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Vítezslav Nezval

Vítezslav Nezval, um dos poetas tchecos mais prolíficos do século XX, nasceu em 26 de maio 1900 no povoado de Biskupkách (Morávia). Nezval  teve um papel importante no desenvolvimento da vanguarda poética e artística tcheca, sendo iniciador junto com o arquiteto e artista gráfico Karel Teige do movimento denominado poetismo. Foi também animador do surrealismo nesse país, vinculando-se a figuras internacionais como André Breton, Benjamin Péret e Paul Éluard. 

Após a Primeira Guerra Mundial e a desintegração do Império Austro-Húngaro em 1918, Tomás Garrigue Masaryk proclamou a Primeira República Tcheco-Eslovaca, consolidando-a à maneira do centralismo francês. Para um país que tinha sido dominado durante décadas por poderes estrangeiros, a criação de uma entidade política independente e estável propiciou um grande otimismo econômico, social e cultural que estimulou a criatividade de escritores e artistas.  

Entre as experiências poéticas  que surgiram nesse periodo se acha o poetismo, escola  que derivou algumas de suas idéias das diversas tendências modernas em voga, principalmente o cubismo, o futurismo, o dadaísmo e o construtivismo. Esta vanguarda se denominou primeiramente “Devetsil” ou “Noveforças”, nome de uma flor com poderes curativos e, ao mesmo tempo, uma alusão aos nove membros do grupo original, que incluía, além de Nezval e Teige, os poetas Jaroslav Seifert, Konstantin Biebl, Vilém Zavada e Franstisek Halas. Uma vez esgotado o impulso inicial do poetismo, alguns desses poetas e artistas formaram o grupo surrealista em Praga em 1934. 

Embora breve –surgiu em 1923 e durou menos de uma década—, o poetismo se constituiu como um movimento auto-consciente de inovação poética nas letras tchecas. A ênfase na criação de uma nova linguagem, inquietação comum a muitos movimentos da vanguarda, não esteve alheia da prática dos poetistas. Daí que o poetismo compartilhe com o cubo-futurismo a experimentação visual e tipográfica e a eliminação da pontuação como estratégias de renovação. Mas, enquanto os poetas na França e na Itália procuravam eliminar elementos tradicionais como a rima, que para eles eram necessariamente um déjà-vu victorhuguesco ou dannunziano, os poetistas, no entanto, fizeram deles partes estruturantes do texto. Este aparente paradoxo pode ser explicado facilmente se consideramos o percurso das diversas histórias literárias: enquanto no francês e no italiano existiam já por vários séculos longas tradições poéticas nas quais, por assim dizer todas as palavras já tinham sido rimadas, o tcheco, reintroduzido como língua literária no final do século XVIII e início do XIX por escritores como a romancista Bozena Nemcová e o poeta Karen Hynek Mácha, tinha apenas uma existência de menos de dois séculos. A rima e os ritmos oferecidos pela língua de Jan Hus vieram, então, a estimular e inspirar a produção poetista. Nas palavras de Nezval, a rima tinha a capacidade de “aproximar terras baldias, tempos, raças e castas remotas” e de estabelecer entre as palavras uma “prodigiosa amizade.” 

Hoje, quase cem anos depois do início das primeiras vanguardas (o Manifesto Futurista data de 1907), é impossível considerar estes movimentos sem um bocado de ironia e humor, principalmente pelo caráter brincalhão e até naïve dos manifestos e da produção poética. Apesar disso, o frescor bem-humorado desses poemas, assim como a extraordinária energia das proclamações, teorias e produção poética, são testemunha de um optimismo utópico que deve ser entendido como sintomático na época. Daí, por exemplo, que cansados das imposições literárias do passado burguês assim como da limitada estética socialista, os poetistas declararam a total independência do texto poético: “a principal tarefa do poema,” –escreveu Nezval– contra as imposições utilitárias do realismo socialista, “é ser um poema.”  

Assim, o poetismo procurou aproveitar todos os elementos plásticos da linguagem (sons, images/stories gráficas, images/stories verbais) para a criação de ricas texturas poéticas onde os elementos todos formassem uma unidade autônoma e suficiente. Nesse método, a partir de uma rima interessante, o poeta vai articulando o texto numa série deliberada de associações fonéticas, gráficas e semânticas. 

Talvez o melhor e mais paradigmático exemplo da poesia poetista seja o poema “ABECEDA” (ABECEDÊ) de Vitezslav Nezval, texto que, coincidindo com a declarada independência do objeto literário, toma como inspiração o alfabeto. Cada estrofe é uma meditação sobre propriedades gráficas e fonéticas de uma letra do alfabeto, à qual se articulam images/stories verbais e sonoras através de um processo de associação lírica. É interessante, citar a leitura que faz o próprio Nezval da primeira estrofe do poema. como padrão exemplar do método de composição poetista: 

A
nazváno buď prostou chatrčí
Ó palmy přeneste svůj rovník nad Vltavu!
Šnek má svůj prostý dům z nějž růžky vystrčí
a člověk neví kam by složil hlavu

A
Chamada seja cabana simples
Tragam pro Vltava o palmas! seu equador
Da simples casa tira o caracol seus chifres
sem abrigo pra cabeça o pobre  só tem dor 

De uma comparação libre da letra A com um telhado, surge o primeiro verso. Da associação entre a cabana e uma morada selvagem a imaginação viaja até o equador esperando poder trazer seu clima para nossas sempre chuvosas paisagens. Da rima  chatrcí (cabana) e vystrcí (extende, tira) surge a idéia do caracol que leva sempre sua simples morada e estica seus chifres para fora dela. Finalmente da rima entre Vltavu (Vltava) e hlavu (cabeça), aparece a imagem de pessoas pobres e sem teto. (Moderní básnické smery, p. 275). 

O poema “ABECEDÊ” (1926) consititui então uma tour de force, não apenas da escrita poética, mas consequentemente para o tradutor, que deve procurar imitar os efeitos que o poema constrói de maneira tão intrincada e numa língua tão distante. 

Apresenta-se aqui uma seleção de estrofes do poema original com uma tradução aproximativa na qual procurei manter, até onde foi possível, as images/stories do original e um eco do padrão das sonoridades primitivas. O poema, como esperava Nezval, nos transporta via um exotismo peculiar centro-europeu, de uma moribunda Veneza dos gondoleiros até às pradarias do oeste americano, de um Assis fragrante de incenso, até as ribeiras do mítico Nilo e as planícies da Índia com seus encantadores de serpentes.  No grafismo das letras, o poeta lê sombras de pirâmides, constelações e as manchas na cabeça de uma cobra. E numa maneira que condiz com essa exuberante modernidade itinerante, o poema conclui com uma subida por um cabo dentado até o símbolo arquitetônico e construtivista da época—a Torre Eiffel.

Em mais uma acrobacia verbal, o poema foi publicado originalmente com um arranjo gráfico de fotografias no qual as letras do alfabeto eram coreografadas pela dançarina Milca Mayerová. Reproduzimos aqui as três primeiras images/stories. 

          

 

De ABECEDA/ABECEDÊ
Vítezslav Nezval

A
nazváno buď prostou chatrčí
Ó palmy přeneste svůj rovník nad Vltavu!
Šnek má svůj prostý dům z nějž růžky vystrčí
a člověk neví kam by složil hlavu

A
Chamada seja cabana simples
Tragam pro Vltava o palmas! seu equador
Da simples casa tira o caracol seus chifres
sem abrigo pra cabeça o pobre só tem dor

* * *

C
září jako měsíc nad vodou
Ubývej zhasni měsíci veliký!
Romance gondolierů navždy mrtvy jsou
tož vzhůru kapitáne do Ameriky

C
brilha como a lua sobre as águas
Míngua desaparece lua homérica
morreram para sempre os romances dos gondoleiros
siga em frente capitão até a América

D
luk jenž od západu napíná se
Indián shlédl stopu na zemi
Poslední druhové zhynuli v dávném čase
a měsíc dorůstá prerie kamení

D
arco que se tensa da direção oeste
O índio descobriu rastos na terra
Sus últimos companheiros morreram faz já tempo
e a lua cresce  pradaria   pedras

* * *

F
klovou svatí ptáci v Assisi
do kůry stromů nad milencem božím
Obrázku! františky vonné čadící
v omšelém krámě s galanterním zbožím

F
bicam pássaros santos em Assis
a casca das árvores acima do divino amante
Imagens! aromas do incenso fumegante
na surrada loja de miudezas

 * * *

JQ
Přes Německo do Francie
dudák se svým měchem větry pluje
Chodské písně pomalu
hvízdá na svou písťalu

JQ
Até a França através da Alemanha
com sua gaita de foles o tocador sulca ventos
Lentas canções do caminho
sibila seu instrumento

* * *

RRRRR
Bubínky daly se na pochod
přes devět mostů přes sedm vod
RRR komedianti z Devětsilu
rozbili stánek na březích božského Nilu

RRRRR
Os tambores começaram sua marcha
por sete mares por nove pontes
RRR  os comediantes da Noveforças
Alçaram tendas à beira do Nilo e suas fontes

S
V planinách černé Indie
žil krotitel hadů jménem John
Miloval Elis hadí tanečnici
a ta ho uštkla  Zemřel na příjici

S
Nas planícies da escura Índia
viveu John encantador de sepentes
Amava Elis sibilante dançarina
E ela o mordeu    Morreu de sífilis

* * *

U
připomínáš tiché dětství naše
bučení kravek v zátoce
v plátěných košilkách pastýřské mesiáše
a smaragdovou zeleň ovoce

U
me lembras nossa meninice tranqüila
o mugir das vacas no torto riacho
messias pastores em vestes de linho
e o esmeralda dos frutos no horto

V
odraz piramidy v žhoucím písku
V
 konstruktivní báseň hodná Disku

V
reflexo da pirâmide na areia ardente
V
construtivismo digno do teatro DISK

W
Kasiopea jak letec bezúhonná
kroužící nad hlavou mocného faraona

W
Casiopeia imaculada como um piloto
sobrevoa a cabeça do faraó  poderoso

X
Kainovo znamení na hlavě zmije
X věčnost  X jed
X kosti jsou skřízeny Čas v květu Hnije
X na počátku  X naposled

X
signo de Caim na cabeça da víbora
X eternidade X veneno
X ossos cruzados O tempo na flor apodrece
X no final  X no começo

Z
na rozlouženou Nuž tedy sbohem již
Desáté musy vzpomeneš Zubatých gigrlat Střelce
Každé loučení má zuby? Nu ano však ty víš
Zubatá dráho vzhůru po Eifelce!

Z
na despedida  digamos adeus então
Décima musa lembras os dentes de Sagitário
Cada despedida tem dentes? Sim, claro!
Subir a Torre Eiffel por um cabo dentado

Tradução: Odile Cisneros


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