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A pequena margem de manobra de Cláudia Roquette Pinto

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1. O tiro pela culatra

O insulamento da poesia brasileira contemporânea, aliada a sua irrelevância, é algo que vem ocupando e preocupando alguns indivíduos – eu incluído – há certo tempo (enquanto outros, ainda majoritários, aplaudem a irrelevante exuberância quantitativa da poesia atual). É o caso de Francisco Bosco, autor da “orelha” do último livro da poeta carioca Cláudia Roquette-Pinto, Margem de manobra (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005).

Este livro acena com a interferência de um plano que vem invadir com força uma poesia, até aqui, de tendência abstratizante. [Trata-se] da invasão de uma realidade violenta e exterior aos domínios do pensamento e do poema (cabe aqui perguntarmos: seria essa uma tendência da poesia da década atual, de que este livro seria um dos sinais, a de abrir-se ao mundo, […] indicando uma diferença em relação a uma poética da [clausura]?).

Bosco é, portanto, também um exemplo dos que agora enxergam uma reação à clausura poética, aqui explicitada como “invasão de uma realidade violenta e exterior aos domínios do pensamento e do poema”. E como aqui também explicitado, é ainda exemplo dos que veem Cláudia Roquette-Pinto como um caso marcante dessa tendência. Pretendo demonstrar que a certeza quanto à centralidade da violência para caracterizar o mundo contemporâneo é uma falsa certeza. Ainda mais falsa, somente a relevância de Cláudia Roquette-Pinto para tornar a poesia menos enclausurada.[1]
Prova-o já o primeiro poema do livro, o “antológico” – segundo o autor da “orelha” – “Sítio” (pp. 11-12). O poema parece começar razoavelmente. Há nos três primeiros versos uma boa tessitura sonora em tom grave, determinada pela predominância da vogal o fechada, que combina com e reforça a cena descrita, mas que é, em contrapartida, enfraquecida pela fácil incorporação de uma sucessão crescente de adjetivos: incômodo, grosso, menor, úmidos, mudos, sujo. Essa primeira parte do poema culmina, então, no surpreendente sexto verso:

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.

Não existe nada mais imaculado do que claras em neve. Quanto ao próprio objeto, ele é, em termos cromáticos, puramente branco, e em termos de densidade, pura leveza; quanto ao seu nome, traduz diretamente tal condição, ao juntar e reforçar mutuamente o adjetivo clara e o substantivo neve. Trata-se, por um lado, de um símbolo de delicadeza, pois além da fragilidade em si, claras em neve facilmente “desandam”, e por outro lado, de felicidade pequeno-burguesa, pois servem, fundamentalmente, para fazer tortas e suflês, e não se fazem tortas e suflês sem que existam certas condições ambientais, mas também existenciais – eles não são necessários para matar a fome. Por tudo isso, a irrupção da expressão “claras em neve” em tal contexto tem o poder de uma bomba semântica.
À primeira vista, porém, ela serve tão-somente para passar a idéia de densidade: “[o] menor movimento [é] um esforço, como andar sob outra atmosfera, num caldo sujo de claras em neve”. Ou seja, num caldo denso como claras em neve e que é sujo, ou, o que dá no mesmo, num caldo impregnado de claras em neve. Mas se elas são a máxima expressão do limpo, por que, afinal, usá-las aqui? Para gerar um contraste particularmente intenso? Neste contexto, tal contraste não é do tipo figura e fundo, ou luz e sombra, mas contra as demais imagens, baseadas em termos como morro, fogo, incômodo, grosso, esforço, panos úmidos, caldo sujo. A opção pelo uso da expressão exige, então, uma forte justificativa poética, que só pode ser dada nos versos seguintes. Porém os versos seguintes a abandonam, pois o poema muda de foco:

Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.

Não muda, entretanto, de campo semântico em relação a tudo que vem antes de “claras em neve”: carros, viaduto, suor, diesel, ruído, motor. A expressão serve mesmo somente para passar a idéia de densidade, restando então a todas as suas demais referências a condição de ruído. Trata-se, em suma, de um gesto de enorme imperícia poética, que faz o poema desandar, como claras em neve mal preparadas. Afinal, se o morro está pegando fogo, o que tem claras em neve a ver com isso?!

Não se trata, porém, de um gesto acidental. Cláudia Roquette-Pinto é a autora de livros cujos títulos são, em ordem cronológica, Os dias gagos (1991), Saxífraga (1993), Zona de sombra (2000) e Corola (2000). Dos quatro, dois se referem a flores (Saxífraga e Corola), e um a sombra. Ou seja, trata-se de uma poeta que, como é notório, habita poeticamente um ambiente de intimismo aburguesado, rarefeito e delicado. A irrupção da expressão culinária deixa de ser então mero acidente para se revelar a manifestação de um verdadeiro cacoete semântico. E que a poeta não possa controlá-lo, demonstra o quanto não domina a própria linguagem.

Com o desandar do poema, também desanda toda uma (tentativa de) poética. Pois é evidente que Cláudia Roquette-Pinto pretendia, com um livro intitulado Margem de manobra, e com um poema como “Sítio” em particular, que o abre, avançar um pouco mais na pretensão de redirecionar sua obra, deixando para trás as zonas de sombra em que vicejam corolas de saxífragas para adentrar o mundo além do jardim – o que começara a fazer, tateante, no livro anterior. Mas eis que, ao atravessar aparentemente resoluta o portão, surge lambuzada de claras em neve… Sua margem de manobra revela-se, assim, muito menor do que acreditava.

Na verdade, a poeta sequer consegue deixar o jardim: pouco adiante aparecem “folhas de crisântemo”, “olhos de margarida” e “coração das rosas” – esta uma metáfora com forte sabor parnasiano. O jardim é não apenas referencial como (im)propriamente poético.

O sol devia estar se pondo, agora
— mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.

O poema revela-se, ao fim e ao cabo, uma perfeita imitação da brutal exclusão brasileira. De um lado, a artificialidade, tanto real quanto social, dos condomínios (senso lato), de espaços protegidos, cubos de concreto e vidro atrás de muros e grades. De outro, a realidade crua e dura das ruas entregues à barbárie. Assim, na primeira parte do poema, que é quase o poema inteiro, tudo se vê à distância, e tudo – ou seja, os próprios versos – é presa de artificialismo. Se a primeira acepção de artificial refere-se a artifício, logo, se toda arte é por definição artificial, as demais acepções indicam afetação, dissimulação, fingimento. Não, note-se, o fingimento pessoano, que é uma forma paradoxal de sinceridade artificiosa, mas o fingimento que é uma forma de mentira. O poema parece estar interessado, no sentido inclusive de ter interesse (isto é, envolvimento), no mundo extramuros, mas o faz de um modo elegante e distanciador: na escolha pronominal da terceira pessoa, a mais distante das pessoas gramaticais (em comparação com o eu e o tu), no “objetivismo”, isto é, na presença dominante de objetos particularizados por artigos definidos (o morro, o ar, os carros, o viaduto, o sol, as folhas, as rosas etc.), na metaforização intensiva e na pura e simples falta de clareza.

De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: “Pai!
acho que um bicho me mordeu!”assim
que a bala varou sua cabeça?

A que afinal se referem “penugem antagonista”, “caixa refrigerada” e “carga de agulhas”? Em contraste, a realidade dura, real, rompe afinal o tecido do poema e a seda do distanciamento pela incorporação de um pedaço seu, um verdadeiro enxerto, o da fala direta (sic), que precisa então se servir da cunha das aspas: “Pai! Acho que um bicho me mordeu!”. A frase é intensamente patética. Nos dois sentidos. No conotativo, em que significa impotência, e no denotativo, em que indica um sofrer. É, portanto, fortemente empática. Sua proximidade empática acaba, retrospectivamente, por implodir o poema já desandado pelas “claras em neve”, pois seu artificialismo distanciante não resiste melhor à irrupção desse pequeno pedaço de realidade verbal do que a cabeça do menino resiste à bala. O tiro, portanto, sai pela culatra.

 

2. As invasões da realidade

O fácil engajamento de Cláudia Roquette-Pinto se explicita no poema “Em Sarajevo” (p. 18). Outras facilidades também aí se evidenciam. Se em “Sítio” ainda há a tessitura sonora grave em o e os cortes mais ou menos precisos dos primeiros versos, em “Em Sarajevo” não há absolutamente nada, pois se trata de mais um enfadonho exemplo do mais disseminado cacoete da poesia brasileira contemporânea, o fragmento banal de prosa recortado aleatoriamente e margeado à esquerda. O poema – se é que disso se trata – tenta então se justificar pela imagem “de impacto”, que de impacto não tem nada, a ponto de o último verso, em que não falta o adjetivo “insólito”, ser uma patética explicitação-comentário da imagem que, culminando o poema, o precede. “Na primeira foto ela ri, / selvagem, / e se mistura às amigas. / Um ano mais tarde, / posa com as mãos no colo, / coluna reta, / os pés cruzados pra trás. / Por dentro do uniforme pressente / uma mulher, a passos largos, / galgando as ruas de grandes cidades / – quem sabe no exterior. / Quando a vi, ali, distraída, / na escada do ônibus escolar, / nada me preparou para suas pernas abertas, / no meio a flor dilacerada / repetindo, entre as coxas, / o buraco da bala no peito: / um dois pontos insólito”. Fica faltando explicitar apenas o grande oportunismo do poema.

Pois se trata de abordar a guerra “certa”. “Sarajevo” é a marca de uma guerra “de grife”, nome da cidade vitimizada que comove e indigna todos os “sensíveis”, todos os “indignados”. Não perderei tempo detalhando o quanto a visão maniqueísta de telejornal é insatisfatória, considerando, por exemplo, que a guerra civil bósnia foi desencadeada pela decisão do Partido Muçulmano Bósnio de decretar unilateralmente a independência da província, à revelia da comunidade sérvio-bósnia. Mais relevante aqui é que ela caracteriza um exemplo cabal de indignação seletiva – logo, de falsa indignação.

À mesma época, houve o genocídio de Ruanda. Hoje, há no Congo uma guerra civil de proporções inimaginavelmente maiores. Em Darfur, no Sudão, há anos se prolonga uma limpeza étnica muito mais vasta, selvagem e duradoura do que a promovida pela Iugoslávia nos Bálcãs. Na Chechênia, a devastação empreendida pelos russos tem um caráter muito mais profundo, intenso e brutal. Mas por diferentes motivos, que não cabe aqui discutir, nem Ruanda, nem o Congo, nem Darfur, nem a Chechênia, para não falar de outros casos mais ou menos recentes, mereceram da mídia internacional qualquer cobertura, ao contrário da guerra civil bósnia. Trata-se, em suma, de se indignar ao sabor da pauta dos telejornais. E é em tal indignação seletiva que se pretende ver “a invasão de uma realidade violenta e exterior aos domínios do pensamento e do poema”?

O fenômeno se repete e se confirma em “Cidade bombardeada”, cujo subtítulo é Tibete (pp. 67-68). A recente repressão chinesa em sua agora província tibetana representa ao mesmo tempo o mais chique e o mais pop de todos os conflitos, o mais politicamente correto, envolvendo da celebridade mística que é o Dalai Lama à celebridade midiática que é Richard Gere, e passando pela imagem de puros e inocentes monges budistas atacados por pérfidos soldados frios e imperialistas. Merece naturalmente um poema (sobre cujo prosaísmo, porém, nada há de especial a dizer). Afinal, deve ser irrelevante o fato de que o Tibete era uma teocracia terrível até a intervenção chinesa em 1959. Mais exatamente, uma espécie de Coréia do Norte teocrática, um pequeno país isolado, com uma população de camponeses pobres trabalhando nas mais duras condições climáticas para mal poder matar a fome, enquanto sustentavam o fausto de dezenas de grandes templos (cuja destruição ou esvaziamento é hoje lamentado pelos budistas de butique ocidentais, como neste poema). Se isso ainda não justifica louvar a repressão chinesa, tampouco justifica lamentar a teocracia perdida.

O fenômeno se repete uma terceira vez em “Na montanha dos macacos”, que tem como subtítulo “área de Da Nang, Vietnã(p. 69). Da Nang, como Sarajevo em relação à guerra civil bósnia, é a localidade-símbolo da guerra-matriz entre os conflitos especialmente indignantes, o do Vietnã. E no entanto, enquanto os EUA saíam do pequeno país asiático, em 1975, outro pequeno país asiático, o Timor, era invadido. A invasão indonésia do Timor resultaria na morte de 30% da população, em um genocídio praticado ao longo de 25 anos. Poucos anos depois, em 1979, a URSS invadiria um terceiro país asiático, o Afeganistão. A invasão soviética do Afeganistão, que terminaria apenas em 1990, seria muito mais devastadora do que a americana no Vietnã, e seus efeitos ainda estão presentes: com a ascensão do Taleban no vácuo da saída soviética, e com a necessária ocupação por tropas internacionais decidida pela ONU pós-11 de Setembro, o país está longe de se recuperar. Tornou-se um “Estado falido”. E no entanto, Cláudia Roquette-Pinto, a poeta da “invasão de uma realidade violenta e exterior aos domínios do pensamento e do poema”, nada tem a dizer sobre tais guerras, invasões e genocídios. Afinal, se um poema sobre o Vietnã evoca todo um universo de instigantes referências culturais, a ocupação soviética do Afeganistão e a indonésia do Timor não evocam nada além da crueza insolúvel do mundo real. E tanta realidade assim ainda está longe de caber em seus poemas.

Trata-se, em todo caso, de outro tiro pela culatra. O fragmento de prosa epistolar que é “Na montanha dos macacos” foi construído pela interpolação de frases em itálico de uma carta real da época, escrita por certa Julie para um tal de Johnny, com frases de Cláudia Roquette-Pinto em redondo, referindo cenas de batalha, pretensamente do próprio Johnny. Há ritmo na interpolação, alternando frases femininas de uma “guerra” privada com frases masculinas de uma guerra real, uma falando de sexo e de corpos que se integram, outro de morte e de corpos que se desintegram. E tudo acaba tão amalgamado, alternado e contrabalançado, que não há qualquer impacto nas frases sobre o campo de batalha. Na verdade, tudo tem certo charme moderno, lítero-cinematográfico.

Além dos poemas “engajados”, destacam-se no livro os poemas florais e os “culturais”. Entre os florais, “Tulipa da Turquia” (p. 39) tem versos como “tal como a nódoa / que a esposa mais nova do sultão / ainda esta noite vai deixar entre os lençóis”. Esta comprida evocação de alcova arcaica e hímen idem (não há sultões na Turquia há um século) serve apenas para referir a cor vermelho-sangue. Três páginas antes, há um poema chamado “Os amantes sob os lírios”, e quatro páginas atrás, “Vaso de vidro”. Entre os poemas “culturais”, os temas vão do budismo ao pop, da poesia brasileira contemporânea à revista Vogue. Considerando que o budismo é hoje a mais pop das religiões, certas soluções não deixam de ser involuntariamente irônicas, como um poema dedicado a certo lama Dzongsar Rinpoche ficar frente à frente com um poema dedicado a Jim Morrison (pp. 52 e 53). Os dois poemas seguintes são dedicados a Armando Freitas Filho e a Eucanaã Ferraz. Este, “Anfíbios, poetas” (p. 55), é o típico poema sobre poesia “sofisticado”, que ao fim e ao cabo não passa de contrafação e diluição de Cabral: “Não o fazer contra, / encetando cada esforço / na direção do que lhe é oposto […]”. A diferença é que Cabral tinha o que dizer com tal dicção, além de havê-la inventado. Quanto à revista americana de moda, trata-se do poema “Are you coming with me?”, que tem como epígrafe “com débitos à Vogue” (p. 80). Em todo caso, não se pode dizer que a Vogue não seja um pequeno pedaço da realidade contemporânea “invadindo os domínios da poesia”.

Além disso, o livro termina com um poema que é uma verdadeira síntese entre o “mundo Vogue” e o “mundo em fogo”. “Os dias de então” (pp. 85-86) usa, mais uma vez, o mesmo recurso de “Sítio”, “Nas montanhas dos macacos” etc., de incorporar frases alheias que se referem a circunstâncias reais (e não, por exemplo, citações literárias). O que resulta francamente maniqueísta e didático – já a partir do título. Quatro parágrafos de uma carta de Zelda a Scott Fitzgerald, que formaram um dos mais glamourosos casais dos glamourosos anos 20, referindo uma cena particularmente idílica, cercam três “estrofes” (na verdade, fragmentos de prosa) sobre intervenção médica na gestação, bombardeio com fósforo e envenenamento radioativo. “Você se lembra das rosas no jardim de Kinneys”, “Ele é a pessoa mais doce deste mundo”, “A glicínia cobria a cerca, a sombra era fresca e a vida, uma coisa antiga”etc., versus “método aspiração / método dilatação e corte / método cesariana”, “bombardearam a cidade / com bombas de fósforo / os civis atingidos / pegavam fogo e corriam” e “depositado nos pulmões, nos rins, / o urânio 238 / emite radiações alfa e beta / que causam, ao longo dos anos […]”. O poema e o livro terminam, então, com uma passagem de Zelda Fitzgerald que sintetiza de modo quase inverossímil uma existência idílica: “A salvo, nós dois. Felizes, dourados – enquanto atravessávamos a rua, no caminho de volta para casa”. E isto logo em seguida a “[…] que causam, ao longo dos anos, / câncer nos indivíduos expostos / e anomalias genéticas / em seus filhos e netos / a vida média deste urânio é de 4.500 anos”. Os dourados dias de outrora e os negros dias de agora… Zelda Zayre conheceu Scott Fitzgerald em julho de 1918, ainda durante a Primeira Guerra, que deixou 10 milhões de mortos e 30 milhões de feridos em quatro anos, além de arruinar a Europa; morreu em março de 1948, durante os julgamentos de Nuremberg, que expuseram ao mundo o Holocausto. Dias douradíssimos.

Não se trata de concluir, de tudo o que vai dito acima, que a poesia não deva tematizar a guerra ou a anomia social brasileira. Mas tampouco significa que deva tematizá-las como condição de pertinência (mesmo porque tematizá-las, como demonstra Margem de manobra, está longe de ser condição suficiente).

A poesia não se torna, em mais de um sentido, pertinente ao mundo contemporâneo ao tematizar a guerra ou a violência urbana porque o mundo contemporâneo na verdade não se caracteriza pela guerra ou pela violência urbana. E ainda que se caracterizasse, poesia não é jornal, programa partidário, ensaio sociológico, denúncia, discurso ou desabafo.

3. Ecos do tiro pela culatra

Tornou-se senso comum a ideia de que o mundo contemporâneo se caracteriza pela violência. A violência da guerra no exterior, a violência urbana no Brasil. Mas isso não é necessariamente verdade, como já afirmei anteriormente:

O “estado de guerra” que, no rastro da ocupação do Iraque, muitos denunciam, pouco convence. Há duas ou três guerras hoje no mundo, e há vários continentes, como a Europa e as Américas, em que não há guerra alguma. Numa série histórica que se estenda do início da história conhecida, com as civilizações (e as infindáveis invasões) do Crescente Fértil, até a primeira metade do sangrento século XX, esta é a época mais pacífica da história da civilização. Pois ainda mais pacífica do que a segunda época mais pacífica, a da Guerra Fria, quando as habituais guerras entre as maiores potências de uma dada época foram substituídas por guerras periféricas, como a da Coreia. (“Poesia média e grandes questões”)

A sensibilidade exacerbada para os verdadeiros mas relativos males contemporâneos – apesar do Congo, de Darfur, da Chechênia, dos campos de concentração chineses e da vida cinza de países “vermelhos” como Cuba e Coréia do Norte, vivemos num mundo livre de conflagrações mundiais, livre de campos de extermínio, livre de povos inteiros sendo caçados para serem abatidos, livre de populações inteiras escravizadas etc. – tem três causas principais. Desmemória, medo pequeno-burguês e ressentimento esquerdista. O ressentimento esquerdista se explica pelo fato de o mundo contemporâneo ser o mundo da vitória do capitalismo, liderado pelos EUA, sobre o socialismo liderado pela URSS. O ressentimento da derrota leva à rejeição visceral, a rejeição visceral leva à crítica historicamente descalibrada.

Relativamente, viver nunca foi tão seguro. Em muitas cidades pelo mundo, milhões de pessoas estão perpetuamente a cinco minutos de serviços de proteção essenciais como polícia, bombeiros e paramédicos. Em cada esquina, compram-se analgésicos e antibióticos genéricos a preços acessíveis, enquanto há algumas décadas simplesmente não existiam antibióticos e analgésicos. Nunca antes tanta gente viveu tão saudável e tão suprida por tanto tempo, a ponto de o envelhecimento e a obesidade estarem se tornando pandêmicos.

É preciso omitir o passado para considerar o mundo contemporâneo particularmente perigoso ou problemático. Daí o que um poema como “Sítio” tem de desmemoriado e pequeno-burguês, ao descrever um mundo calcinado: “O morro está pegando fogo. / O ar incômodo, grosso, / faz do menor movimento um esforço, / como andar sob outra atmosfera”. O que dizer então do céu sobre Hiroxima? Para levar a sério a “calcinação” de hoje, é preciso não levar a sério a calcinação de Hiroxima. E de outras centenas de cidades reduzidas há poucas décadas a pó, de Guernica a Stalingrado.

Quanto à violência social brasileira, se ela é hoje de fato maior, ainda mais do que maior, é mais clara. É possível demonstrá-lo de inúmeras maneiras. Por exemplo, perguntando como fez Luís Martins, no longínquo ano de 1953, por que não existe uma literatura policial no país.

Para que haja interesse dramático numa novela policial é necessário que exista, no mínimo, além do imprescindível crime misterioso, uma coleção mais ou menos sortida de suspeitos sem culpa formada, sobre os quais nenhuma acusação se poderia formular. Em consequência, continuam soltos, atrapalhando o mais que podem a ação da polícia. O detetive seguirá pistas falsas, embrulhar-se-á, cairá em armadilhas habilmente urdidas. […] Mas no Brasil as coisas não se passariam assim. Se o romancista não quisesse fazer obra inteiramente falsa, sem possibilidade de convencer o leitor, deveria criar sua hipótese dramática de acordo com o que de fato aconteceria no caso de um crime real: a polícia começaria prendendo todos os suspeitos. Haveria, quando muito, uma trágica descrição de espancamentos, interrogatórios, torturas físicas e notícias berrantes nos jornais. […] A novela policial só pode se desenvolver em países cujas instituições políticas e jurídicas se baseiam em normas essencialmente democráticas, isto é, em que haja um verdadeiro respeito pela pessoa humana. (Obras-primas do conto policial, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1964, pp. 3-7)

Jamais houve um verdadeiro respeito pela pessoa humana no Brasil, o último país a extinguir a escravidão no mundo ocidental, e o que lançou seus milhões de escravos da senzala para a favela, eventualmente permitindo que alguns de seus descendentes dormissem no cubículo da “empregada”, depois de subir pelo “elevador de serviço” (invenção genuinamente nacional). O país dos “agregados” e dos “coronéis”, dos salários abaixo da decência e dos altos “barões da indústria”, da seca nordestina e dos latifúndios, dos impostos suecos e dos serviços africanos, da corrupção política e do desperdício público, da maior exclusão social e da máxima concentração de renda, não nasceu ontem. Tampouco nasceu ontem a modernização conservadora. Da República Velha ao governo Lula, passando por Getúlio, Kubitschek, governo militar, Collor, e FHC, todos a praticaram. Nem por isso a poesia brasileira, para ser relevante, teve de tematizar necessariamente a modernização conservadora.

Pretender que a poesia deva dar conta da realidade sociopolítica contemporânea, cujo símbolo mais óbvio é a violência urbana, é o mesmo que dizer que Machado deveria ter tido a escravidão como tema principal. Drummond teve momentos de engajamento, como em A rosa do povo, assim como Cabral, em Morte e vida severina. Mas Cabral não é menor quando tematiza Sevilha, nem Drummond quando escreve “Oficinairritada”. O problema da poesia brasileira contemporânea não está em seu desengajamento da realidade socioeconômica imediata, mas em seu desengajamento da realidade como um todo.

A poesia precisa se reaproximar da realidade em geral, da realidade em si. O detalhe é que a realidade está onde sempre esteve. Como as maçãs de Tântalo, que se afastavam de suas mãos, encurvando os galhos, sempre que tentava colhê-las, mas com um resultado contrário, a realidade sempre se mantém à distância necessária para que nossos sentidos possam apreendê-la.

A poesia tem sistematicamente alongado a distância mínima que a realidade permite e exige. E tem feito isso através de dois mecanismos principais de afastamento: a abstração e o solipsismo (os motivos por que o faz perfazem outra discussão). Sendo modos de desengajamento verbal do referente, são formas de desengajamento da poesia da realidade.

Abstrato (do latim abstrahere) significa literalmente separado. Só é então o contrário de concreto no sentido de ser algo que não se liga, que não remete a uma coisa real. Por exemplo, uma mancha informe de tinta, cujo conjunto realiza uma pintura abstrata, pois à diferença da pintura figurativa, não se refere a nada (ou melhor, refere-se fundamentalmente a si mesma). A música instrumental, neste sentido, é abstrata, enquanto a canção é figurativa. O motivo de não existir uma poesia abstrata reside no fato de que palavras, a priori, são referências. Na verdade, existem para referir. Uma arte verbal pode, no máximo, ser abstratizante, quando o uso das palavras, em vez de reforçar sua natureza referente, a enfraquece (ainda que jamais possa anulá-la).

Os exemplos de poetas abstratizantes na poesia contemporânea são inúmeros (a começar pela própria Cláudia Roquette-Pinto), mesmo porque, se trata de um fenômeno que a caracteriza. Reproduzo, por comodidade, o que escrevi há pouco sobre Cláudio Daniel.

A separação da palavra de seureferente se dá aqui através de vários mecanismos, por exemplo, o deslocamento sintático, de substantivo para adjetivo (“céu anúbis”). Se tal procedimento já foi moderno, quando feito sem um profundo controle das variáveis, e junto a um viés metaforizante (separação semântica) e a um vocabulário preciosista (separação por estranhamento), resulta numa poesia […] que passa longe de uma das principais características da modernidade poética, a concretude da linguagem. (“Nenhuma poesia brasileira no Mexico”)

Há ainda outros mecanismos, como os clichês, abstratizantes por enfraquecimento semântico, e a obscuridade, seja pelo uso de referências cifradas ou particulares, seja pelo uso impreciso ou inepto das palavras.

Solipsismo tem dois significados principais:

1. Filosofia. Doutrina segundo a qual só existem, efetivamente, o eu e suas sensações, sendo os outros entes (seres humanos e objetos), como partícipes da única mente pensante, meras impressões sem existência própria [Embora freq. considerado uma possibilidade intelectual (caso limite da filosofia idealista), jamais foi endossado integralmente por algum pensador.]

2. Derivação: por extensão de sentido, vida ou conjunto dos hábitos de um indivíduo solitário. (Houaiss)

O solipsismo é hoje endossado integralmente por inúmeros poetas, além de parte importante da crítica, que compra barato certo renascimento anêmico ou pseudo-esperto do eu lírico, e as consequentes pequenezas circunstanciais e/ou cifradas do poeta como tema perfeitamente “pós-moderno”. Os exemplos são simplesmente infindáveis. Escolho um poema de Armando Freitas Filhos pela ironia involuntária de seu título, “Comunicações”: “Eu falo de mim – daqui –, / desta central, / pelo microfone do corpo, / por esse fio que vem do fundo / eu me irradio: // […] grito! pingo sobre o alvo / tão tátil da minha carne, / nos panos // instantâneos do meu espanto / nas janelas / onde me debruço sucessivo / e vário, seqüência de mim, // […] me desdobro – quadro por quadro, […] com a vida que me veste / pelo avesso: […] a articulada letra do meu gesto, / o rascunho de rugas & rasuras / feito à unha […] nas nuas marcas do meu corpo / no espaço […] (www.jornaldepoesia.jor.br/1afreitas.html). Tentei ler o poema como se fosse realmente irônico, ou seja, como uma denúncia do solipsismo, em vez de mais uma de suas flagrantes manifestações, mas não funciona. Trata-se mesmo da segunda opção. O fato de isso não ser impedimento para o autor publicá-lo é consequência e indicador de quanto o solipsismo poético tornou-se palatável.

4. Outros afastamentos

Volto, então, aos poemas de Cláudia Roquette-Pinto, muitos dos quais tenho dificuldade em entender. Por exemplo, “A escada de Jacó” (p. 22): “Ela estava rindo / – e gargalhava, até – / antes do choro convulsivo / ante o relance / de céu adquirido – pelo corpo? / Sim, o corpo era o caminho / mas outra coisa nela se movera / e agora erguia seu rodamoinho / pelos canais, / enquanto o corpo, outro, / tiritava, transitava sem piloto / do nulo à súbita doçura, / ao tigre, ao terremoto, / à menina que ela tinha sido / – perto demais da zona de perigo, / perto do exílio – / e, um segundo atrás, a escada, / os anjos subindo”. A escada de Jacó remete a Gênesis 28, 12: “E sonhou: e eis uma escada posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela”. É interpretada como alegoria da sabedoria mística, como a realização, de cima para baixo, do mito de Babel, como promessa de redenção e, no cristianismo, como símbolo de Cristo, o que une céu e Terra. Mas não sei o que significa no poema. Tenho a impressão de que se trata de um orgasmo: “ante o relance / de céu adquirido pelo corpo”,outra coisa nela se movera /e agora erguia seu rodamoinho”, “o corpo, outro, /tiritava, transitava sem piloto /do nulo à súbita doçura” etc. Neste caso, o orgasmo teria sido tão exuberante que, mais do que os proverbiais “fogos de artifício”, traduziu-se na visão de anjinhos. Mas não tenho certeza. E não tenho certeza em função do solipsismo que costuma caracterizar os poemas de Cláudia Roquette-Pinto, na mais completa negação da “invasão da realidade”. Trata-se, na verdade, de sua evasão.

Assim, se “Margem de manobra” (p. 28), poema que dá título ao livro, une a temática amorosa ao que se poderia chamar de poética “materialista” – no sentido de aparentemente se apoiar na dimensão gráfica dos caracteres que formam a palavra amor –, na verdade a utiliza para um longo movimento metaforizante. A metaforização abusiva e aleatória a partir de um caractere baseia-se diretamente no conhecido soneto de Rimbaud, “As vogais”: “A, velado voar de moscas reluzentes / Que zumbem ao redor de acres lodaçais” (tradução Augusto de Campos). Roquette-Pinto: “Eu me cubro com o A da palavra farpada / eu me cubro com o A que traslada”. Rimbaud: “O, supremo Clamor cheio de estranhos versos, / Silêncios assombrados de anjos e universos; / Ó! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos”. Roquette-Pinto: “O anel, quando soa / e engloba, envelopa, / remove a pessoa / – letra O, de vertigem e pó, / que soçobra”. Constata-se então que a poeta brasileira não se apropria apenas do mecanismo básico do famoso soneto, mas também de seu tom.

Entre o soneto simbolista e o poema em questão, muita coisa foi feita com a dimensão gráfica dos caracteres. Assim, enquanto Cláudia Roquette-Pinto escreve “Eu me deito sob a letra de mãos dadas / M: escondo entre escombros / o sentimento que sobra”, há mais de quarenta anos Willy Corrêa de Oliveira já fizera a letra M dar de fato as mãos a uma outra – um W –, fazendo, além disso, as duas se “deitarem”, ou melhor, “copularem”. Pois se trata, igualmente, de um poema de amor: um poema visual de amor, “Willancete para Marta” (revista Invenção4, dez. 1964, p. 111). Nele, o M de Marta e o W de Willy são também os de woman e man, além de formarem um par de ícones especulares (o M voltado para baixo, estilizando uma mulher de pernas abertas, o W voltado para cima, centrado num triângulo-falo). Os dois pequenos ícones avançam então um para o outro, até se “darem as mãos” e se sobreporem (“copularem”), depois do que não podem mais se separar, formando agora a figura de duas linhas entrelaçadas (suas vidas), que lembra ainda a dupla hélice do DNA:

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Se o poema de amor & caracteres de Cláudia Roquette-Pinto é um retrocesso em relação ao poema de amor & caracteres de Willy Corrêa de Oliveira, que leva ambas as variáveis até os limites mínimos de suas dimensões gráfico-semânticas (logo, à sua máxima expressividade), nada acrescenta ao soneto de caracteres & metáforas de Rimbaud. O resultado é um rançoso sabor de déjà vu. O que não deixa de ser outro modo de afastamento da realidade presente.

 


1. Outro exemplo recente e particularmente descalibrado de uma defensora dessas mesmas teses é Iumna Maria Simon, conforme se pode ler em “Situação de sítio”, Novos Estudos Cebrap 82, nov. 2008, pp. 151-165 (reproduzido em www.scielo.br/pdf/nec/n82/08.pdf).


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).