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Mário Quintana: o poema faz-se

Descobri Mario Quintana através de Paulo Roberto Falcão – o melhor meio-campista que vi jogar, seja com a camisa da seleção brasileira, com a do Internacional de Porto Alegre ou com a da Roma. Falcão somava o Clodoaldo e o Gerson da Copa do Mundo de 1970, numa perspectiva mais contemporânea, renovada. Soube, pelos jornais, que o jogador o havia acolhido em seu Hotel Royal, em 1980, pois o Hotel Majestic, onde o poeta vivera desde 1968, encerrava suas atividades naquele ano.

Tal notícia me levou a ler Quintana. Em 1983, comprei um álbum duplo intitulado Antologia poética (Polygram). Passei, então, mais a ouvir do que ler Quintana. Lacônicos mas simples, seus poemas fluíam pelos ouvidos.

Me impressionava o fato de ele ter sido soldado, mesmo que por seis meses, durante a revolução varguista de 1930, servindo no Rio de Janeiro, onde travou contato com Cecília Meireles. Mario era neto do capitão-médico Cândido Manoel de Oliveira Quintana – herói da retirada de Laguna, na Guerra do Paraguai. Naqueles tempos, as questões de vanguarda e inovação estavam na pauta, por isso, creio, Quintana não contava muito nas discussões, embora tivesse respeitabilidade como tradutor de Virginia Woolf, Marcel Proust, Graham Greene, Voltaire e Aldous Huxley.

Quintana era – de qualquer modo – uma figura diferente, estranha, contraditória: não transitava pelo leito vitorioso da poesia brasileira, parecia não pertencer àquele momento de seu tempo, vivia no Sul, num quarto de hotel, e era simpático. Revivia, numa escala sóbria e introspectiva, a personagem Dylan Thomas do hotel Chelsea, de Nova Iorque.

Certamente, o Livro dos hai-kais (que sairá em breve pela Editora Globo, antecipo em primeira mão) é consequência de suas leituras de Jorge Luis Borges, o poeta. E nele se reafirmam o traço coloquial de sua poesia, que, em termos de léxico, é nostálgica, “poética”, com ecos simbolistas:

Tua orelha num frêmito desnuda-se:

O que seria

O que seria que te disse o vento?

(“Hai-kai da primavera”)

Quintana escrevia – imagino – como falava, e daí decorre o tom sentencioso de toda a sua obra. Sentencioso é adjetivo, vem do latim  sententiosu, ou seja, conceituoso, que se expressa com gravidade e laconismo, formulando decisões. E digo isso sem nenhum juízo de valor, acrescentando, em seu caso, a qualidade da graça. Quintana escrevia com graça. Leia-se:

O poema

essa estranha máscara

mais verdadeira do que a própria face

(“O poema”)

Se tivesse usado a palavra rosto (no lugar de face, mais formal do que rosto), o poema perderia sua força. Face é palavra áspera e nela leio “faz-se”, do verbo fazer. O poema faz-se.

Quintana não era um amador, embora fingisse sê-lo. Sabia manejar os elementos mais comezinhos do dia a dia em sua ars poética:

E os dois trocaram um beijo

— frio

como um beijo de esqueletos.

É o amor, o desencontro e a morte em três linhas apenas. Em seus versos há um brutalismo, matizado pela tal da graça:

A morte é a libertação total:

A morte é quando a gente pode, afinal,

Estar deitado de sapatos

(“Libertação”)

Graça, humor, para abordar um tema duro, elevado.

Espero que, como um dia Falcão fez num gesto inusual para um jogador de futebol, eu possa despertar o interesse do leitor jovem em Mario Quintana, poeta consistente e com uma biografia que fascina.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.