1. Camilo Pessanha é um dos maiores poetas da modernidade portuguesa, sendo uma referência essencial da poesia contemporânea. Figura controversa, compreendeu como nenhum outro a busca do Oriente, e em toda a sua vida perpassa uma intensa paixão pela cultura chinesa, sendo considerado “o mais chinês dos poetas ocidentais, antes de Ezra Pound”.[1] Em Clepsidra, a única obra poética dele, soam ressonâncias da poesia clássica chinesa que ele e outros poetas ocidentais descobriram por aquela altura, contribuindo para criar uma poesia em que as palavras sugerem múltiplas images/stories.
Segundo Daniel Pires, “a admiração de Camilo Pessanha pela civilização chinesa remonta a sua juventude, muito antes de embarcar para Macau”.[2] Por isso, não é de estranhar seu deslocamento para o Oriente, aparentemente na seqüência de um desgosto amoroso. Partiu para Macau em 1894 e ali permaneceu até morrer. A terra de Macau, que ele vivenciava física e moralmente, despertou-lhe uma empatia ainda maior pela civilização chinesa, o que o levou a aprender a língua chinesa. Numa carta dirigida a um amigo seu, relata: “Desde que deixei a Vara de Juiz, é decorar letras chinas. Bem desejaria publicar um dia meia dúzia de pequenas traduções; mas a empresa, a ser a coisa como eu a tenho esboçado, é cheia de dificuldades”.[3] Em 1910, seu desejo de publicar umas pequenas traduções foi concretizado nas páginas do jornal macaense O Progresso, em que foram sucessivamente publicadas sob o título Oito elegias chinesas. Quando o mundo ocidental pouco conhecia da literatura chinesa ou até duvidava de sua existência, Camilo Pessanha conferiu relevância a essa literatura.
Conforme Camilo Pessanha escreve no prefácio que redigiu para a tradução, essas oito elegias chinesas remontam à dinastia Ming e foram reunidas pelo ministro Ion Fong Kong () que, no reinado de Chia-King (, 1796-1820), exercia elevados cargos de Estado, inclusive o de mentor do príncipe herdeiro. Mas, como Camilo Pessanha informa, o livro não tinha “nenhuma informação acerca do autor ou autores, senão que viveram nesse período (1368 a 1628). Sob a direção de um letrado chinês, foi-me, entretanto, possível identificar cada uma das composições e averiguar-lhe o autor.”[4] No entanto, o tradutor não argumentou a escolha dessas elegias para tradução, indicando apenas que as tinha comprado pela irrisória quantia de duas patacas numa prestamista. É curioso, entretanto, notar que nenhum desses autores ocupa um lugar privilegiado na tradição poética da China. Apenas Uang-Shau-Jen (também conhecido por Wang Yang Ming, ), autor de “Ascensão ao Miradouro do Kiang”() e “À noite, no Pego-Dragão”(), dois poemas integrados no livro, era conhecido como distinto filósofo e militar da dinastia Ming, mas não na linha dos grandes poetas. Aliás, os poemas implicam numerosas referências históricas, literárias e geográficas que dificultam muito a tradução e constituem uma grande estranheza exótica para o leitor ocidental. Nesse sentido, o intuito que levou Camilo Pessanha a traduzir esses poemas não era muito fundamentado. Pelo prefácio com que completou a tradução e pelos ensaios que ele escreveu sobre a literatura chinesa, Camilo Pessanha mostrava-se um bom conhecedor da literatura chinesa e, por conseguinte, não era justificável seu desconhecimento dos melhores poetas chineses. Desse modo, a escolha de Camilo Pessanha deve-se provavelmente a sua curiosidade em traduzir o que tinha comprado para entreter “os ócios dos últimos seis anos de residência em Macau – os primeiros da velhice –, tirando esse esforço (em boa verdade se diga) horas de um tão suave prazer espiritual que dele o não esperava tamanho”.[5] Outro motivo que podia justificar a opção do poeta consistia no fato de esses poemas espelharem os mesmos traços de sua vivência: solidão, tristeza, exílio, fuga ao universo real e nostalgia da terra abandonada, elementos sentimentais que contribuíram para consumar seu essencial humano e poético.
2. Não se sabe a que nível Camilo Pessanha dominava a língua chinesa, mas pelo menos ele tinha a capacidade de ler, visto que em seu prefácio comentava assim as elegias chinesas que traduziu: “(…) à leitura, no próprio original chinês, se acredita serem produções de um mesmo espírito e fragmentos de uma obra única sistematizada.”[6] Mas é legítimo acrescentar que, na materialização da referida tradução, o poeta se socorreu dos apoios do letrado chinês e de seu amigo José Vicente Jorge, como ele reconhece sinceramente: “Finalmente, nada confiando nos recursos próprios – imperfeitas noções de simples estudioso amador, adquiridas ao acaso das horas vagas –, submeti o trabalho à censura do meu velho amigo e querido mestre sr. José Vicente Jorge.”[7] Nesses termos, seu domínio razoável da língua chinesa, seu gênio de poeta e os apoios do letrado chinês e de seu amigo já constituíram condições suficientes para não anular a obra original.
Parece evidente que Camilo Pessanha preparou sua tradução para o leitor de chegada que contatava desprevenidamente com uma literatura tão distanciada, visto que, através do prefácio, que explicava as diferenças entre dois sistemas literários, e das anotações detalhadas, esboçou ele um enquadramento necessário a nível histórico, literário e até geográfico, visando assim facilitar a interpretação por parte do leitor e retirar, ao mesmo tempo, a literatura chinesa do lugar de exotismo para onde tinha sido confinada e que era mais ou menos irreal.
Acerca da metodologia criteriosa que utilizou para a tradução, Camilo Pessanha reconheceu, por um lado, a possibilidade da tradução literal do chinês para o português e, por outro, as zonas de superioridade da literatura chinesa: “Traduzi literalmente – tanto quanto a radical diferença entre o gênio das duas línguas o permite. Esforcei-me por não suprimir nenhuma das idéias contidas no original, por adjetiva e acessória que fosse – embora tendo por vezes de sacrificar a essa imposição de fidelidade os longes de ritmo e a relativa simetria de forma que eu desejaria dar à tradução de cada quadra chinesa, na impossibilidade de as traduzir em quadras de versos portugueses.”[8]
3. Há quem defenda que a poesia é intraduzível, porque fonemas, sintaxe, ritmo, rima, significados e significantes são, em cada língua, o corpus mesmo de sua poesia. Apesar disso, muitos tradutores têm combatido pela obtenção do impossível e têm conseguido valorizar em seu próprio sistema os poetas de outra língua. Porém, traduzir um poema do chinês para uma língua ocidental não é a mesma coisa que traduzir um poema de uma língua ocidental para outra, e apresenta um mais elevado grau de complexidade, já que a língua chinesa se construiu, ao longo do tempo, num sistema muito próprio. Como uma língua ideográfica, não alfabética, o chinês caracteriza-se pelo monossilabismo (um caractere é uma palavra ou uma sílaba), pela invariabilidade (não tem flexões, gêneros; cada caractere pode assumir várias funções), fato esse que dificulta o tradutor de traduzir literalmente ou manter o modelo da estrutura sintática do original no sistema de chegada. Por exemplo, “Sobre o terraço” (), uma das Oito elegias chinesas, é composta por oito versos, cada um dos quais tem cinco caracteres ou cinco sílabas, de modo a formar uma simetria, quer na estrutura, quer no efeito sonoro e visual, e em todo o poema o sujeito foi omitido, o que confirma a impossibilidade de uma tradução literal ao mesmo nível sintático.
Ciente da dificuldade da tradução, Camilo Pessanha optou por uma tradução livre que consiste na busca de equivalência dinâmica no intersistema a nível denotativo e conotativo, procurando, no entanto, conservar o valor do “elemento substantivo ou imaginativo” do texto original. Essa tentativa ora conseguiu ser concretizada pela busca de uma palavra equivalente, ora só se tornou possível por meio da substituição, adaptação e explicação. Por exemplo o poema “Sobre o terraço”():
Os antigos não ser vistos
Ainda subir ao antigo terraço
nona lua lamentoso vento começar
dos três rios gansos de arribação chegar
flutuantes nuvens cobrir cem Yue
frio sol ocultar Pang Lai
desterrado homem ter cartas suspensas
No alto volver cabeça de contínuo
(Tradução literal)Os antigos mortos, invisivelmente,
Vêm ainda ao seu terraço antigo…
Já sopra da nona lua o vento lamentoso.
De os três rios devem estar a chegar os gansos de arribação.Cobrem nuvens a vastidão dos dois Kuangs
Declina, pálido, o sol, sobre Pang-Lai
Desterrado da pátria e sem notícias dela,
Para essas bandas volvo de contínuo os olhos.
(Tradução de Camilo Pessanha)
Eis um poema que trata da nostalgia, um tema constante na tradição poética chinesa. O poeta concentra-se na descrição da paisagem triste do outono, transmitindo desse modo seu sentir de nostalgia e de tristeza. É uma técnica que o poeta chinês costuma utilizar, isto é, o poeta, em vez de falar diretamente o que sente no interior, prefere depositá-lo nos objetos da natureza, ou por outras palavras, interiorizar o cosmos natural, o que torna quase cada palavra num código carregado de sentido metafórico ou simbólico. Um tradutor descuidado poderá cometer negligências sem captar o sentido subentendido das palavras.
Camilo Pessanha era um tradutor cuidado e sensível. Em comparação com o poema original, a tradução dele foi feita com a maior fidelidade possível, conseguindo muitas vezes estabelecer equivalência denotativa e conotativa a nível intersistêmico.
No primeiro dístico, o tradutor conseguiu estabelecer equivalência entre os versos de partida e de chegada, com a exceção da inserção do elemento explicativo “mortos”, que não consta no original e que provavelmente não é necessário.
Na tradução do segundo dístico, mantém-se a estranheza da palavra “nona lua”, no sentido de dar a conhecer ao leitor a chegada do típico calendário chinês sob a ajuda de uma explicação de nota de rodapé.
No terceiro dístico, o tradutor recorreu à substituição para manter o sentido semântico dos versos do original. “” (cem Yue) foi bem substituído por “vastidão dos dois Kuans”, que é mais acessível para o leitor de chegada, porque, em português, “vastidão” tem o mesmo sentido que “cem” em chinês. No lugar de “” (sol frio) e “” (ocultar) foram postos respectivamente “sol pálido” e “declinar”, procurando manter a equivalência semântica pelo sacrifício da correspondência lexical. Os caracteres “” significam “nuvens flutuantes”. No entanto, a eliminação da palavra “flutuante” (), que se encontra em paralelo em relação à palavra “frio” (), parece atenuar seu valor metafórico, uma vez que tanto o “sol pálido” como as “nuvens flutuantes” sugerem a subjetividade de um poeta desterrado.
No último dístico, o tradutor optou por uma tradução mais livre tendo acrescentado “a pátria” e “essas bandas”, palavras que não estão no original, sem lhe alterar, no entanto, o valor conotativo. Além disso, foi substituído “” (volver a cabeça) por “volver os olhos”, para que a expressão fosse correspondente ao hábito idiomático do sistema de chegada.
Evidentemente, um poema clássico chinês como esse, que resulta de um contexto lingüístico e culturalmente tão diferente, não é possível de traduzir como simples troca mecânica de significados e de significantes por meio dos valores consignados num dicionário bilíngüe. Camilo Pessanha declarou ter recorrido a uma tradução literal – “tanto quanto a radical diferença entre o gênio das duas línguas o permite”[9] –, mas compreendia perfeitamente que a tradução não poderia ser feita com literalidade subserviente. Eis um princípio reconhecido pela maioria dos tradutores, tal como o poeta e admirável tradutor David Mourão-Ferreira declarava que “em poesia, sobretudo, uma tradução literal, servilmente literal, é um puro ato de ignomínia”.[10]
Camilo Pessanha era um grande poeta simbolista, cujo gênio e sensibilidade de poeta determina a qualidade poética dos poemas que ele traduziu. Em muitos casos, ele assumiu o papel de recriador, transformando palavras ou produzindo images/stories novas, o que enriqueceu as propriedades dos poemas originais. Atendamos a este verso:
de onde perfume de flores penetrar noite fresca
(“À noite, no Pego-Dragão”, , trad. literal)A versão de Camilo Pessanha apresenta-se assim:
De onde vem este perfume de flores,
embalsamando a noite puríssima?
A substituição do verbo “” (penetrar) por “embalsamar” tornou o sentido poético desse verso mais intenso. E veremos outro verso do mesmo poema:
no rio norte no rio sul sem limite o sentimento.
(Tradução literal)Camilo Pessanha desmontou as “peças” desse verso e montou de novo, reforçando mais o sentimento do poeta do que o original:
Embargam-me as saudades, violentas empolgando-me, do Kiang Pei e do Kiang Nam.
No prefácio das Oito elegias chinesas, Camilo Pessanha mostrava-se muito consciente de que “toda a composição poética chinesa é para o tradutor uma noz de casca dura”.[11] Segundo ele, as dificuldades deparadas na tradução podem ser sintetizadas em três pontos:
1) “O gosto exagerado pela alusão histórica ou literária, que numerosas passagens, e até, poemas inteiros, tenham duplo sentido – um superficial e direto e outro referido ou simbólico, erudito e profundo.”[12]
2) “A imprecisão da linguagem, que no chinês literário é qualidade fundamental, chegando as palavras a não ter significado próprio (…)”[13]
3) “Para mais, essa imprecisão é na dicção poética agravada pela concisão epigráfica (…) da mesma dicção.”[14]
Nesse sentido, é justo admitir que a interpretação de Camilo Pessanha sobre alguns versos é a “versão própria”, sem ter conseguido, a meu ver, a equivalência semântica no intersistema. É aceitável que a interpretação sobre um texto varie em função da disposição psicológica e experiência próprias de cada um, mas ela não se pode afastar da matriz constituída por esse texto.
Camilo Pessanha traduz este verso – “” – como “Vêm ainda ao seu terraço antigo” (“Sobre o terraço”, ). No poema original, a omissão do sujeito causa certa ambigüidade, mas, tendo em conta o contexto de todo o poema, o sujeito está esclarecido e deveria ser identificado como eu (o autor), em vez de ser os antigos: “Embora os antigos invisíveis, subo ainda ao seu terraço antigo”. Outro exemplo é a interpretação do verso: “” (“Fantasma da Primavera”, ). Esse verso, tal como todo o poema, descreve uma cena melancólica de despedida na altura da Primavera, sem nenhuma referência à chuva. Camilo Pessanha, apesar de conhecer a origem da locução ,[15] converteu esse verso como: “Pára o viandante a olhar. A chuva, que do arvoredo ainda goteja, vai-lhe repassando a túnica.” Contudo, parece mais lógico entender que “regar de pranto o vestido”, em vez de ser a “a chuva, que do arvoredo ainda goteja, vai-lhe repassando a túnica”.
A par desses exemplos, nota-se também uma interpretação deficiente do verso no poema intitulado “À noite, no Pego-Dragão” (), cuja tradução caractere por caractere é assim:
pousado corvo na montanha vazia soltar um gorjeio
A tradução parafraseada deste verso poderia ser: “Um corvo, pousado, solta um gorjeio, no vazio dos montes.” Como a ordem das palavras na linguagem poética é muito flexível e muitas palavras são polissêmicas, Camilo Pessanha enganou-se na interpretação do sentido da palavra “” (significa respectivamente céu, vazio, tranqüilo, falso, vasto etc., segundo contextos diferentes): “Em um covão do monte, um pássaro, poisado, ininterruptamente gorjeia.”
Nos poemas que Camilo Pessanha traduziu, tal como a maioria dos poemas clássicos chineses, o sujeito é normalmente omitido, assumindo assim uma forma impessoal que torna, em freqüentes casos, o poema mais implícito e ambíguo, fato que é considerado um dos aspectos encantadores da poesia clássica chinesa. Sobre isso, David Hawkes diz que “the content of Chinese proves equally refractory since the Chinese poet’s preference for impersonal statement can have the effect of an almost intrinsically time-less and universal quality”.[16] Essa preferência pela forma impessoal, para além de ser uma técnica poética, está relacionada com a filosofia chinesa que persiste em reduzir a subjetividade ao mínimo. É interessante que as regras gramaticais do chinês aceitam essa característica lingüística. Um leitor chinês, ao ler um poema clássico, não tem muita dificuldade em identificar quem é sujeito do poema. Mas essa característica lingüística não funciona com o mesmo efeito no sistema da língua portuguesa. Camilo Pessanha sabia disso e não tinha outra solução senão fazer aparecer o sujeito em toda a sua tradução.
A tradução das regras de prosódia e de retórica sempre foi uma dor de cabeça para qualquer tradutor, desvalorizando, quando mal feita, a transmissão correta da mensagem poética do poeta. Camilo Pessanha reconhecia em seu prefácio das Oito elegias chinesas que “o elemento sensorial ou musical, resultando de uma técnica métrica especialíssima (em que há sabiamente aproveitados recursos prosódicos de que as línguas européias não dispõem), é absolutamente inconversível”.[17] No entanto, James J. Liu, conhecido investigador da poesia clássica chinesa, defende, por sua vez, o princípio da “naturalização” e “barbarização”: “Naturalização significa tornar os poemas chineses em versos ingleses de acordo com as convenções da língua inglesa enquanto a barbarização significa remodelar a versão inglesa para que se adapte à estrutura da língua chinesa.”[18] Há tradutores que traduzem à maneira da “naturalização”, por exemplo, John A. Turner e António Feijó, que tornaram alguns poemas de Li Bai em sonetos. Mas a maioria dos tradutores, como Camilo Pessanha, sente na pele a impossibilidade de verter a técnica específica da poesia clássica chinesa, concentrando-se mais em transmitir a idéia e atitude do poeta.
A poesia clássica chinesa, ao longo da história, assiste ao aumento das restrições e das formas rigorosas, constituindo-se num sistema fixo de rima, sons, ritmo, métrica, paralelismo ou antítese. Vejamos esta quadra:
isolado solitário viver na choupana
triste e desolado recordar antigas vozes
verdelhão gorjear em terra não natal
cor de relva conturbar coração primavera
(“Soledade” , tradução literal)
Em chinês, cada verso tem cinco sílabas. O segundo e o quarto versos são rimados enquanto o primeiro e o segundo dísticos constituem paralelismo verbal. Por exemplo, no primeiro dístico, “isolado”, “solitário”, “viver” e “choupana” ficam em paralelo com “triste”, “desolado”, “recordar” e “antiga voz”, respectivamente. O segundo dístico desenvolve-se do mesmo modo. A versão de Camilo Pessanha eliminou todas essas características formais-estilísticas, uma vez que julgava inultrapassável esse obstáculo. F. Vanoye diz que “o valor poético do verso decorre das suas relações com o ritmo, com o sistema, com as sonoridades, com o sentido das palavras”.[19] No entanto, existem, de fato, zonas de intraduzibilidade que o tradutor não deve ser forçado a atravessar. Para salvaguardar a mensagem do original, o tradutor é obrigado a sacrificar a forma, porque uma tradução forçada pouco ajuda a preservação da mensagem,[20] como defende Nida, tradutor e lingüista consagrado.
Valéry considera que “o ideal da tradução poética consiste em produzir com meios diferentes efeitos análogos”.[21] Embora Camilo Pessanha sentisse a incapacidade de transpor as regras de prosódia da poesia clássica chinesa, não desistiu de sua obsessão pela musicalidade, procurando produzir, à luz das novas convenções lingüísticas, a força rítmica:
Deleita-me a solidão desta choupana…
Mas dói-me ao recordar vozes amigas.
Sim, geme o verdelhão, – mas em país de exílio.
Conturba-me a cor da relva o coração, que remoça.
No entanto, também se verifica que, com a vista a “trasladar com exatidão o que era trasladável – o elemento substantivo e imaginativo”,[22] Camilo Pessanha estava por vezes demasiado condicionado pela obra original, o que o levou a prestar atenção particular à interpretação do sentido denotativo e conotativo de cada vocabulário, fazendo cortes bruscos ou prolongamentos desmedidos. Alguns poemas originais, cheios de efeitos sonoros, parecem prosificados na versão de Camilo Pessanha. Essa tendência é mais notória na tradução de “Ascensão ao Miradouro do Kiang” () e “À noite, no Pego-Dragão” (), os quais, abundantes de referências históricas, geográficas e engenhosas na linguagem, conduziram o tradutor a se concentrar mais na interpretação dos sentidos.
Para além do ritmo e jogo das sonoridades, uma característica essencial da poesia consiste na construção das images/stories pelo recurso a um vasto capital de símbolos e de figuras de retórica, ou seja, metáforas, a fim de enriquecer os poemas de múltiplas sugestões.
Devido ao fato de a linguagem utilizada pela poesia clássica chinesa ser altamente metafórica e simbólica, surgem freqüentes casos em que uma palavra tem duplo sentido: um direto, concreto, e outro referido ou simbólico. Bem sensibilizado para isso, Camilo Pessanha escrevia em seu prefácio que “o tradutor que não esteja aparelhado com uma vasta cultura sinológica, navega em permanente risco de soçobrar de encontro a invisíveis, traiçoeiros cachopos”.[23] Por isso, “o valor de cada um desses componentes do discurso tem de procurar-se por tentativas, e só pode ser definitivamente aceite depois de encontrado o pensamento geral.”[24] O que quer dizer que o tradutor não poderá prescindir de uma óptica contextualizante nem da consciência histórica que faz reconhecer, em sua tradução, a transparência simultânea de toda a tradição da literatura. Nesses termos, a tradução de símbolos e metáforas não só envolve o sistema linguístico como também prioritariamente o contexto cultural.
Para decodificar os símbolos e metáforas constantes nas Oito elegias chinesas, Camilo Pessanha viajava, com muita paciência e dedicação, pelo mar da cultura chinesa, tentando captar a realidade que cada componente simbólico ou metafórico sugere. Ele recorreu à utilização de notas de rodapé como meio indispensável para fazer o leitor aceder a esses elementos, que são normalmente estranhos e exóticos no sistema ocidental. Por exemplo, ele explicava, respectivamente nas notas nº. 18 e nº. 22, o valor denotativo e metafórico das palavras “beldade” ( significa, no poema, homens de valor excepcional), “a amoreira e catalpa” ( significa terra natal), as quais, sem uma explicação devidamente feita no plano metafórico, se tornariam eventualmente incompreensíveis no sistema de chegada.
4. Na altura em que o ocidente ignorava a literatura chinesa ou a julgava inferior à dos europeus, Camilo Pessanha confessou-se um admirador fervoroso da cultura chinesa. Seu ato de traduzir poemas chineses, que era pouco usual acontecer no sistema literário português, constituía um reconhecimento da literatura chinesa e desempenhava um papel importante no sentido de aproximar as duas culturas radicalmente diferentes. Dedicou-se à tradução com muito rigor e cuidado, e procurava conservar, na medida do possível, os elementos essenciais inerentes à poesia clássica chinesa, revelando-se um tradutor/recriador. Mas ele não era tradutor que se limitasse a traduzir. Debruçou-se com muita paciência sobre a cultura chinesa, tendo fornecido ao leitor de chegada, por meio do prefácio e das notas, um enquadramento literário, histórico e geográfico. Eis uma atitude positiva de assumir uma distância cultural a fim de criar condições para encurtar essa distância.
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Notas:
[1] Sá Cunha, em discurso proferido na cerimônia de homenagem a Camilo Pessanha, que teve lugar no dia 1º de Março de 1999, no cemitério onde jaz o poeta.
[2] Pires, Daniel. Camilo Pessanha, prosador e tradutor. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1991. p. 16.
[3] Idem. Ibidem. p. 17.
[4] Pessanha, Camilo. Literatura chinesa. In: Pires, Daniel. Op. cit. p. 182.
[5] Idem. Ibidem. p. 181.
[6] Idem. p. 182.
[7] Idem. p. 182-183.
[8] Idem. p. 182.
[9] Idem. p. 182.
[10] Prado Coelho, Jacinto do. Ao contrário de Penélope. Lisboa: Bertrand, 1976. p. 69.
[11] Pessanha, Camilo. Op. cit. p. 184.
[12] Idem. p. 183.
[13] Idem. p. 183.
[14] Idem. p. 183.
[15] Na nota nº. 26 das Oito elegias chinesas, Camilo Pessanha explica que esta locução emprega-se geralmente conjugada com a palavra ,significando “regar de pranto o vestido”.
[16] Deeney, John J. Comparative literature from Chinese perspectives, cultural interflow-East and West. Shenyang: Liaoning University Press, 1990. p. 113.
[17] Pessanha, Camilo. Op. cit. p. 182.
[18] Deeney, John J. Op. cit. p. 150.
[19] Vanoye, F. Usos da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 143.
[20] Nida, Eugene A.; Taber, Charles R. The theory and practice of translation. Leiden: E. J. Brill, 1982. p. 5.
[21] Prado Coelho, Jacinto do. Op. cit. p. 69.
[22] Pessanha, Camilo. Op. cit. p. 182.
[23] Idem. p. 183.
[24] Idem. p. 183.