Mauricio Salles Vasconcelos conversa sobre crítica e literatura brasileira contemporânea
A poesia
Luis Dolhnikoff: Venho há algum tempo me referindo a certa pequenez generalizada que tomou conta da poesia brasileira. Acredito haver muitos modos de demonstrá-la. Um deles surgiu em uma conversa com a poeta Josely V. Baptista, em que ela me apontou a virtual impossibilidade de se fazer uma antologia forte de poetas contemporâneos. A antologia teria de ser, então, de poemas. Isso se torna mais significativo ao se pensar na quantidade vertiginosa de novos e não-tão-novos poetas. Mas eu iria além. Acredito que não conseguiria fazer sequer uma antologia rigorosa de poemas que não fosse muito fina. Teria, enfim, de ser uma antologia de versos. Porém, mesmo aí a coisa claudica. Porque, particularmente, leio e leio a poesia contemporânea, e o que leio passa por meu cérebro como água em uma peneira. Praticamente nada fica de realmente marcante. Mas nada disso seria um problema intratável se ao menos fosse visto como um problema. Quero dizer que não há atividade humana livre de sofrer períodos de queda de qualidade, pelos mais variados e muitas vezes incontroláveis motivos. O problema, penso, só se torna insanável ou quando a cultura em questão está em estado terminal, como a cultura grega à época de Paladas de Alexandria, ou quando, justamente, o problema sequer é reconhecido. Resolver o quê, como, por quê, se não há qualquer problema à vista? Não que o mero reconhecimento garanta a solução. Há problemas insanáveis. Mas o não-reconhecimento de um problema garante sua intratabilidade. E há uma atitude generalizada, parece-me, e na verdade quase unânime, não apenas de silenciar quanto à pequenez geral, mas de não se perder a chance de emitir elogios fáceis a esse ou aquele novo ou não-tão-novo poeta, numa larga e irrelevante (auto)satisfação morna. O que inclui, como regra, a crítica jornalística e a acadêmica, além, naturalmente, das manifestações dos poetas sobre seus pares. Pergunto, então: você acha que a poesia caminha para a irrelevância, ou, ao contrário, discorda frontalmente desse diagnóstico? Se sim, há algo a ser feito?
Mauricio Salles Vasconcelos: A criação de poesia no Brasil se encontra no vórtice de uma série de mutações escriturais, culturais e geopolíticas, envolvendo uma outra noção de historicidade em tempos globais. Insufla novas refigurações de linguagem e posturas cotidianas do ato de escrever. Quero dizer: novo depois da sedimentação do pós-moderno como estilo corrente, neutralizado até se consolidar em modo imperante, generalizador de práticas referentes a todos os domínios de cultura e saber.
Escreve-se com uma máquina. A escrita requer hoje, de modo direto mas não linear, essa operacionalidade maquínica. Já se articula numa disposição conceitual-instrumental em rede, que induz a incessantes reconfigurações do lugar e do timing da letra no interior de uma outra materialidade, decisiva para uma execução e recepção diferenciadas do que podia se entender, até então, como texto (mesmo como literatura).
Não obstante, a trilha multinformacional aberta à escrita e ao contexto pluralista, não dialético, das relações literárias com as outras artes e as diversas áreas do conhecimento (incluindo de forma frontal a tecnologia e, no seio do mundo mundializado, o contato com outras formas de cultura), a concepção vigente de poesia se mostra bem aquém das potencialidades de realização. Diferentemente do que viabilizam as esferas criativas e relacionais do tempo presente. Presa, ainda, de uma vaga acepção “pós-moderna”, nossa poética não efetivou a passagem inventiva e crítica para o novíssimo século-milênio, que carrega em sua passagem tanto processos irresolvidos, até agora irremovíveis, quanto outros desafiadores ao pensamento e à arte por seu ineditismo. Pulsa numa cadência reformuladora dos padrões da modernidade, dentro de uma moldura acadêmica, por demais escrita, emparedada pelo espaço cerrado, monovalente, do discurso literário. A postura antiliterária acabaria, também, por conduzir a uma mais que vista incursão pelo espontaneísmo, pela monologia confessional, quando não “contestatária” (no andamento dos discursos muito bem situados “à margem”). Por outro lado, a mera acopaglem à hora informática poderia ser formulada por um fetichismo maquinal, tão-somente instrumental do aparato da techné.
Mesmo sem abandono da linha poética, a atual conjunção de forças estéticas e culturais favorece o ingresso na gravitação de signos e realidades conceituais condizentes com esta época multiforme, incitadora ao experimento (não aquele com as datas vencidas das vanguardas tão reconhecíveis em fatura e forma). No entanto, o que se lê, de modo frequente, forma um muro-de-som monocórdio e autocomplacente. Tende a ser apreendido como produção irrelevante, tautológica, facilmente descartável, seja pela pirotecnia formalista seja pelo recauchutamento da metalinguagem ou da paródia post.
O depois, a finitude, a catástrofe e as constelações nascentes de um período milenar, timbrados pela distopia, mas, também, pela anunciação de formações de vida e inteligência criativa, não se deixam ler na atual pauta dos poetas nacionais. O literário, instituído da poesia à prosa, como modelo garantido por editoras, em pacto com o serviço ordinário da empresa-imprensa, prontamente avalizado pela universidade, em sua grande parte desatualizada e pouco crítica, acaba por se restringir a um círculo autogerador de posturas previsíveis. Esse círculo vicioso e nocivo estabelece um anteparo ao que, de fato, pode e promete a poeticidade em um tempo como o de agora.
A crítica
LD: Recentemente, um poeta de certo renome publicou num site literário um poema que considerei particularmente banal. Ao lê-lo, pus-me a analisá-lo. Não analiso todo poema que leio, naturalmente. Mas analiso, naturalmente, todo poema muito bom e todo poema muito ruim que leio. Ou seja, não consigo ler um poema muito bom nem um poema muito ruim sem me pôr a analisá-los. Porque chamam a atenção para suas características marcantes, ainda que marcantes em sentido inverso. Além disso, e afinal o mais relevante, fiquei instigado por uma possibilidade criada pelo meio: a crítica a quente e paralela. O link para o poema está ali, e ao seu lado surge, um ou dois dias depois, um link para sua crítica. É diferente do velho instituto jornalístico de réplica e tréplica, que parece, pela dilação do tempo, uma troca de cartas. Nesse caso, se assemelhava muito mais a um diálogo. Um diálogo crítico-criativo. Daí eu ter levado a coisa até o limite. Além de analisar o poema, o reescrevi, a partir da ideia de Pound da crítica via tradução. Fiz a crítica via recriação. O poeta, naturalmente, respondeu à minha crítica, e de um modo melhor do que eu esperava, sem se furtar a contra-analisar minha versão de seu poema. Em minha ingenuidade, imaginei estar inaugurando um espessamento do modelo. Em vez de poemas e textos meramente exibidos em paralelo num site literário, como chapéus numa vitrine, um diálogo crítico-criativo direto, nascido do e crescido no próprio site, que além disso faria renascer algum diálogo crítico-criativo quente e a quente em meio à mornidão geral. Um fermento no pão do hábito. O primeiro resultado prático, tão natural quanto irrelevante, foi o pipocar de manifestações dos amadores de plantão na seção de comentários, a maioria espantada por eu haver reescrito o poema (a despeito de analisar minha própria reescritura, não no sentido de elogiá-la, mas de poder realizá-la, pois se tratava, como dito cá e lá, de uma crítica via criação). O segundo, não natural, mas ainda irrelevante, foi eu me tornar em seguida persona non grata no site. Como se a pele dos poetas fosse hoje tão delicada que não suportasse o calor e/ou a proximidade da crítica não morna. O caso, apesar de tudo incidental, para mim demonstra várias coisas, algumas sem qualquer importância, outras potencialmente importantes. É justamente pela última consideração que transformo o caso numa questão teórica. A ausência de uma crítica mais rigorosa e vigorosa, que vem caracterizando nosso meio literário, e particularmente o poético, é causa ou efeito de seu relativo acanhamento criativo? Ou você discorda que exista algo parecido com isso (um acanhamento criativo)?
MSV: A poesia pode tudo. É nodal. É o axial (Waly Salomão). Há, claramente, um controle da inventividade, do poder de materialidade e beleza do trabalho poético por parte da crítica e dos produtores de poesia, favorecendo, em proveito próprio, um desempenho parcial, restritivo, de um sem número de fontes e forças, sem as quais não existe criação.
Desde os anos 1980, se mostra bem visível a prática de uma escrita culta nesse campo, mais do que necessária para marcar um contraponto à lamúria, à autoindulgência da chamada “poesia marginal”, fruto muito bem-vindo no período da ditadura, que trouxe todo um vitalismo e uma consciência contemporânea e atuante essenciais. (Havia um problema, contudo, pelo fato de que se editava de modo independente, existindo com isso uma facilitação na escrita, na publicação, ocasionando uma ausência crítica).
Desse momento, vêm, entretanto, uma marca de subjetivação e um uso apropriador do legado moderno, muito bem desenhados no trajeto de Ana C. [Ana Cristina Cesar], uma autora que revelava, também, uma convivência com a cultura poética de um modo inigualável entre os poetas surgidos nos últimos trinta anos. Na produção de César, o dado da imediaticidade, de circunstância, comum aos poetas “independentes” da década de 1970, se combinava com uma especulação escritural, fundada em tradições/traduções. Ela operava uma pauta de atualidade e incursão vertiginosa pela letra em conexões com o corpo, o cotidiano, as esferas midiáticas, fornecendo altas taxas de informação teórica e estética por meio de uma atitude investigativa que lançava a postura de vanguarda às órbitas da história do século xx a caminho do seu final. Tudo anotado – como uma estenografia do instante, o alinhar heterodoxo de uma pauta – a partir de uma amplitude de repertório, de uma pregnância existencial, ressoantes até o dia de hoje.
Numa dimensão só comparável à abrangência de procedimentos buscada por Glauber [Rocha], que pensava numa brasilidade nutrida da melhor teoria e dos maiores inventos da linguagem cinematográfica, bem diferentemente do que se desdobra em nome do Brasil e do cinema na cena atual, a pauta de Ana C. não passou por atualização. Apesar de agora assistirmos a uma série de meninas-poetas (e de alguns homens, também) tentando perseguir seu itinerário – resultando apenas em evocações e figurações pálidas, destituídas de estilo e senso histórico –, a formulação de Ana se mostra cada vez mais presente. Aponta para a escrita um empenho de linguagem coextensivo a outros campos artísticos e teóricos, com uma atenção aguçada para a historicidade em que a linha poética se move. Há, no momento em que ela produz seus livros, um debate sobre a subjetividade na história, as políticas do desejo. Todo um universo de linguagem se abre para intervenções em todas as esferas discursivas, em consonância com a chamada vida material.
A partir de 1980, preponderou um recorte apenas estilístico, literário, da dimensão contemporânea em que se situavam arte e cultura, consolidando-se tal atitude na década seguinte. Uma tênue noção de pós-modernismo conduziu nossa poesia para uma reciclagem de temas e tropoi em circuito fechado, todos eles referentes ao estrato monolítico de uma linguagem tomada em nome da essência, através de uma estratégia reduzida à autorreferencialização. Como se aí habitasse uma atualidade nessa defesa dos domínios linguajeiros ao modo de uma prova de valor pela qual todo poeta novo deveria passar. Tal postura ocasionou o beletrismo em que majoritariamente se encontra estagnada toda uma produção, benéfica para os usos acadêmicos de uma crítica resguardadora de um estado de coisas discursivas, referendada em mais um novo-mesmo poeta que surge, sem lastro conceitual, a repetir a ideia vigente de escrita. Falava-se muito em vigor, existindo antes de tudo ausência de vigor, ou seja, a inoperância de uma produção criativa e cultural nos sentidos mais amplificados e diversificados de linguagem.
A pauta agora é outra. Não à toa, alguns desses poetas dos anos 1980-1990 perseguem, no momento, uma outra dicção, pois no panorama-biblioteca só se salvaguardam títulos e não a vitalidade da letra extensiva a um corpo e a um corpus refratários às etiquetas do tempo. Para que o poeta faça sua própria crítica e encontre interlocutores teóricos na gradação da aventura criadora se mostra urgente o abandono de discursos unilaterais, favorecedores das contendas provincianas, facciosas, que dividem a linguagem entre o eu e o outro, subjetividade e política, arte e pensamento, algo tão típico do Brasil.
Assim como deveríamos nos fortalecer em termos de atuação e representatividade, contrapondo-nos ao intocável governo atual, com a afirmação de que “nós somos os políticos”; os escritores podem, também, construir um campo autônomo de poeticidade e pensamento, de linguagem e política. Libertos ficariam do aval de uma crítica tanto jornalística quanto universitária identificada com a preservação de um espaço ínfimo, regulador, da criação. “Fracos das pernas”, os poetas saem em busca de seus críticos para a composição dos mesmos livros e espaços na imprensa, na universidade. Quando seu universo de linguagem poderia conduzi-los para passadas amplas e firmes na vida. A poesia não está nos autores. “A carta do visionário”, de 1871, ainda não foi lida, apesar das traduções e das fruições maudites de Rimbaud. Não interessam os autores, mas o trabalho da poesia. Para além da ideia de si. Uma contemporânea como Lyn Hejinian é tampouco lida, quando assinala, em My Life, que pouco se produz, pouco, também, se recolhe no cômputo do tempo, quando o interesse se dirige para a fama e outros ganhos.
Ninguém se trabalha pra valer. Penso que há um problema sério no Brasil de desvalorização da arte. Sob a égide do fim da arte, subsiste, contudo, um modo multiplicador em que as formas são criadas e requerem um investimento decisivo de atitudes, impensáveis de serem coroadas como o modo acadêmico em vigor do que vem a ser um trabalho bem sucedido. Não há um único modo de acontecer o que ainda se concebe como arte. Com a predominância da economia sobre todos os regimes de vida e cultura, confunde-se a força que advém da poesia com aquela da legitimação em vigência.
Neste momento de globalidade, sob a crise das hegemonias e os enfrentamentos políticos mundiais em tempo real, há todo um painel a ser repensado. Global significa lidar com as conjunções, as fronteiras. Sloterdijk está cheio de razão – uma razão mais recente, nada especificamente alemã – quando diz que pensar o grande, após a crítica das “grandes narrativas”, está em pauta de um modo bem urgente. Em Palácio de cristal: Para uma teoria filosófica da globalização [Relógio d’Água, 2008], ele reconsidera as totalidades, as grandes conjunções pelo fato de o grande não ter sido suficientemente grande, de não ter captado o desmedido, o processar caosmótico das potências que dizem o homem. O dito homem, aliás, se encontra neste agora global numa refiguração de episteme. Surge todo um debate acerca da ética, de uma noção mais ampliada e múltipla de humanidade, que demanda um mapeamento do campo do saber e da arte. A poética se revela mais do que presente ao se exercer em face dos estamentos geopolíticos da mundialização, propiciando através da noção de globalidade um extracampo de forças e simultaneidades a serem reconfiguradas numa orbitação impensada de esferas.
O lugar da arte se revela central em detrimento da economia, do arrivista-artista em circulação nos departamentos da poesia a promover seu marketing monológico autoral. Crítica não é opinião, já dizia muito bem a teórica portuguesa Silvina Rodrigues Lopes. Pede empenho, trabalho sobre si. Assim como a poesia se revela como pensamento desmedido, em investigação de um mundo que muda de face a cada pulsar instantâneo. Não por acaso, vem da arte o potencial imaginativo mais amplo e interventivo, o mais político, na sua capacidade de evocar paralelismos e a multiplicação de possibilidades/potências. De seu universo, e especialmente da poesia, provém a orquestração de planos sonoros, imagéticos e conceituais propícios aos domínios conviviais, comportamentais, comunitários novos. Tal como vemos, ouvimos e lemos nas órbitas do maquinismo contemporâneo, necessitado que é da largueza de posturas e planos, do manancial criativo proveniente da forma-livro.
É sabido que a tecnoesfera redesenha os modos de reunião e formalização contidos no livro sempre por vir, infinito e imaterial, pensado por modernos como Mallarmé e Blanchot, e, mais recentemente, pelo norte-americano Danielewsky e pelo português Herberto Helder. Livros cada vez mais criativos e acessadores de sentidos, que pedem um investimento de grandeza e gradações amplificadoras no que diz respeito a criadores e críticos, muito além da pequenez dos procedimentos correntes nos modos de ler, fazer e viver a poesia no Brasil. Livros “sem obra”, mas com o trabalho concreto, visível para todos depois do moderno e do pós-moderno. Justamente, nesta hora que passa e refaz figuras e atos sedimentados (mesmo aqueles existentes em nome do outro, do novo).
A prosa
LD: Mudando da água para o vinho, ou da poesia para a prosa. Bernardo Carvalho, Cristóvão Tezza, Milton Hatoum, Chico Buarque. Este grupo representa, digamos, a prosa contemporânea de alto repertório. Ao lado dele, há outro grupo que, se eu chamar de baixo repertório (ainda que meramente em termos de certa inserção na tradição), serei chamado de fascista. Como não me importo do que me chamem, desde que não me chamem muito, ponho afinal, ao lado daquele, um grupo de baixo repertório, com nomes como Paulo Lins e Ferréz (que teve seus quinze minutos de fama e depois saiu dos radares, sem deixar de demonstrar, em alguns momentos, um talento maior do que a média de seus pares). Entre os dois grupos, vejo um terceiro, caracterizado, ao mesmo tempo, pelo médio repertório e por uma queda tardo-pequeno-burguesa para ainda tentar espantar a burguesia, para o que trata de se aproximar tematicamente do segundo grupo, em romances e contos escatológico-criminal-suburbano-esquisitos. A lista de autores aqui é grande, mas para mim não memorável. Quanto ao primeiro grupo, li recentemente com atenção os últimos livros de Bernardo Carvalho, Milton Hatoum e Chico Buarque (não tive vontade de me debruçar sobre o Tezza). Minha sensação é de que, nesse primeiro grupo ao menos, a prosa contemporânea, de um modo geral, se sai menos mal do que a poesia, nem que seja por certa competência artesanal. Mas, por um lado, isso não garante necessariamente muita coisa, dado o estado da poesia. Por outro lado, alguns me parecem, não obstante, particularmente fracos, como o notório Bernardo Carvalho, segundo acredito um dos muitos frutos mais ou menos recentes da aliança da crítica preguiçosa com as relações profissionais certas e com a presença forte dos releases das editoras. Você acredita que a prosa brasileira contemporânea vai menos mal do que a poesia brasileira contemporânea? Você concorda poder haver nomes que são fruto da aliança da crítica preguiçosa com as relações profissionais certas e com a presença forte dos releases das editoras?
MSV: A prosa não anda em pauta diferente da acanhada produção poética, ao fim destes primeiros anos 2000. Acaba por revelar o que se percebe na produção artística brasileira, gritantemente no cinema e na música. (Artes cênicas e plásticas mostram maior vitalidade e variedade de registros, de recursos). Uma disciplinarização do lugar autoral se apresenta vinculável a procedimentos de normativização do saber-poder legitimados e visibilizados. Leem-se em autoral um desenho administrativo-editorial, um desígnio resenhado por jornais-corporações, finalmente acolhidos pela comunidade acadêmica como código e cânone.
O que se observa é uma correção de tom na prosa. Há uma homogeneidade na manutenção de um padrão médio acerca do que se imagina como o Brasil, do que se entende como narrativa. Nada próximo de um alto repertório, pois a grande qualidade pode provir de um referencial baixo ou elevado. Talvez haja até uma preocupação com uma elevação culturalista e discursiva nesse sentido, porém o resultado longe está de uma literatura com grandes voos e resultados. Há que se buscar o novo deste tempo, que não é mera reciclagem de estilos – no compasso de uma desgastada reescrita de textos-chave da história da literatura –, muito menos o retorno a algum fundamento classicizante ou disciplinar (como por exemplo a sociologia que dá prêmio ou o romancear da história nos moldes metadiscursivos levados à exaustão). Interessa o que é só de agora, como está na etimologia da palavra “moderno”, e se refaz para além da adequação a uma ideia inconsistente e infindável de tardomodernidade.
Entre os autores citados na questão, penso que Bernardo Carvalho é um dos poucos produtores de narrativas surgidos da década de 1980 para cá que merecem atenção, pelo fato de ser o mais preparado, o mais culto e abrangente na sua leitura da arte e da cultura atuais. Nem sempre há equilíbrio em sua produção. No entanto, livros como Medo de Sade e Nove noites vão além da moldura pós-borgeana em que seu trabalho vinha se mantendo, jogando de modo criativo com a história e a paródia, a pesquisa e as formas do falso. No que envolve, também, as relações entre escrita e viagem, há formulações intrigantes em seus livros, muito acima do registro-padrão nacional.
Penso que há uma matriz inventiva da prosa ficcional no Brasil, acentuada a partir dos anos 1970, que repercute nos melhores momentos de Bernardo Carvalho. É pena que não seja desdobrada, atualizada. Um veio trilhado por José Agrippino de Paula e Rubem Fonseca (uma década antes), prosseguido por Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll e Valêncio Xavier, de forma muito própria, com grande potencial de linguagem e abertura na visão do Brasil contemporâneo. Um livro essencial – um dos títulos mais incríveis publicados nos últimos dez anos – como Sexo provém dessa vertente, mas parece não ter resultado numa consequência produtiva para o próprio autor, André Sant’Anna. Fica como um belo, raro exemplo do que pode a narratividade no Brasil, em seu poder de leitura de nossos arquétipos sociais, comportamentais, sexuais, sem perda de foco crítico e experimentalismo.
Curiosamente, é com José Agrippino de Paula que dialoga André Sant’Anna, em Sexo, como se vê nas etiquetas prototípicas da sexualidade e da sociabilidade, num certo andamento pop, extraindo força, também, das multidões de corpos à deriva, em desregramento, bem próximo de Lugar público, não apenas de Pan América: Epopeia. Uma referência que vem, aliás, de Sérgio Sant’Anna, um entusiasta e interlocutor das melhores conquistas criadoras do autor de Pan América, como se lê no seu primeiro grande livro, Confissões de Ralfo: Uma autobiografia imaginária. Sérgio Sant’Anna vem dando, aliás, sequência ao que seria a continuidade de um trabalho inaugurado por José Agrippino, caso ele não interrompesse sua atividade de escritor. A postura de Sant’Anna merece ser não só destacada, mas destrinchada para bem da nossa atualidade, da capacidade de leitura da Tragédia Brasileira aliada a um alto grau de inventividade e pesquisa. A escrita narrativa precisa de um corte conceitual à altura do saber existente em nossa época, sem ser cerebral e teorizante (como ocorre no proseado de alguns escritores profissionais). Muito ao contrário, Sérgio Sant’Anna está bem aí.
Recuperando-se certos títulos como Armadilha para Lamartine, Quatro-olhos, A rainha dos cárceres da Grécia, Qadós, só para ficarmos na década de 1970 e não falarmos, um pouco mais atrás, de Samuel Rawet, Maura Lopes Cançado, Campos de Carvalho, visível se mostra a pequenez do atual panorama da narrativa no século xxi. Isso sem falar do livro inigualável, inquietantemente contemporâneo que é Lugar público, mais até do que Pan América, extraordinário e inaugural, portador, contudo, da marca de uma estética de época. Tenho pessoalmente mais interesse, como estudioso e produtor de narrativas, pelas cadernetas onde José Agrippino escreveu Os favorecidos de madame Estereofônica do que pela produção dos autores em circulação. Pois vem dali um compromisso com a experimentação e não com as demarcações de interesse por um lugar midiático e cultural ativado por imprensa-mercado editorial-universidade, um circuito reprodutor do mesmo tipo de atitude pretensamente autoral, destituída de radicalidade e investigação. É o que mais falta e deveria ser a busca de toda prosa.
De um modo muito curioso, na cena cultural de hoje a afirmação da arte se mostra como um dos atos mais políticos e libertadores, pois em sua esfera se trava contato com vários planos de atuação e conhecimento. Esse comprometimento possibilita a refiguração de corpos e modos de ser-viver numa época altamente indagativa e convidativa, como a de agora, à criação, em que tudo está por acontecer.
Nomes como Sérgio Sant’Anna são uma raridade. Ele não para de se repensar, lançando-se a investigações, inclusive, na área teatral, por onde incursionou nos anos 1980 com Ensaio no 1, de Bia Lessa. Veja-se sua presença como autor e atuante na peça O auto da defunta nua (através de sua imagem videográfica de autor no meio da cena), atualmente em cartaz em São Paulo. Onde se encontram textos melhores do que em O monstro? No entanto, não houve nenhuma matéria de capa nos cadernos ilustrados ou de variedades sobre esse evento que é o ato de Sant’Anna na praça Roosevelt. Os que menos aparecem são os autores, de fato, importantes. Aqueles hiperfotografados nas celebrações apequenadas do mesmo, da mesma cena, nada acrescentam a não ser a seu capital cultural, segregador de vida inteligente, trabalho amortecido neles mesmos, cada vez mais para dentro do mercado dos rostos congelados.
Mais uma vez se torna claro que são autores e livros como Lugar público e O monstro, obscurecidos pelo marketing concentrado nos “literatos de prêmio” (como está numa canção esquecida de Capinam), que vão interessar, passado o tempo das autopromoções. Vão estar entre os escritos que vibram inquietações, investigações sobre a arte, o lugar obscuro que é o Brasil, o interesse pela leitura, e não nos retratos panorâmicos, demarcadores de territórios regionais e culturais, quando não em exposição da vida pessoal, através do apelo verista à autobiografia. A narrativa do Brasil ainda está envolvida com uma ideia de verdade e testemunho totalmente inserida na cultura interativa, do reality doc. show. Não enfrenta, entretanto, o poder de fabulação obtido pelo império áudio-visual cotidiano, no país da telenovela, em que pouco se lê.
É o que parece esboçar a pouca informação conhecida sobre Os favorecidos de madame Estereofônica, um longo e fragmentário texto em torno do universo televisivo. Uma dimensão ficcionalizadora que se presentifica em Pynchon e já foi pontuada por Puig e Cabrera Infante, em relação à cultura da imagem, no contexto das Américas. Enquanto isso, os editores posam, com sua empáfia, como se tivessem a palavra final, a noção-chave do que é grande e valoroso, forjando nomes e tendências da literatura média, facilmente abarcados pelo poder universitário de reproduzir lugares-comuns dos espaços midiáticos, incapaz que é de descobrir outras escritas, outras noções de autoria.
O momento atual
LD: Paulo Franchetti referiu-se recentemente à “demissão da crítica”. Os fatores determinantes para essa demissão, imagino, são muitos, incluindo a contratação de muitos professores universitários, reflexo, por sua vez, da proliferação de universidades. Pois a universidade, no Brasil, não é rigorosamente regida pelo mérito. Ou ela é estatal, ou é um caça-níqueis. No caso das estatais, o espírito do funcionalismo público é forte, além de cevado e cimentado pelo espírito de corpo e pelo burocratismo. A “regra de ouro” da moralidade, “não faça ao outro o que você não quer que lhe façam”, acaba reduzida a uma caricatura, “não faça nada que possa lhe causar qualquer problema”. Além disso, como hoje há tanta gente que quer ser poeta, e como há tantos empregos nas universidades, há muitos poetas que são professores universitários, ou muitos professores universitários que são poetas. E a regra de ouropel de ambas as classes é a mesma. A isto se deve acrescentar ainda o “especialismo” e os modismos acadêmicos, que delimitam o pensamento abrangente e debilitam o pensamento independente. Mas também se devem acrescentar, acredito, o multiculturalismo e o “politicamente correto”. O “politicamente correto” torna incorreto fazer reservas a essa ou aquela poética, enquanto o multiculturalismo torna “politicamente incorreto” não reconhecer sua importância. Cito um caso recente. Alberto Mussa traduziu diretamente do árabe os Muallaqat, ou Poemas suspensos, considerados os mais significativos poemas árabes do período pré-islâmico, o que não é pouca coisa. E o que aconteceu? Nada. E isso é, ou deveria ser, surpreendente. Não é todo dia que se publica poesia árabe no Brasil, e mais ainda, aquela que é considerada uma das mais relevantes realizações da poesia árabe. Ou seja, trata-se da chegada ao português de uma das obras poéticas mais significativas de uma língua pouquíssimo presente em nossa literatura. A tradução, na modernidade, não é considerada fundamental? Os influxos da língua de partida não enriquecem a língua de chegada? Não cresce o repertório da poesia em português? Então, o que aconteceu? Os famosos Poemas suspensos afinal não justificam, em termos propriamente poéticos, a sua fama? Ou o meio poético é tão amorfo e indiferente, atento apenas às próprias pequenezas, que não percebe um acontecimento como esse? O meio poético pode ser amorfo e indiferente, mas, nesse caso em particular, os poemas não ajudam. Pus-me a lê-los com tanto interesse quanto foi meu desinteresse depois de começar a leitura. É uma poesia cujas profundas idiossincrasias culturais, de um meio pastoril-arcaico e relações tribal-patriarcais e pensamento mágico-religioso, afinal não se materializam numa linguagem poética que a torne suficientemente interessante para o leitor contemporâneo. Mas dizê-lo em público é “politicamente incorreto”. Logo, não se diga nada, e vamos em frente. Há uma “demissão da crítica”? Quais as suas principais causas? O academicismo, o multiculturalismo e o “politicamente correto” estão entre elas? A crítica acadêmica e a crítica jornalística se “demitiram” do mesmo modo? As poesias nacionais em todas as línguas têm a mesma relevância poética? Como afirmá-lo, à falta de critérios universalmente aceitáveis?
MSV: Um autor não se encontra isolado do lugar forjado pelo mercado editorial no momento em que é avaliado pela crítica, no mais das vezes composta por resenhistas, funcionários da opinião. Todo um mecanismo de interesses interligados, então, se aciona, a começar dos editores de livros e de cultura dos jornais. Por outro lado, a universidade não se firma como espaço de produção de conhecimento. Vem daí a força dos bolsões disciplinares (no momento é o Multiculturalismo, mas logo será outro). Vivemos um momento aculturador. Tudo possui um referendo institucional. Ninguém pensa sozinho e não aposta em quem o faça (o que é central em arte, na dinâmica cultural). O poder de ler com olhos livres um autor se revela quase impossível. É necessário que provenha de uma qualquer instância legitimável.
Tudo se mostra setorizado, em pacto cerrado com a preservação de lugares funcionais no campo intelectual. Os escritores se mantêm em seus nichos aparentemente criativos, tributários, também, de um consenso em relação aos espaços conquistados (ou a serem conquistados). Pouco se cria em tal panorama. Os debates soam inócuos. Os livros já possuem uma legenda a ser ostentada, sem muita discussão. Já estão dados, embalados para a recepção futura, didático-acadêmica. Estamos sob a égide do mediano, do midiático, a partir de muito pouca análise, de pouco investimento criativo. O meio não fomenta a condição básica para a existência criativa da literatura.
Se não há grandes revelações na poesia e na narrativa, o mesmo pode se observar a respeito da crítica. Há tempos não surge um livro inquietante, renovador, de teoria, não apenas sobre a literatura que se produz hoje. A ausência de autonomia no que se refere à leitura dos livros editados no Brasil tem a ver com a preponderância da lógica econômica que domina todos os setores. Os agentes do meio artístico-cultural sabem muito bem responder por empresas jornalísticas e editoriais, por livros legitimáveis em tal circuito, enquanto a produção universitária se mantém em obediência a esses estratos de coisas aparentemente circunscritos ao imparcial e profissional exercício da leitura. Não se lê e não se escreve livremente no Brasil.
Premiações
LD: Afirmei recentemente que os prêmios literários deveriam ter a capacidade de identificar autores promissores, o que os tornaria um fator real de estímulo à criação literária. Parafraseando Kennedy, não porque seja fácil identificá-los, mas porque é difícil. Ao ser difícil, mas não impossível, seria ainda mais relevante, justamente porque o fácil sempre há quem faça. Ao mesmo tempo, isso faria com que os prêmios deixassem de ser literariamente irrelevantes. Há vários países com prêmios literários nacionais relevantes em muitos sentidos, mas nenhum prêmio literário brasileiro, creio, é realmente relevante a não ser para promover uma noite mais ou menos de gala e a conta bancária do ganhador. É claro que isso se deve à histórica irrelevância da literatura num país cujas elites são filistinas e provincianas, e cujas massas são provincianas e analfabetas. Mas também se deve, acredito, ao fato de os prêmios não mudarem nada em tal paisagem deprimente. O que talvez fizessem ao arriscar em novos talentos, e ao lhes entregar certa soma significativa de dinheiro, sem qualquer contrapartida. Não seria uma bolsa para a realização de um “projeto”, mas um prêmio de fato. Um prêmio por promessa. O acerto ou não do prêmio se revelaria a posteriori. Se sim, além de uma medida objetiva de sua pertinência, haveria uma consequência real na paisagem literária. Pois dada a dificuldade de ser escritor num país como o Brasil, isso sem dúvida faria diferença nas condições de trabalho do ganhador por algum tempo. O que você acha dos prêmios literários brasileiros? Você acredita ser possível torná-los realmente relevantes, ou isso é irrelevante?
MSV: Mais uma vez se torna evidente que em economias fortes a presença de editoras empenhadas na renovação da literatura e, especialmente, da poesia, um gênero de difíceis publicação e recepção, mostra-se bastante viável. Vem de novo o exemplo norte-americano, quando se observa a força alcançada por poetas admiráveis como Ashbery, Hejinian, Silliman, Bernstein, na atualidade. Tal postura não se limitaria, no entanto, a editoras e eventos especiais de promoção da poesia e do que pode ser chamada de literatura experimental, criando-se um nicho, um segmento, para uma condição que deveria ser de toda a produção literária, em todos os gêneros. Os prêmios, as bolsas, deveriam ser voltados para os trabalhos concentrados em pesquisa e inventividade, e não para empreendimentos que visam, antes de tudo, à promoção das entidades que os instituem, interessadas sempre em corroborar o previsível dentro de uma ótica mantenedora do mercado e dos circuitos de reconhecimento mais do que legitimados: festivais, fóruns, farras institucionais mundializadas.
Os jovens autores já começam velhos diante de um horizonte de adestramento aos diversos tipos de política (literária, jornalística, acadêmica). Os nomes descobertos em tais premiações não mudam o esquadro das letras e suas cifras. São típicos, interpelam seus viciados leitores, legisladores do que deve se mostrar como legítimo, de acordo com desempenhos movidos por inserções e benesses culturais.
Estamos numa época de transformações capitaneadas pelo logos informacional e por todo um emolduramento de imagens-de-mundo que primam pela visibilidade, pelo efeito instantâneo, por uma legitimidade e transparência, passíveis, entretanto, de lidar com um universo incontável de possibilidades a serem inventadas. Aí é que entra o trabalho literário essencial, capaz de dialogar com o momento contemporâneo em todos os seus vetores de linguagem e de registros institucionais, sem dar, contudo, uma resposta única, linear, imediatamente inscrita. Talvez como nunca, com todos os acessos, as fontes, os suportes, tenham se mostrado a um só tempo tão complexos e tão potencializadores do que pode, ainda, ser concebido como espaço literário, disperso e reativado após diferentes mortes e fins. Da mesma forma que se revela indissociável da pesquisa e enraizado na busca de atuações múltiplas, nada homogeneizadoras.
Escrever deixou de ser linear, por mais direto que seja o contato com um sem-fim de materiais e recursos. Torna-se uma intervenção cada vez mais difícil e desafiadora. Exige uma atuação constante sobre si, no compasso da renovação descontínua do tempo. Não diz respeito à promoção de um status, à garantia de um nome alcançado por um meio restrito, controlador de forças e das verdadeiras festas da criação. Festas que estão por vir e surgem do risco de cada um se lançar à aventura de uma época e não a esse lamentável ponto-de-chegada: uma literatura inoperante, monopolizadora de procedimentos já testados, ativadores de um reconhecível circuito de figuras e funções.
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