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SOBRE A POESIA DE ANTONIO MOURA

 

Passarei os fortes & as fronteiras
San Juan de la Cruz[a();1]

Há em alguns livros um ponto tão aberto que se torna imperceptível, é uma verdadeira passagem de ar. Passamos por ele em mil voltas e tornamos a passar, somos cada vez mais atraídos para ele, cada leitura seduz para uma releitura que se esgueira para um retorno, sempre diferente, sempre outro. Borges leu Dom Quixote a perder a conta, mas a cada volta encontrava algo que lhe fascinava. É a literatura, com efeito. Ulisses não nos atrai apenas por seu estilo ou por seu laboratório de linguagem, existe algo mais, algo que sempre nos mantém com eles, com Leopold Bloom, com Dedalus – é o canto das sereis. Mas diga-se: a literatura nada tem de inviolável, não há segredos, sabe-se. Mas que força contém algumas obras que as tornam tão presente? Tão indispensáveis a ponto de mesmo quando não as lemos partilhamos sua intensidade, e mantemos com elas certa intimidade, basta que esteja lá, na sua poderosa condição de obra, aberta como um oceano.

Já não se trata mais da questão universal ou regional, esse é só um buraco negro,  a questão é de outra ordem: da produção de singularidades, de potências de vida, no sentido do que pode a literatura em matéria de invenção, pois nessas obras entendemos que escrever é inventar um caminho próprio, produzir forças. São essas forças que seduzem o leitor, e nelas o caminho é sempre a palavra. Contudo, a palavra deixa de ser um instrumento, um meio, que designa e orienta o sentido do mundo e das coisas, para incorrer em um horizonte outro, fora do usual e da gramática da representação. Nessa esfera a experiência literária nos arranca do mundo e nos coloca novamente nele, como o eterno retorno que na sua velocidade injeta um pouco de possível às coisas, assegurando, no seu percurso, a inevitável fratura das verdades e das certezas que encobre e mantém a engrenagem do mesmo. No lugar do usual, outro sentido, outra função: cavar e inventar realidades nômades, não-lineares, infinitas como um alfabeto de estrelas [a mão que abre o livro do mundo].

Com efeito, há uma estética da leitura, sem dúvida. Benjamim traçou de forma extraordinária esse percurso quando nos disse: nem todos os livros se lêem da mesma maneira. Porcerto, apoesia, por exemplo, exige toda uma cadência, um modo de velocidade para tangenciar a univocidade do poema. Mas de outra maneira, ainda nas trilhas de Benjamim, entendemos que a leitura é uma nutrição. Contudo, ao comer, se for preciso, leia-se o jornal. Mas jamais um Romance. São obrigações que se excluem[a();2]. Não é só um lance de tempos irreconciliáveis, é uma questão mais profunda, interior, ao modo de Bataille, uma experiência Interior, na qual só a obra persevera, gerando desdobramentos que atravessam o pensamento, algo da ordem do acontecimento, ligado inteiramente ao ser. É isso que percebemos em Rio Silenciode Antônio Moura, obra que demarca um espaço de ruptura, corte finíssimo na silhueta do espaço literário. Sem dúvida um dos grandes acontecimentos do atual, obra que chega injetando possibilidades na dobra entre escrita e pensamento, conduzindo a literatura para um vôo ontológico, do ser para o além-mundo; acontecimento singular que permite níveis intensos de experimentações: ‘o ser da linguagem’; de produção de singularidades: ‘os devires da língua’, que por si possibilita uma experiência desviante em relação ao estabelecido: ‘a escrita como reinvenção da própria experiência’; corte que demarca uma experiência de resistência, conforme nos diz Agamben num quadro aterrador: assim como foi privado de sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si o mesmo[a();3]. Contudo, na mão contrária ao quadro que nos traça Agamben, Antônio Moura nos traz em Rio Silêncio a poesia atravessando experimentações ontológicas; mergulho transversal na direção do ser, a partir de uma perspectiva do diverso que concebe a vida como multiplicidade, na qual a existência é dimensionada como potência do vivido, além ou por vezes aquém do sujeito, tal como diz Nietzsche: como fenômeno estético [A Gaia Ciência, 2001]. Em Rio Silêncio, o poeta tangencia por entre blocos de vida, e com eles vê, ouve, sente, fazendo da poesia uma máquina de sensação, tal como podemos perceber no poema O Cavaleiro Amarelo: Através do quadro de Klimt /chamado “A Vida é uma luta” / vejo as necessidades do mundo.Já não se trata de interpretar o mundo, tão pouco comentar, mas fazer com, experimentar, escrever com os olhos de Klimt, ver além do óbvio, desenhar a vida não como paisagem, mas como devir, por um pouco de pão, quem sabe, beleza [O Cavaleiro Amarelo]. É a arte como expressão de vida, de resistência, portanto. Mas resistência como potência ativa, palavra reidratada pela poesia que faz do resistir cintilação de vida, pura criação, como o quadro de Klimt desenhado pela grafia do poeta. Nessa direção, o poema designa a unidade de elocução de uma exatidão. Essa elocução é intransitiva: não remete para o sentido como para um conteúdo, não o comunica, mas fá-lo, sendo exatamente e literalmente a verdade[a();4].   

Se para Agamben o homem contemporâneo foi privado de experimentação, com Nietzsche as possibilidades de experimentação se dão no Além do Homem, ‘num pensamento intensivo fora de toda representação’, fora da vida desta, na literatura antimatéria do mundo, na poesia como invenção /fratura /devir. Esse é o mote de Rio Silêncio. Mas onde esta a fratura? No próprio percurso de Antônio Moura, e não se trata de denegação, mas da potência de querer escrever para si outra história: escrever para supraviver [Escrever], como tão bem nos diz Jean Luc Nancy: a poesia é a práxis do eterno retorno do mesmo[a();5]. Com efeito, Antônio Moura escreve para retornar ao outro começo, a infância do devir, núpcias com a escrita, ao devir criança do pensamento.

Mas vejamos sua trajetória. Em seus primeiros livros, Dez e Hong Kong; Antônio Moura se lança em uma dinâmica na qual a linguagem se estrutura em traços de descontinuidade, virada de força para um percurso proeminente, seguindo passo a passo no âmbito da palavra poética, dentro de um fazer que encontra outros, toda uma miríades, expoentes de força, visíveis fissuras na poesia brasileira das últimas décadas. Em Dez e Hong Kong os laços acontecem em blocos diferenciados que correm para direções outras, num jogo perpendicular, em quebras que denotam linhas de combates. Mas em que pese essa trajetória o poeta não se acomoda e, numa sensível percepção Nietzchiana, desconfia de si, rompe com o estável, deseja não somente jogar o jogo, mas mudar a rota, mudar o foco, Ir, à outra margem, de acordo /com o que a própria ida engendra [Travessia], e desatraca, se alivia do porto seguro e parte para o alto mar, num lance de pura desterritorialização, rompe os elos, vai… . Trata-se de um movimento de traição, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro. Trair as potências fixas que querem nos reter, as potências estabelecidas da terra, trair para traçar suas linhas de fuga por novos enunciados, novas expedições. E nessa direção segue Antônio Moura em Rio Silêncio, navega para outras águas, segue, aceita o risco, mas sabe: nas grandes descobertas, nas grandes expedições não há apenas incertezas do que se vai descobrir, e conquista de algo desconhecido, mas a invenção de uma linha de fuga, e a potência da traição[ a();6]. Trair para liberar as máquinas, ativar a escrita e seguir em direção do novo – romper os elos. Ruptura definitiva, movimento sem volta, como tão bem diz Scott Fitzgerald, em La Félure, Ruptura quer dizer muito e não tem nada a ver com ruptura de cadeia em que, geralmente, se está fadado a encontrar outra cadeia ou a retomar a antiga. A célebre Evasão é uma excursão em uma armadilha, mesmo se a armadilha compreende os mares do Sul, que são feitos apenas para aqueles que querem navegar neles ou pintar. Uma verdadeira ruptura é algo a que não se pode voltar. Com efeito, romper significa surfar na crista do por vir, e é ao porvir que se remete Rio Silencio, ao mar, às entranhas do Ser, aos abismos da palavra, poema sempre a um passo do abismo [Feito Ishmael em Moby Dick]. Mas cabe dizer que os cortes de Antônio Moura não anseiam um fora do mundo, sua ruptura arremete para um possível do espaço literário, desenha linhas de fuga, algo da ordem do geográfico, linhas moventes, pois Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar[a();7]. Nada de herança, de legado, a árvore genealógica é pesada demais, faz da literatura uma muralha da identidade, com santos e seguidores. É preciso seguir para outro caminho, como bem fazem os poemas de Rio Silêncio, para direções outras: atravessando o rio, o deserto, a rua, a floresta [Ao] em combates desterritorializados: nômades.  

Nilson Oliveira é editor da Revista Polichinello.
Autor de Apenas Blanchot, (org) Editora Pazulin, 2008.

 

[i = 1; a();1] DE LA CRUZ, San Juan, Obra Completa V. I, 2003, Editora Alianza. P,152.

[a();2] BENJAMIM, Walter. Rua de Mão Única, 1997, Brasiliense. P, 275. 

[a();3] AGAMBEN, Giorgio. Infância e História, 2005, UFMG. P, 21-22.

[a();4] NANCY, Jean Luc. Resistência da Poesia, 2005, Editora Vendaval. P, 15.

[a();5] NANCY, Jean Luc. Idem. P, 14. 

[a();6] DELEUZE, Gilles, Diálogos, 1998, Editora Escuta. P. 53-54.

[a();7] DELEUZE, Gilles, Idem. P, 49.


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