teve que deixar ainda jovem a sua fria Inglaterra. Sua saúde debilitada — Lear sofria de asma e bronquite — o obrigou a se estabelecer num lugar de clima mais ameno.
Aos 25 anos, o artista mudou-se enfim para a Itália e nunca mais voltou a morar em sua terra natal.
No início, Lear, um viajante compulsivo, apreciou a vida errante. Mas não demorou a perceber que as viagens constantes e a quase impossibilidade de permanecer no seu país o haviam tornado um exilado, e essa condição significava que agora não pertencia a lugar nenhum: para os amigos de Londres, ele seria sempre alguém que mora no exterior e volta para casa nos meses de verão, mas, no continente, seria apenas mais um dos visitantes de inverno[1].
Lear, no entanto, fazia questão de ser inglês. Na opinião de G. K. Chesterton, aliás, embora o artista fosse uma pessoa instruída e informada, “era provinciano, assim como os demais ingleses instruídos de sua época”[2]. E esse provincianismo está explícito não só nas cartas deixadas por Lear, mas também em parte de seus textos nonsense. De fato, afirma Chesterton: Lear “podia ler sobre estrangeiros, mas não podia falar com eles”[3]. Um exemplo dessa falta de comunicação entre Lear e as outras culturas pode ser percebido numa das cartas que o artista enviou de Damasco à sua amiga Lady Waldegrave, em 1858, onde fala do povo árabe e da relação deles com viajantes americanos: “esses animais [os árabes] tomaram todos os seus tesouros, não apenas roupas, mas livros, coleção de plantas etc., coisas sem utilidade para eles, mas eu acho que as pegaram para o divertimento de suas horríveis criancinhas negras e bestiais”[4].
Numa outra carta de Lear, enviada de Ardee, na Irlanda, também para Lady Waldegrave, o artista se refere ao povo irlandês como pessoas engraçadas e estranhas, tanto no modo de falar quanto no de agir e pensar, o que lhe fez “cair na gargalhada”, segundo sua própria expressão. De sua estada na Irlanda, Lear concluiu: “Os irlandeses são pessoas engraçadas & [sic], no momento que se chega aqui, torna-se evidente que a Inglaterra e a Irlanda são países muito diferentes em diversos aspectos.”[5]
Apesar desse desconforto em terras estrangeiras, Edward Lear aproveitou suas viagens para dar continuidade a sua arte. A novas paisagens deram a ele inspiração para compor, primeiramente, livros de viagem e, em seguida, também textos nonsense, o que revela a rica ambigüidade da sua relação com o outro, na vida real e na literatura.
Quando deixou a Inglaterra, Lear já era reconhecido por seu trabalho como ilustrador de história natural. Em Londres, o artista havia trabalhado com o especialista em ornitologia Prideaux Selby e, depois de adquirir com ele experiência como ilustrador de animais, publicou sozinho seu primeiro livro de ilustrações, intitulado Ilustrações da Família dos Psitacídeos, ou Papagaios (1832).
Lear, contudo, teve de abandonar ainda cedo os desenhos de zoologia, pois eles lhe exigiam a reprodução de detalhes, os quais a sua visão cada vez mais fraca já não lhe permitia alcançar e reproduzir.
No ano de 1835, o artista fez seus primeiros esboços de desenhos de paisagens. Mas foi a sua mudança para a Itália e os seus primeiros onze anos em Roma (nesse período retornou a Londres apenas duas vezes) que lhe forneceram o material necessário para os seus dois primeiros livros de viagem: Paisagens de Roma e seus Arredores, de 1841, e Excursões Ilustradas na Itália, de 1846. Este último livro impressionou de tal forma a Rainha Vitória que ela contratou o artista para lhe dar aulas de desenho.
Em 1846, Lear voltou para passar uma longa temporada na capital inglesa, onde lecionou desenho à Rainha e visitou os amigos. Nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro de poemas. O livro intitulava-se A Book of Nonsense (Um Livro de Nonsense) e continha setenta de dois poemas breves, escritos para crianças e acompanhados de ilustrações do próprio autor. Esses versos, todavia, não eram recentes, Lear os havia escrito há mais de duas décadas, quando ainda vivia na Inglaterra.
O que levou o artista a publicar seus poemas depois de tanto tempo ainda é uma incógnita, o certo é que Um Livro de Nonsense trouxe-lhe fama e dinheiro. Dinheiro que Lear investiu em viagens, pois buscava novas paisagens para desenhar.
Sabe-se ainda que a importância do livro foi tanta para a história da literatura que o termo nonsense, no contexto literário, teria sido tomado de empréstimo do título dessa obra.
De fato, os poemas curtos (de quatro ou cinco versos, conforme disposição gráfica) que compunham o livro se tornaram extremamente populares e receberam posteriormente (no séc. XIX) a denominação de limeriques (estou aportuguesando a grafia de limerick), denominação que associa até hoje os versos de Lear a uma velha tradição de poesias cômicas, surgida, alguns acreditam, na França no século XVII.
Eis alguns exemplos de limeriques de Lear:
Havia uma senhora de Valência,
Que fez descomunal reverência;
Girou como um pião até se enterrar no chão,
Estressando o povo de Valência.
(There was an Old Lady of Chertsey,
Who made a remarkable curtsey;
She twirled round and rouund, till she sank underground,
Which distressed all the people of Chertsey).
Havia um velho cidadão das Maldivas,
Cujas maneiras eram torpes e aflitivas;
Sentou-se um dia na escada para comer goiabada,
Aquele imprudente velho das Maldivas.
(There was an Old Person of Chili,
Whose conduct was painful and silly;
He sate on the stairs, eating apples and pears,
That imprudent Old Person of Chili.)
Havia um velho na Estação,
Que fazia confuso sermão,
Mas disseram: “Vá se coçar! Você não parou de falar,
Aflitivo velho na Estação!”
(There was an Old Man at a Station,
Who made a promiscuous oration,
But they said, “Take some snuff! — You have talk’d quite enough,
You afflicting Old Man at a Station!”)
De volta ao seu exílio, na Europa Continental, Lear continuou desenhando e escrevendo, agora com regularidade, novos textos nonsense. Passou também a dedicar-se à pintura, arte que não lhe deu retorno financeiro nem renome.
Nos anos seguintes, Lear publicou novos livros de viagens, assim como novos livros de prosa e poesia. Se os cenários “exóticos” inspiravam os desenhos de Lear, também as pessoas, as línguas e os costumes diversos de sua terra natal serviram-lhe de inspiração. Por isso, talvez, nos textos nonsense do artista inglês o leitor encontre inúmeros personagens estrangeiros — muitos deles nativos de colônias britânicas –, retratados, no entanto, como seres fora do comum, insociáveis e até monstruosos, que precisam ser disciplinados pela sociedade, obviamente, a sociedade inglesa do período vitoriano. Não se pode esquecer ainda que, no final do século XIX, época em que Lear escreve seu nonsense, o Império Britânico viveu o seu apogeu, o que parece ter gerado em parte da população inglesa um forte sentimento de superioridade racial sobre outros povos. Segundo Vicent Cheng [6]: “A convicção de que a Pax Britannica realmente estaria a serviço dos melhores interesses do resto do mundo (…) tendia a reforçar a presunção etnocêntrica de genialidade do povo anglo-saxão para regular suas vidas e as de outros povos.”[7]
Na obra de Lear, a sociedade inglesa é representada pelo pronome “eles”. E, “eles”, como afirma o escritor Audous Huxley, são “a força da opinião pública””, que “sem exceção, odeia excentricidades”[8]. Contudo, nos textos de Lear, não há uma defesa da sociedade repressora, tampouco do cidadão reprimido, o artista inglês apenas enfatiza a tensa relação entre eles e, às vezes, muito ocasionalmente, uma harmonia entre os mesmos. Assim, o nonsense ora parece pairar acima do Império Britânico, ora refleti-lo de maneira “deformada”.
Já os poucos ingleses descritos por Lear são, em geral, pessoas “normais”, ou seja, ingleses que viviam em harmonia com a sociedade britânica. Esse aspecto da obra do artista revela ainda mais o seu caráter insular.
Contudo, foi longe da sua Inglaterra, mas sempre próximo dos amigos ingleses, que trabalhavam nas colônias do Império Britânico, que Lear escreveu, na opinião de alguns estudiosos, como, por exemplo, Vivien Noakes, sua principal biógrafa, seu “mais importante nonsense”[9] . São dessa época suas histórias em prosa e verso, suas canções, além de sua botânica (reproduzida ao final deste artigo) e de seus abecedários.
Uma das canções dessa fase da vida de Lear é “O Galanteio do Iongui-Bongui-Bô”, cujo nome do protagonista, acreditam os estudiosos, tenha se originado da linguagem de um empregado italiano do artista, que acabava todas as sentenças com o incompreensível refrão “Díngui Dónghi Dà”.
“O Galanteio do Iongui-Bongui-Bô” narra a história de Bô, um nativo da Costa do Coromandel, na Índia, que se apaixona por uma inglesa, Sra. Jingly Jones, a qual já está comprometida com um cidadão britânico. Bô, cuja fisionomia é medonha e não tem muitos bens materiais, não vê seus sentimentos serem correspondidos. Ao final do poema, o protagonista é obrigado a abandonar a sua própria terra, a fim de esquecer seu grande amor. Lady Jones, a inglesa, permanece na Índia, então colônia britânica. Mas ela chora, talvez arrependida por ter perdido Bô; ou talvez sinta-se culpada por ter-lhe expulsado de seu país de origem. Segue-se um fragmento de “O Galanteio do Iongui-Bongui-Bô”:
‘Though you`ve such a tiny body, Down the slippery slopes of Myrtle, Through the silent-roaring ocean From the Coast of Coromandel, |
“Embora seu corpo seja bem acanhado, Descendo as lisas ladeiras da Beluga, Através do mar calmo-turbulento O Grande Porto de Kakinada |
Outro poema de Lear, este escrito durante uma viagem à Índia, fala de um monstro que engole donzelas indefesas. O título do poema é “The Cummerbund”, sendo cummerbund uma palavra corrente na língua inglesa, significando faixa usada na cintura pelos nativos da Índia. Esse poema demonstra de que forma as viagens influenciaram a poesia e a prosa nonsense de Lear, e qual era a sua visão do estrangeiro. Abaixo um trecho do mencionado poema:
“THE CUMMERBUND” |
“O CINTURÃO” |
Mas Lear, ao contrário de outro ilustre viajante, o belga Henri Michaux, não fez sua “Mea Culpa”, não se considerava um bárbaro nem se lamentou da “cegueira de quem se beneficia das vantagens de uma nação e de uma situação momentaneamente privilegiadas”, como o fez Michaux[10]. Para o artista inglês, os povos e as pessoas que ele encontrou fora da Inglaterra nunca lhe pareceram muito reais. Todavia, foi ao lado desses seres irreais que ele viveu os anos de maturidade e talvez seu período mais criativo como artista. Essa experiência de se sentir imerso na irrealidade do mundo talvez seja uma das principais caracterísitcas do seu nonsense, que põe em cheque os sentidos estabelecidos, as verdades do bom senso.
Além dos poemas mencionados acima, podemos considerar que os limeriques, no seu conjunto, são como diários de viagem. Neles, Lear registra pessoas e fatos de terras distantes de sua paradigmática Ilha. Só para mencionar alguns exemplos, cito o limerique que fala do velho do Nilo, que afiava as unhas com serra. Num outro limerique, temos um velho de Apulia, que tinha o hábito “bastante peculiar”, na opinião do escritor, de alimentar seus filhos com pães doces.
Por fim, não poderia deixar de mencionar a botânica nonsense de Lear, que começou a ser escrita durante um passeio pelas montanhas de Grasse, no sul da França. Essas montanhas deram a Lear inspiração para imaginar plantas incríveis, nenhuma rosa, ou tulipa, mas vegetais exóticos, ao gosto das regiões quentes do mediterrâneo.
A botânica nonsense consiste em desenhos de plantas imaginárias, que se originaram do cruzamento de vegetais com seres vivos ou objetos inanimados, como, por exemplo, a Faciobesia Estupenda, que tem a forma de um rosto enorme e gordo numa haste de girassol, ou a Chachimbia Gratiosis, que é um longo e formoso cachimbo estendido para fora de uma moita de capim. Sobre a botânica de Lear, Noakes diz existir indícios de que o artista tenha sofrido a influência do livro Hortus Sanitis, escrito no final do século XV[11]. Mas também não se pode deixar de mencionar que, na época da composição da botânica nonsense, a Inglaterra investia nos grandes catálogos de bichos e plantas trazidas de todas as partes do mundo. Parte desses catálogos foi exposta no Palácio de Cristal, edifício de ferro e vidro construído no Hyde Park de Londres, em 1851, para abrigar a maior exibição da indústria de todas as nações e para enfatizar a supremacia do Império Britânico. Desse modo, com a sua botânica nonsense, Lear traria também sua contribuição para a exposição do Hyde Park e reforçaria a “missão imperialista” de suas viagens, porém, ao mesmo tempo, minando, graças ao humor e à ironia, essa mesma ideologia. Essa é, enfim, a rica ambigüidade dos textos nonsense de Lear que estou comentado aqui.
BOTÂNICA NONSENSE
AS ÁRVORES NONSENSE
THE BISCUIT TREE
This remarkable vegetable production has never yet been described or delineated. As it never grows near rivers, nor near the sea, nor near mountains, or vallies, or houses, – its native place is wholly uncertain. When the flowers fall off, and the tree breaks out in biscuits, the effect is by no means disagreeable, especially to the hungry. – If the Biscuits grow in pairs, they do not grow single, and if they ever fall off, they cannot be said to remain on. –
O PÉ DE BISCOITO
Este extraordinário produto vegetal jamais foi definido ou descrito. Como nunca cresce perto dos rios, nem do mar, nem das montanhas ou vales, nem das casas — seu lugar de origem é absolutamente incerto. Quando as flores caem e a árvore se cobre de biscoitos, o efeito não é de modo algum desagradável, especialmente para os famintos. — Se os biscoitos crescem aos pares, não crescem sós, e se caem, não se pode garantir que durem muito. —
THE CLOTHES-BRUSH TREE
This most useful natural production does not produce many clothes-brushes, which accounts for those objects being expensive. The omsquombious nature of this extraordinary vegetable it is of course unnecessary to be diffuse upon.
O PÉ DE ESCOVA DE ROUPA
Este utilíssimo produto natural não produz muitas escovas de roupa, o que explica o preço alto desses objetos. A natureza ortopentótica de tão extraordinário vegetal evidentemente não precisa ser difundida.
THE FORK TREE
This pleasing and amazing Tree never grows above four hundred and sixty-three feet in heigh, – nor has any specimen hitherto produced above forty thousand silver forks at one time. If violently shaken it is most probable that forks would fall off, – and in a high wind it is highly posible that all the forks would rattle dreadfully, and produce a musical tinkling to the ears of the happy beholder.
O PÉ DE GARFO
Esta Árvore delicada e surpreendente nunca ultrapassa quatrocentos e sessenta e três pés de altura, — nem espécie alguma até hoje produziu mais de quarenta mil garfos de prata de uma só vez. Se sacudida violentamente, é muitíssimo provável que garfos venham a cair, — e havendo um vento forte, é altamente possível que todos os garfos chocalhem terrivelmente e produzam um tinido musical para os ouvidos do feliz observador.
THE KITE TREE
The Kite Tree is a fearful and astonishing vegetable when all the Kites are agitated by a tremendous wind, and endeavour to escape from their strings. The tree does not appear to be of any particular use to society, but would be frequented by small boys if they knew where it grew.
O PÉ DE PANDORGA
O Pé de Pandorga é um imponente e assombroso vegetal quando todas as pandorgas são agitadas por um vento extraordinário e se esforçam para se desvencilhar de seus barbantes. A árvore parece não ter nenhuma serventia particular para a sociedade, mas poderia ser freqüentada por menininhos, se estes soubessem onde elas crescem.
The Rabbit Tree/ O Pé de Coelho *
The Clomjombimbilious Tree/ O Pé de Clonjombimbilous
The Dish Tree/ O Pé de Prato
A BOTÂNICA NONSENSE
Phattfacia Stupenda/ Faciobesia Stupenda
Baccopipia Gracilis/ Cachimbia Gratiosis
Minspysia Deliciosa/ Pastelya Delectabile
Manypeeplia Upsidownia/ Muytagentia Pontacabecia
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BIBLIOGRAFIA:
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TESE:
AMARANTE, Dirce Waltrick do. Sr. Lear, Conhece-lo é um Prazer! O Nonsense de Edward Lear. Florianópolis: UFSC, 2006.
. . . . . . . . . .
* Professora de Literatura Infanto-juvenil na Universidade Federal de Santa Catarina, onde realiza pesquisa de pós-doutorado como bolsista do CNPq. ^ voltar ao texto
1: NOAKES, Vivien. Edward Lear. Glasgow: William Collins Sons & Co Ltd, 1979, p.46. ^ voltar ao texto
2: CHESTERTON. G. K. A Handful of Authors. Nova Iorque: Sheed and ward, 1953, p. 121. ^ voltar ao texto
3: Idem, p. 123. ^ voltar ao texto
4: STRACHEY, Lady (org.). Letters of Edward Lear. Nova Iorque: Books for Libraries Press, 1970, pp. 102, 103. ^ voltar ao texto
5: Idem, p. 52. ^ voltar ao texto
6: CHENG, Vincent J. Joyce, Race, and Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.19. ^ voltar ao texto
7: idem ibidem. ^ voltar ao texto
8: HUXLEY, Aldous. On the Margin. Londres: Chatto &Windus, 1971, p. 169. ^ voltar ao texto
9: NOAKES, Vivien (org.). The Complete Verse and Other Nonsense. Nova Iorque: Penguin Books, 2002, p.xxx. ^ voltar ao texto
10: MICHAUX, Henri. Um Bárbaro na Ásia. São Paulo: Nova Alexandria, 1994, pp. 14, 15. ^ voltar ao texto
11: NOAKES, Vivien. 2002, pp. 511, 512. ^ voltar ao texto
** Esta e as árvores seguintes não vêm acompanhadas de texto. ^ voltar ao texto
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