Retorno mais uma vez, e um pouco a contragosto, ao volume de contos Meu amor, de Beatriz Bracher. Mas, por quê? A primeira razão reside no fato de que toda visada crítica representa apenas uma leitura possível, e como escreve Wittgenstein, em texto cuja referência não sei mais onde recuperar: “(…) não existe uma ´última` explicação. É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última casa; pode-se sempre construir uma nova.” Resolvi, assim, acrescentar mais alguns tijolos visando à construção de um “puxadinho” junto ao gongórico prédio que tentei levantar anteriormente na tenção de ler a estréia de Beatriz Bracher na arte do conto.
A segunda razão é que à diferença de alguns críticos, que como resenhistas se revelam excelentes “orelhistas”, ou prefaciadores retardatários, me afino mais com a ideia de que o comentário demasiadamente elogioso produz mais indiscrições que a censura. Assim, escrevendo um pouco mais e nessa linha sobre o livro de Bracher, continuo respeitando-a mais ainda como escritora. Pois, o que acontece é que esses críticos hábeis em tirar ouro do nariz, escrevem sobre o seu objeto de análise com tantas ressalvas e comiseração que chego a suspeitar de que o que está de fato em jogo é antes a sua própria preservação do que a carreira do autor prefaciado, digo, resenhado. Também ao contrário desses críticos, minha abordagem não pretende ser a última, aliás, ela é relativa e relacional e, enfim de contas, tão irrelevante quanto a de qualquer outro, porque por mais inteligente ou casmurra que seja a explicação ou o comentário sobre uma peça literária, tal esforço jamais poderá substituí-la nem deprimir leituras que por (des)ventura não coincidam com uma leitura pretensamente mais catedrática ou ponderada. A leitura crítica surge para secundar a obra. Um livro não se deixa ler apenas porque é “bem vendido” ou suportado por sujeitos de reputação irretorquível. Enfim, qualquer leitura — e seria injusto dissociá-la das mínimas circunstâncias que nos estimulam a moldar e cristalizar um sentido para esse dispêndio de atenção exigido pelo texto, sentido que é inextrincável da perturbação do instante precário —, qualquer leitura tosca é preferível à exegese consagrada e consagradora do “controle institucional da interpretação” que, às vezes mais, outras vezes menos, é obra tocada, entre outros, pela academia, pelos jornalistas e colunistas da imprensa especializada, e pelas imposturas de eruditos cortesãos.
Como aqui se trata de um post-scriptum, tentarei ser menos prolixo. Serei breve, mas não por falta de espaço, situação que faz muitos colunistas se confundirem preenchendo o pouco de que dispõem mais com o parvo do que com o parco e o objetivo. Talvez por isso e mercê de uma leniência acovardada lancem mão de expressões disfêmicas que na verdade não dizem coisa nenhuma acerca do objeto, como por exemplo: “os textos são irregulares”; “o autor consegue unir ao apuro técnico algo de muito comovente”; “uma estréia que não teme os riscos da invenção”, etc, etc. E com isso vão enchendo o vaso de suas colunas semanais ou quinzenais.
Portanto, quero me deter apenas em mais dois contos, que representam transposições para a ficção de episódios indicativos da violência contra a criança e o velho nas relações mais familiares e cotidianas da sociedade brasileira. De outro modo, os contos discutem os meios pelos quais a crônica policial telejornalística e o noticiário em geral, irrigados com a nossa audiência, conseguem a um só tempo inflacionar e exaurir o que permanece oculto e achatado sob o horror aparente de certos acontecimentos. Ambas as narrativas têm como título a onomatopeia “Cloc, clac”1 , e se tocam por espelhismo, mas cada uma delas leva uma espécie de subtítulo fechado entre os parênteses. A primeira, que trata do assassínio de uma criança cometido supostamente pelo pai e a madrasta, se chama “Cloc, clac (crianças, a cidade e a sala)”; a segunda leva o título “Cloc, clac (o velho, o bebê, você, ela e eu)”, e registra em linguagem quase afásica — pois as images/stories captadas pelo olho da câmera oculta talvez sejam mais eloqüentes — o espancamento de um velho pela enfermeira que deveria lhe prestar todos os cuidados. Não acho que sejam os melhores nem os piores contos do conjunto de Meu amor. Detenho-me neles, porque alguns cacoetes estilísticos de Beatriz Bracher, já referidos em outro texto publicado aqui em Sibila, como que são tensionados ao limite do tolerável. Isto é, a autora insiste e mergulha de vez no simulacro de roteiro cinematográfico, na experimentação verbal como efeito decorativo e que não chega a lugar nenhum, no crédito dado a um real que recua sempre ao menor sinal de realismo bem intencionado, etc.
O primeiro conto tem duas partes distintas. Na parte inicial, o crime hediondo que vitima a criança, o noticiário urgente, a investigação jornalística e policial, a revolta popular contra os suspeitos, os pronunciamentos dos promotores públicos e dos advogados de defesa, as discussões da população telespectadora refletindo sobre as motivações da tragédia através dos argumentos fornecidos pelas equipes de jornalistas das redes de televisão, enfim, toda essa gama de discursos e situações é narrada como que em travelling por uma câmera onipresente. A câmera aponta para as circunstâncias e os desdobramentos do fato com uma objetividade rapace. Qualquer percalço, impasse, tremor ou desfocagem de imagem (no caso, de linguagem) conferem a narrativa um índice de maior envolvimento: tudo subsume numa histeria live. O texto de Bracher mimetiza essa varredura indiscriminada da narração-câmera no encalço de cacos e detalhes com vistas a prender o pensamento do sujeito numa atenção cega, enchendo-o de informações que instantes depois se dissiparão ao primeiro zapear — ou ao próximo virar de folha. Uma câmera-narrativa nervosa, tensa e que, no entanto, enerva o leitor-espectador (“enervar”: fazer perder ou perder a força, o vigor físico, moral ou mental; tornar(-se) inexpressivo, frouxo). Notar que os nomes dos jornalistas (deixo-os em itálico) formam seqüências aliterantes: o dela em / m / e o dele em / p /). E narra, assim, a câmera-woman, Beatriz Bracher:
O noticiáriio segue com outros assuntos. Depois volta para a frente da dellegacia, o casall Serddovi aparece em meio à agllomeração (…). Elees são comprimidos pelos popullares. O casall quase some no meio dos popullares. Elle e eela, o paai e a maddrasta da meninna jogada do 6o andar (…). A reppórter Maria Mara de Moraes, 25 anos, solteira, sem-filhos, narra o que se vê na tela da televisão (…). Os polliciais fazem um cordão de isolamento para conter os poppulares. O casall Serdoovi e o jovem advvogado entram no carro (…). O carro do casaal Serddovi afasta-se, a imagem balança, a câmera gira e para em um pollicial prendendo um dos poppulares (…). A cena sai do estúdio e vai para o edifício Vilaa London, que aparece ao fundo do reppórter Paulo Perneira Pontigo, 29, solteiro, 1 filho de 12 anos (…).
O caso das consoantes e vogais dobradas, além de aludirem à origem social dos envolvidos, surpreendentemente gente “de nível”; ao pedigree de fachada associado aos nomes estrangeiros — pois representam um adicional de ascensão —, indicam ainda o próprio jogo de duplicações de registros; o logro carniceiro de uma tragédia multiplicada em simultâneo através de todas as mídias e canais de televisão como que tornando-a “mais real”. A audiência estilhaçada faz eco às falas dos especialistas e pilantras de toda espécie mais ou menos envolvidos no caso, e convidados a dizer algo sobre o ocorrido. E mesmo o conto de Beatriz Bracher acaba por ser lido como uma imensa “letra dobrada” no assentamento de mais uma camada de signos por cima do ocorrido, um duplo imagético em forma de clipagem afetada; seus afetos se desdobram sobre a afasia e a afecção desse procedimento de linguagem, flexão vistuosístico-experimental onde tudo se resolve em tortografia, em expressionismo de segunda.
Em determinado momento o conto muda de tom. O trejeito das letras dobradas dá lugar a um excurso de teor mais interpretativo. O narrador, a pretexto de analisar a reação da sociedade diante da tragédia, leva à superfície do texto seu impulso de, agora, sim, chegar às entranhas da coisa. Mas a par disso, o narrador ainda sabe referir outro episódio atroz, onde assaltantes em fuga arrastam um menino preso ao carro pelas ruas de um subúrbio. A irracionalidade capturada pela narrativa-câmara-na-mão resta como um rumor de fundo. O narrador se compenetra, pede um minuto ao leitor. Mas o discurso que se segue ao silêncio é mais irritante do que propriamente vazio. O narrador não consegue ser senão um mero divulgador ou um esteta da estupefação, dos dilemas e das falácias argumentativas produzidas pela opinião pública que o circunscreve. Ele nos oferece uma profundeza purgativa, assemelhada àquela que esperamos encontrar nas colunas de, por exemplo, Marcelo Gleiser e de Contardo Calligaris, no caso de estarmos interessados respectivamente em informes ou noções gerais sobre física e psicanálise.
Na sala eles ponderam sobre a histeria que tomou conta da cidade, a necessidade de as pessoas saírem de casa e irem até a delegacia, até a frente do edifício onde o crime ocorreu, parece que apenas assim elas se sentem fazendo parte de uma história real, que existe porque sai na televisão, como se a vida apenas se formasse em história quando televisionada e escrita. (…) A interpretação do homem com gotículas no buço (…). Sua frase, “ele não desceu desesperado para abraçar a filha”, é repetida diversas vezes, na sala, com sotaque e ritmo que reforçam o pedantismo do homem. A repetição da frase e o tom farsesco a esvaziam definitivamente de qualquer verdade, não do seu conteúdo, pois que esse não é o foco da conversa (…).
O conto seguinte — irmão-siamês deste que acabo de comentar —, “Cloc, clac (o velho, o bebê, você, ela e eu)”, por sua vez, ata as duas pontas da vida, a meninice e a velhice, com o cordão da violência. Mas, aqui, Bracher se comove mais com o poder da linguagem, mais com o como escrever. A edição ou a textura do discurso pesam mais, até certo ponto, do que a história a ser transmitida. A linguagem, o escrito se forma e se dissipa numa oscilação algo maníaca e redundante. A narrativa se corrói a si mesma. O texto revem, revolto. Tresanda em círculos. A subjetividade da escritura se recusa a caber nas medidas torpes do que demanda a sua figuração verbal, em condição de denúncia e de apelo inócuo à razão. Uma vertigem de pontos de vista narrativos (vozes interiores e exteriores) que se entredevoram. O conto, penúltimo do volume, mais uma vez feito outros do conjunto, se parece a uma minuta de nouveau roman.
O que aconteceu que me fez tremer, não entender mais nada, ter medo de aparelho de televisão ligado e, depois, dentro do avião, soluçar de novo, o que eu vi dentro de mim, eu não sei o que foi, não sei como contar. O que aconteceu que te fez tremer, não entender mais nada, ter medo de aparelho de televisão ligado, você não sabe o que foi, não sabe como contar. O que aconteceu e a fez tremer, não entender mais nada, o que ela viu dentro de si, ela não sabe o que foi, não sabe como contar.
Bracher, dublê de contista inconformada, que a um só tempo denuncia a violência do real — flutuando na visualidade sem fundo da imagem televisiva — e o desestrutura por meio de tiques de linguagem, exercita a sua arte-sintoma dentro do presumível e do tolerável reservados à prosa contemporânea. Como anota Luis Dolhnikoff, Meu amor é sinédoque de uma dinâmica de relações literárias cujo mecanismo de legitimações recíprocas supõe uma reserva de mercado branca. Mas, então, eles que se entendam. Pois, em se tratando de boa prosa, é preciso desprezar no mínimo dois terços da produção conhecida. A prosa ruim se acha no horizonte criativo da maioria dos seus praticantes. Portanto, e exceto quando tentam nos impingir este ou aquele nome, este ou aquele grupelho, não há a menor necessidade de inteirar-se a seu respeito. E sem o menor detrimento da prosa que interessa.
Nota:
1. “A cada nova criança morta a corrente é puxada para superfície (…) e depois a corrente é solta e afunda levando junto o novo corpo (…). Sabemos que a correnteza continua a mover-se, pra frente e para trás, seu barulho, cloc, clac, diminui e mistura-se aos barulhos do ordinário de nossos dias”. (Meu amor, pág. 124)