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João Adolfo Hansen conversa sobre crítica e literatura brasileira contemporânea

“Não acredito que a poesia caminhe para a irrelevância. Acredito que há poetas e poemas irrelevantes. Também que há sociedades irrelevantes, como a nossa. Hoje a poesia não é um valor. O que a boa poesia sempre fez? Produzir vazio, evidenciando a ficção que é o eu, impedindo que se delire com a linguagem das instituições, dando forma eficaz às maiores dores, fazendo a gente ficar espantado com a alternativa de outra vida etc.”

 

A POESIA

LUIS DOLHNIKOFF: Venho há algum tempo me referindo a certa pequenez generalizada que tomou conta da poesia brasileira. Acredito haver muitos modos de demonstrá-la. Um deles surgiu em uma conversa com a poeta Josely V. Baptista, em que ela me apontou a virtual impossibilidade de se fazer uma antologia forte de poetas contemporâneos. A antologia teria de ser, então, de poemas. Isso se torna mais significativo ao se pensar na quantidade vertiginosa de novos e não-tão-novos poetas. Mas eu iria além. Acredito que não conseguiria fazer sequer uma antologia rigorosa de poemas que não fosse muito fina. Teria, enfim, de ser uma antologia de versos. Porém, mesmo aí a coisa claudica. Porque, particularmente, leio e leio a poesia contemporânea, e o que leio passa por meu cérebro como água em uma peneira. Praticamente nada fica de realmente marcante. Mas nada disso seria um problema intratável se ao menos fosse visto como um problema. Quero dizer que não há atividade humana livre de sofrer períodos de queda de qualidade, pelos mais variados e muitas vezes incontroláveis motivos. O problema, penso, só se torna insanável ou quando a cultura em questão está em estado terminal, como a cultura grega à época de Paladas de Alexandria, ou quando, justamente, o problema sequer é reconhecido. Resolver o quê, como, por quê, se não há qualquer problema à vista? Não que o mero reconhecimento garanta a solução. Há problemas insanáveis. Mas o não-reconhecimento de um problema garante sua intratabilidade. E há uma atitude generalizada, parece-me, e na verdade quase unânime, não apenas de silenciar quanto à pequenez geral, mas de não se perder a chance de emitir elogios fáceis a esse ou aquele novo ou não-tão-novo poeta, numa larga e irrelevante (auto)satisfação morna. O que inclui, como regra, a crítica jornalística e a acadêmica, além, naturalmente, das manifestações dos poetas sobre seus pares. Pergunto, então: você acha que a poesia caminha para a irrelevância, ou, ao contrário, discorda frontalmente desse diagnóstico? Se sim, há algo a ser feito?

JOÃO ADOLFO HANSEN: Não acredito que a poesia caminhe para a irrelevância. Acredito que há poetas e poemas irrelevantes. Também que há sociedades irrelevantes, como a nossa. Hoje a poesia não é um valor. O que a boa poesia sempre fez? Produzir vazio, evidenciando a ficção que é o eu, impedindo que se delire com a linguagem das instituições, dando forma eficaz às maiores dores, fazendo a gente ficar espantado com a alternativa de outra vida etc. A grande poesia é sempre o exílio de uma recusa do que se dá como natural. Pensei, quando os norte-americanos causaram essa crise do capital, que finalmente os últimos vinte anos de tucanagem-yuppismo-politicamente-correto-multiculturalismo podiam finalmente morrer e que seria o momento de pensar por exemplo que arte queremos, pondo de lado a chateação insignificante das instalações, o repeteco dos pastiches, as coisas neo-neo-retrô escritas “à moda de”. No caso da poesia, sempre acreditei com Nietzsche e sem nenhum romantismo que ela se faz com o sangue da experiência. Que experiências temos hoje? O imaginário minguou com a Grande Saúde que veio com a desistoricização de tudo, fazendo eterno o presente da troca mercantil. Não temos passado e os passados se acumulam como arquivos de signos citáveis. E o futuro, principalmente ele, desapareceu da nossa competência. O jornalista toma a palavra. Quando a linguagem cotidiana é degradada e degrada as mínimas relações, qual a possibilidade de existir um Dante pra pôr os que cometem crimes contra a linguagem no Inferno? Temos uma ou duas gerações de poetas formados pela imprensa e pela TV. Não acredito que possamos, sem injustiça, culpá-los totalmente pela má poesia, pois também são homens e mulheres vivendo o mesmo estado de coisas. Alguns tentam, e acredito que muitos com honestidade, praticar seu ofício. Evidentemente, muitos são falados pelas coisas. E muitos são afetados, parecem blasés, leram todos os livros, acham que a carne é triste porque é gorda e fuma. Querem emagrecer e fazer exercícios. A ideologia da Grande Saúde + desistoricização + narcisismo + despolitização + plenitude = a cultura como a viadagem yuppie. Ora, grandes poetas são absolutamente impessoais. Todos eles inventam coisas que negam sistematicamente o dado imediato da experiência. Todos eles sabem que vamos morrer e falam da perspectiva da morte apostando que o presente passe logo. Como diz um deles, imaginemos uma nova ordem; ainda que seja uma nova desordem, não será bela? Não tenho nada a propor pra melhorar as coisas. Acho justo que essa sociedade tenha a arte que merece. Desejo que o presente passe. O que podemos é pensar a destruição.

A CRÍTICA

LD: Recentemente, um poeta de certo renome publicou num site literário um poema que considerei particularmente banal. Ao lê-lo, pus-me a analisá-lo. Não analiso todo poema que leio, naturalmente. Mas analiso, naturalmente, todo poema muito bom e todo poema muito ruim que leio. Ou seja, não consigo ler um poema muito bom nem um poema muito ruim sem me pôr a analisá-los. Porque chamam a atenção para suas características marcantes, ainda que marcantes em sentido inverso. Além disso, e afinal o mais relevante, fiquei instigado por uma possibilidade criada pelo meio: a crítica a quente e paralela. O link para o poema está ali, e ao seu lado surge, um ou dois dias depois, um link para sua crítica. É diferente do velho instituto jornalístico de réplica e tréplica, que parece, pela dilação do tempo, uma troca de cartas. Nesse caso, se assemelhava muito mais a um diálogo. Um diálogo crítico-criativo. Daí eu ter levado a coisa até o limite. Além de analisar o poema, o reescrevi, a partir da ideia de Pound da crítica via tradução. Fiz a crítica via recriação. O poeta, naturalmente, respondeu à minha crítica, e de um modo melhor do que eu esperava, sem se furtar a contra-analisar minha versão de seu poema. Em minha ingenuidade, imaginei estar inaugurando um espessamento do modelo. Em vez de poemas e textos meramente exibidos em paralelo num site literário, como chapéus numa vitrine, um diálogo crítico-criativo direto, nascido do e crescido no próprio site, que além disso faria renascer algum diálogo crítico-criativo quente e a quente em meio à mornidão geral. Um fermento no pão do hábito. O primeiro resultado prático, tão natural quanto irrelevante, foi o pipocar de manifestações dos amadores de plantão na seção de comentários, a maioria espantada por eu haver reescrito o poema (a despeito de analisar minha própria reescritura, não no sentido de elogiá-la, mas de poder realizá-la, pois se tratava, como dito cá e lá, de uma crítica via criação). O segundo, não natural, mas ainda irrelevante, foi eu me tornar em seguida persona non grata no site. Como se a pele dos poetas fosse hoje tão delicada que não suportasse o calor e/ou a proximidade da crítica não morna. O caso, apesar de tudo incidental, para mim demonstra várias coisas, algumas sem qualquer importância, outras potencialmente importantes. É justamente pela última consideração que transformo o caso numa questão teórica. A ausência de uma crítica mais rigorosa e vigorosa, que vem caracterizando nosso meio literário, e particularmente o poético, é causa ou efeito de seu relativo acanhamento criativo? Ou você discorda que exista algo parecido com isso (um acanhamento criativo)?

JAH: A crítica. Quais as condições materiais pra ela existir? É preciso pensar o que é o tempo, as ordens temporais que há no tempo, os modos históricos como o presente é vivido e pensado, o que se faz com o passado, qual é o futuro que se prevê ou se espera ou se quer negar. Quem é o crítico? O crítico hoje é um jornalista ou um professor. Os lugares institucionais de seu trabalho condicionam e mesmo determinam o que diz. Quatrocentos anos de colônia não é brincadeira, continuamos uma sociedade corporativa regrada por relações pessoais. Um texto publicado é evidentemente público, mas a crítica ou o dissenso são entendidos como ataque ao indivíduo, não ao autor, o nome do autor, a classificação da mercadoria. Confunde-se a coisa pública com a privada. Na universidade é o mesmo. Modelos de interpretação prestigiados são ensinados como se fossem a realidade pelos seguidores do grande crítico, que o diluem embaixo, na subserviência gregária. A miséria é infinita, sempre podemos supor que haverá mais um degrau abaixo. Qualquer discordância é traduzida como desrespeito ao homem. Assim, para falar de “acanhamento criativo”, seria preciso antes determinar o que seria o não acanhamento e as condições materiais pra ele existir, quero dizer, qual seria o critério de excelência artística. Eu não diria “acanhamento criativo”, pois “criativo” é idealista e incondicionado. O poeta come amendoim e tira ouro do nariz, mais ainda quando é funcionário público ou terceirizado. O paradigma da excelência é o quê, no caso da poesia brasileira? João Cabral-Drummond-Murilo-Bandeira-Oswald-algumas coisas dos concretos, do pessoal mimeógrafo, dos não tão novos, dos novos e novíssimos? Dá pra extrair deles todos um suco que seja um sumo, uma suma da experiência poética brasileira, que possa fundamentar um critério de excelência?

A PROSA

LD: Mudando da água para o vinho, ou da poesia para a prosa. Bernardo Carvalho, Cristóvão Tezza, Milton Hatoum, Chico Buarque. Este grupo representa, digamos, a prosa contemporânea de alto repertório. Ao lado dele, há outro grupo que, se eu chamar de baixo repertório (ainda que meramente em termos de certa inserção na tradição), serei chamado de fascista. Como não me importo do que me chamem, desde que não me chamem muito, ponho afinal, ao lado daquele, um grupo de baixo repertório, com nomes como Paulo Lins e Ferréz (que teve seus quinze minutos de fama e depois saiu dos radares, sem deixar de demonstrar, em alguns momentos, um talento maior do que a média de seus pares). Entre os dois grupos, vejo um terceiro, caracterizado, ao mesmo tempo, pelo médio repertório e por uma queda tardo-pequeno-burguesa para ainda tentar espantar a burguesia, para o que trata de se aproximar tematicamente do segundo grupo, em romances e contos escatológico-criminal-suburbano-esquisitos. A lista de autores aqui é grande, mas para mim não memorável. Quanto ao primeiro grupo, li recentemente com atenção os últimos livros de Bernardo Carvalho, Milton Hatoum e Chico Buarque (não tive vontade de me debruçar sobre o Tezza). Minha sensação é de que, nesse primeiro grupo ao menos, a prosa contemporânea, de um modo geral, se sai menos mal do que a poesia, nem que seja por certa competência artesanal. Mas, por um lado, isso não garante necessariamente muita coisa, dado o estado da poesia. Por outro lado, alguns me parecem, não obstante, particularmente fracos, como o notório Bernardo Carvalho, segundo acredito um dos muitos frutos mais ou menos recentes da aliança da crítica preguiçosa com as relações profissionais certas e com a presença forte dos releases das editoras. Você acredita que a prosa brasileira contemporânea vai menos mal do que a poesia brasileira contemporânea? Você concorda poder haver nomes que são fruto da aliança da crítica preguiçosa com as relações profissionais certas e com a presença forte dos releases das editoras?

JAH: A literatura é um presunto que, pra ser consumido, necessita de redes de produção, embalagem, distribuição, conservação, propaganda, aquisição, preparação, cozimento, degustação, digestão. O mais interessante do processo todo é o que sobra como obra. Releases funcionam nesse sentido, relações profissionais certas podem garantir o espaço de uma resenha feita por colegas de profissão. Certamente a ambiência confere existência. Mas não sejamos moralistas. Não tenho lido a prosa dos autores que menciona, estou atrasadíssimo nos gregos. Com exceção dos livros do Hatoum, que venho lendo desde o primeiro. Eles enfrentam uma matéria histórica local evidenciando de modo eficaz os buracos de sentido que é a memória. Acho eficaz politicamente a melancolia dele com o desencontro humano, pois evidencia a particularidade do ato da escrita para além do simples domínio técnico do material.

Outras coisas que não li mas só vi de relance me pareceram confessionais, turísticas e naturalistas como um Globo Repórter, e, naturalismo por naturalismo, preferi ir ao zoológico ver uns tamanduás-bandeira que me olharam com indiferença. Os outros, confesso que nunca li e não conheço, por isso não tenho opinião. Provavelmente a prosa possa ser mais eficaz que a poesia, pois é menos sintética, fazendo disso uma vantagem. A ordem temporal da narração é necessariamente analítica e os encadeamentos aparentemente são mais familiares: A marquesa saiu às cinco horas… Numa bela tarde de verão, o capitão… Na solidão do meu quarto, eu me olhava no espelho… As bombas estouravam sobre Nova York quando ele… etc. Já a poesia, bom, a boa poesia é aquele aboli bibelot d’inanité sonore.

O MOMENTO ATUAL

LD: Paulo Franchetti referiu-se recentemente à “demissão da crítica”. Os fatores determinantes para essa demissão, imagino, são muitos, incluindo a contratação de muitos professores universitários, reflexo, por sua vez, da proliferação de universidades. Pois a universidade, no Brasil, não é rigorosamente regida pelo mérito. Ou ela é estatal, ou é um caça-níqueis. No caso das estatais, o espírito do funcionalismo público é forte, além de cevado e cimentado pelo espírito de corpo e pelo burocratismo. A “regra de ouro” da moralidade, “não faça ao outro o que você não quer que lhe façam”, acaba reduzida a uma caricatura, “não faça nada que possa lhe causar qualquer problema”. Além disso, como hoje há tanta gente que quer ser poeta, e como há tantos empregos nas universidades, há muitos poetas que são professores universitários, ou muitos professores universitários que são poetas. E a regra de ouropel de ambas as classes é a mesma. A isto se deve acrescentar ainda o “especialismo” e os modismos acadêmicos, que delimitam o pensamento abrangente e debilitam o pensamento independente. Mas também se devem acrescentar, acredito, o multiculturalismo e o “politicamente correto”. O “politicamente correto” torna incorreto fazer reservas a essa ou aquela poética, enquanto o multiculturalismo torna “politicamente incorreto” não reconhecer sua importância. Cito um caso recente. Alberto Mussa traduziu diretamente do árabe os Muallaqat, ou Poemas suspensos, considerados os mais significativos poemas árabes do período pré-islâmico, o que não é pouca coisa. E o que aconteceu? Nada. E isso é, ou deveria ser, surpreendente. Não é todo dia que se publica poesia árabe no Brasil, e mais ainda, aquela que é considerada uma das mais relevantes realizações da poesia árabe. Ou seja, trata-se da chegada ao português de uma das obras poéticas mais significativas de uma língua pouquíssimo presente em nossa literatura. A tradução, na modernidade, não é considerada fundamental? Os influxos da língua de partida não enriquecem a língua de chegada? Não cresce o repertório da poesia em português? Então, o que aconteceu? Os famosos Poemas suspensos afinal não justificam, em termos propriamente poéticos, a sua fama? Ou o meio poético é tão amorfo e indiferente, atento apenas às próprias pequenezas, que não percebe um acontecimento como esse? O meio poético pode ser amorfo e indiferente, mas, nesse caso em particular, os poemas não ajudam. Pus-me a lê-los com tanto interesse quanto foi meu desinteresse depois de começar a leitura. É uma poesia cujas profundas idiossincrasias culturais, de um meio pastoril-arcaico e relações tribal-patriarcais e pensamento mágico-religioso, afinal não se materializam numa linguagem poética que a torne suficientemente interessante para o leitor contemporâneo. Mas dizê-lo em público é “politicamente incorreto”. Logo, não se diga nada, e vamos em frente. Há uma “demissão da crítica”? Quais as suas principais causas? O academicismo, o multiculturalismo e o “politicamente correto” estão entre elas? A crítica acadêmica e a crítica jornalística se “demitiram” do mesmo modo? As poesias nacionais em todas as línguas têm a mesma relevância poética? Como afirmá-lo, à falta de critérios universalmente aceitáveis?

JAH: Não vejo nenhum senão em um professor universitário ser poeta e vice-versa. Drummond foi funcionário público; Murilo Mendes, professor universitário; João Cabral e Rosa, diplomatas. E tantos outros. Como autores, não são oficiais. Como homens, não os conheci. Você não acha que falar de “espírito do funcionalismo público” é uma contradição nos termos? Mas tem razão, o corporativismo é um fato. Não é preciso aderir. Como me diz rindo um grande amigo, Freud mostrou que pra gozar é preciso matar o pai. Pois o gregarismo universitário é coisa de gente que goza com o gozo do pai. Prefere ser eunuca. Que fazer? Também sabemos com Freud que a sexualidade é mesmo uma variante posicional, não é? Na universidade, quando vejo o belo espetáculo gregário, penso como Virgílio com Dante: guarda e passa. Não acredito que um(a) cara gregário(a) possa ser grande coisa como poeta. Verdade que às vezes grandes autores são homens medíocres. E vice-versa. Já a crítica, sim, o gregarismo a faz demissionária porque os autores talvez temam ser demitidos. Há tanto desemprego no país. Mas o que chama de especialismo universitário é determinação de órgãos de financiamento de pesquisa sobre os quais os professores não têm controle. Evidentemente, a ampliação da demanda pela universidade implicou a redivisão do trabalho intelectual da divisão. Muitas áreas e especialidades novas surgiram. Acho legal a pluralidade, que caracteriza, justamente, a ideia de “universidade”. Verdade é que hoje os estudantes querem ser incluídos e lhes parece impossível estudar sem uma bolsa. Mas certamente é possível ser hiperespecializado sem perder o pé nas coisas. O politicamente correto é só uma ideologia de um país que nem nome próprio tem, pois é feito de pedaços unidos. Bobagem. A realidade não é texto, e os negros continuam sendo explorados quando não os chamamos de “negros”, mas de “cidadãos afro-americanos”. Quanto aos poemas árabes, diria com trocadilho que permaneceram suspensos. Mas, aqui entre nós, os árabes não são aqueles terroristas que o Obama está bombardeando no Paquistão? Você fala de “meio poético” que ficou indiferente à tradução do Mussa, que ficou muito legal. Pressupõe um sistema, um espaço de convivialidade, uma circulação de informações etc. Onde? Quanto ao que me diz sobre sua leitura dos poemas árabes, teríamos que discutir os regimes de historicidade da poesia. Aqui, justamente, acho que está o nó da questão da crítica. Não é possível lê-los considerando a historicidade deles como uma vantagem, não um ônus? Lê-los se despersonalizando num devir-árabe-pastoril-arcaico-mítico-religioso? Por que o presente tem que dar a última palavra sobre o interesse de algo estranho a ele? Porque é o único tempo real que temos? Falando do tempo, talvez hoje estejamos vivendo novos modos de ordená-lo, sendo ordenados por ele. A crítica é uma invenção iluminista, pressupõe um conceito determinado de tempo histórico como mudança cumulativa ou dialética do valor no presente que é, sempre, contradição a ser superada. A crítica antigamente era moderna e o valor estético que defendia continuava sempre inacabado, pois vinha do futuro. Era também do futuro que sopravam os ventos da revolução. OK, micou. Mas por quê? E o que fazer com isso? Nada? Isso não tem nada a ver com a produção artística de hoje? O tempo não atravessa a fala dos poetas como linguagem e morte? As coisas parecem indicar que agora o presente é contínuo e não passa. Hoje, ficou chato ser moderno, todos somos eternos na troca. Numa eternidade dessas, o que é a crítica? Pode haver crítica no sentido moderno da avaliação do valor? Ou ficou só encomiástica e descritiva, porque agora é indiferente o sentido de transformação temporal-cultural que a crítica antes pressupunha? Não seria preciso inventar novos instrumentos críticos pra dar conta das artes de um presente contínuo? Doutro modo, o crítico não ficaria preso a uma imagem de crítica que já passou, universalizando critérios de valor que não mais dão conta do presente? São questões, acho, que podíamos pensar.

Não saberia dizer se as poesias nacionais em todas as línguas têm a mesma relevância poética porque infelizmente não conheço todas as línguas. Mesmo em português, vivo numa pequena faixa estreita, sabendo que há incontáveis línguas não só portuguesas aprisionadas na língua portuguesa. Bons poetas e escritores as fazem falar em todas as línguas. Mas não tenho a mínima ideia do que seja um poema quirguiz, um poema arapaho, um poema hitita ou, ainda, um poema makonde ou marubo. Há boas traduções, os fluxos das trocas culturais se acumulam. Gostaria de pensar, como Goethe, numa literatura supranacional, transnacional, internacionalista, feita na fronteira do Paraguai com a Finlândia, que seria apenas humana.

PREMIAÇÕES

LD: Afirmei recentemente que os prêmios literários deveriam ter a capacidade de identificar autores promissores, o que os tornaria um fator real de estímulo à criação literária. Parafraseando Kennedy, não porque seja fácil identificá-los, mas porque é difícil. Ao ser difícil, mas não impossível, seria ainda mais relevante, justamente porque o fácil sempre há quem faça. Ao mesmo tempo, isso faria com que os prêmios deixassem de ser literariamente irrelevantes. Há vários países com prêmios literários nacionais relevantes em muitos sentidos, mas nenhum prêmio literário brasileiro, creio, é realmente relevante a não ser para promover uma noite mais ou menos de gala e a conta bancária do ganhador. É claro que isso se deve à histórica irrelevância da literatura num país cujas elites são filistinas e provincianas, e cujas massas são provincianas e analfabetas. Mas também se deve, acredito, ao fato de os prêmios não mudarem nada em tal paisagem deprimente. O que talvez fizessem ao arriscar em novos talentos, e ao lhes entregar certa soma significativa de dinheiro, sem qualquer contrapartida. Não seria uma bolsa para a realização de um “projeto”, mas um prêmio de fato. Um prêmio por promessa. O acerto ou não do prêmio se revelaria a posteriori. Se sim, além de uma medida objetiva de sua pertinência, haveria uma consequência real na paisagem literária. Pois dada a dificuldade de ser escritor num país como o Brasil, isso sem dúvida faria diferença nas condições de trabalho do ganhador por algum tempo. O que você acha dos prêmios literários brasileiros? Você acredita ser possível torná-los realmente relevantes, ou isso é irrelevante?

JAH: É só uma opinião, não um argumento. Não tenho interesse por prêmios, comendas, galardões, medalhas, homenagens. Acho coisa de medalhão e de aspirante a medalhão.

 

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Confira respostas de Mauricio Salles Vasconcelos para o mesmo questionário.

Confira respostas de Leda Tenório da Mota para o mesmo questionário.

Confira respostas de Aurora F. Bernardini para o mesmo questionário.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).