Em literatura e, ainda mais, em poesia, o indivíduo leigo – que senta ao nosso lado no banco do ônibus e cujo conhecimento na área vai até as aulas do Ensino Médio – costuma ser um excelente termômetro.
A grande maioria dos autores consagrados para nossa “formação” são completamente desconhecidos a esse indivíduo. Os que são lembrados podem ser considerados popstars. Camões, por exemplo. Todo mundo já ouviu falar de Camões e d’Os lusíadas.
Macunaíma, de Mário de Andrade, é lembrado frequentemente. Faz parte da lista de obras que devem ser lidas paras as provas de vestibular de universidades renomadas e na memória brasileira, entre as correntes e movimentos literários, o modernismo ocupa lugar de destaque. A utopia dessa corrente domina o ideário da pequena-burguesia contemporânea. Se a busca por novas “atitudes existenciais” já encontra terreno na academia, o cotidiano de nossas capitais é moderno.
Cobra Norato é daqueles livros que possuem uma crítica considerável, mas do qual a pessoa ao seu lado no balcão da padaria não se lembra. Talvez pelo formato, em prosa, Macunaíma o tenha ofuscado na composição de uma memória popular dessas obras sobre a criação de uma identidade primitiva do país, apesar de Murilo Mendes considerar a primeira tecnicamente superior à segunda [1]. E, ainda na superfície rotineira, a Antropofagia é mais lembrada pelo manifesto que pelas obras representativas.
Ainda assim, as rupturas desse poema com uma representação estabelecida e, segundo os modernistas, estagnada levam a crer que ele foi determinante para a configuração da geração poética posterior e dessa identidade brasileira propriamente dita. Não pretendo, nestas poucas linhas, chegar até aí; quero apenas tirar o pó de algumas dessas questões, todas já mencionadas na fortuna crítica da obra.
Pequeno histórico
Cobra Norato foi publicado em 1931. Sua escrita, conforme se lê na primeira edição, data de 1928. Sete anos antes, Raul Bopp cursava Direito em Belém, no Pará, quando o contato com a relação tortuosa entre uma poesia antiquada, excessivamente lírica, que estava sendo produzida e discutida, e os ares de renovação que vinham sendo proporcionados pelo crescente interesse no folclore brasileiro – e sobretudo amazônico – mostrava ares de renovação no panorama cultural do período.
Esse interesse era compartilhado por Bopp e despertou nele a relevância de um retorno a outros valores, menos artificiais e mais envoltos no espírito nacionalista [2]. Das visitas domingueiras à casa de Alberto Andrade Queiroz surgiu a revelação de Antônio Brandão de Amorim. Lá estavam, revestidos pelo lendário popular, uma gama de valores modernos, como a inovação e uma tonalidade épica, e figuras de estilo, como a personificação e os verbos no diminutivos, constantes da oralidade dos habitantes da região amazônica.
Cobra Norato permaneceu intocado até 1927, quando foi retomado e retocado sob o incentivo de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Foi coletivamente reelaborado e publicado. Àquela altura, Bopp já era um personagem ativo na construção do modernismo da década de 1920, especialmente no sentido de divulgação, pela Agência Brasileira. E seu livro se transformou no cartão de visitas, ao lado de outras obras, dentro e fora da Antropofagia, daquele sentido ferozmente brasileiro que unia o grupo.
Em 1932, Bopp deu início à carreira diplomática, no Japão, distanciando-se cada vez mais da literatura. O desmantelamento do movimento antropofágico deu a Cobra Norato uma delimitação histórica que abriu espaço para uma politização muitas vezes oposta ao novo regime, com o engajamento de obras como Sentimento do mundo e A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, que, por sua vez, trazem problemas aos quais o poeta do verso amazônico ficara geograficamente alheio.
Viagem, folclore e mito
A viagem, em literatura, tende a ser um tema bastante perigoso. O maior cuidado deve estar em não transformar a escritura em um apanhado descritivo de impressões turísticas descompromissadas. Esse tipo de literatura interessa apenas ao próprio autor/turista e, quando muito, aos companheiros de viagem, que desejariam ver como fica em verso ou prosa descritiva essa ou aquela fachada de construção histórica.
No caso de Raul Bopp, a viagem – muito pelo fato de estar envolta naquela procura exaustiva por uma identificação do país com seu povo – adquire um sentido de registro antropológico, como afirma Augusto Massi: “ambos [Raul Bopp e Mário de Andrade] percorreram o Brasil recolhendo mitos e lendas, assistindo a festas e manifestações folclóricas. Conferindo às viagens um caráter verdadeiramente etnográfico” [3]. Assim como ocorre com Mário de Andrade em Macunaíma, o registro das características orais das comunidades as quais o poeta visitou e da natureza que rege o comportamento delas se torna matéria-prima da escrita.
O mito de um Brasil verdadeiro oculto por debaixo das catedrais de contornos europeus trouxe à obra boppiana um confronto da técnica clássica com a estrutura de um pensamento interiorano, cuja aclimatação do idioma fugia à linguagem “culta” e às formulações acadêmicas. Bopp tinha consciência desse frescor escondido sob a fala rural. Ao realizar seu tour de force por uma ótica primitivista, o poeta tentou realizar uma simbiose entre o cotidiano industrial que vinha se configurando e a tradição oral dos brasis primevos, nos quais o choque civilizatório da relação metrópole-colônia ainda era menor que a conexão entre o homem e a natureza.
Na Europa, essa leitura primitivista do mundo já abria novas possibilidades de composição baseadas na estética negra e que passaram a ser exploradas pelos movimentos de vanguarda. Aponta-se como marco dessa exploração a Anthologie Nègre, de Blaise Cendrars, publicada em 1921. Em um movimento de continuidade, a obra de Raul Bopp participa desses questionamentos com Urucungo, de 1932. Nesse livro, as implicações do choque cultural performativo de nosso povo ganham interpretação política, na tentativa de entender o fenômeno de aculturação que vem agindo na sociedade a partir das relações tensas entre dominante e dominado na conformação da estrutura sociocultural latino-americana.
Quando a viagem, para Bopp, passa a adquirir os ares rotineiros da diplomacia, pela primeira vez o tema adquire um tom negativista e cada vez mais distanciado, enraizado nas atividades burocráticas consulares. Augusto Massi cita dois poemas exemplares dessa conduta: “Consulado” e “Versos de um cônsul”. Neles, além do desgaste da vida de burocrata, encontramos um mosaico de composição, simbolicamente representado pelo processo de formação cognitiva em diversas pátrias. O que em Cobra Norato era choque unificador entre tradições muito diferentes – a começar pelo fato de ser uma oral, outra escrita – adquire aqui caráter de esfacelamento, pelo excesso de “pedaços de pátrias misturadas”.
Ainda assim, Massi traz à tona uma conquista da escritura boppiana que se perdeu com a submissão à lógica de mercado da literatura contemporânea. Recupera de Walter Benjamin a teorização sobre a tradição oral – a arte de contar histórias tão bem trabalhada por Guimarães Rosa – das comunidades rurais do país, mais ligada ao artesanato que à indústria: a obra de Raul Bopp “nos transmite uma experiência da viagem e do diálogo à qual não temos mais acesso, anestesiados pelo excesso de turismo e comunicação” [4].
A ruptura técnica
Por mais “brasileiro” ou “regional” que seja um livro – autores consagrados do modernismo apontam Cobra Norato como a mais brasileira das obras do período –,em nosso território escrever em versos significa responder a uma prática estrangeira. Cobra Norato, em sua técnica, sua montagem e seu intertexto, é um épico clássico. Nesse sentido, o que o diferencia de um Guarani, de José de Alencar, está mais na superfície do que tendemos a considerar.
Embora essa comparação, da maneira como a estou sugerindo, seja mais que problemática, ambas as obras são munidas de um caráter nacionalista e foram realizadas em conformidade com uma tradição alheia. Ambas foram formatadas de acordo com os gêneros clássicos, sobretudo o épico, e com a mesma matéria regional. A diferença, ainda mais interessante, está na inclusão, por parte de Raul Bopp, do folclore brasileiro dentro da própria cadência rítmica dos cantos do poema.
Carlos Drummond de Andrade [5] já demonstrou como a produção boppiana sempre guardou um quê de inacabada, provindo da intensa e constante revisão que ela sofria, tanto do próprio Bopp como de seus companheiros de geração. A cada edição de Cobra Norato, no Brasil ou no exterior, era possível aguardarmos novidades – versos suprimidos, completamente modificados, trechos inteiros inclusos… – sobre as quais não vou me alongar.
Na edição que tenho em mãos, ainda é possível notar as quebras com um modo de fazer e pensar poesia de uma geração que “permanecia ainda num velho conformismo, amarrado a formas antiquadas” [6]. Em especial no caso do verso, o poema mergulha profundamente na ideia de uma língua nativa geral, e justamente por isso chega a decepcionar que as edições mais recentes tenham ignorado o outro título da obra: Nheengatu da margem esquerda do Amazonas.
O “verso amazônico”, livre e acondicionado à relação do indivíduo com a natureza, oscila entre uma base heroica e outra, mais coloquial e por vezes ligada às doses de prosa e discurso direto presentes no corpus do poema. Logo no primeiro canto, os versos curtíssimos – duas a quatro sílabas – marcam o compasso enquanto os decassílabos sustentam a estrutura rítmica:
Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim
Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes.
A reprodução de um manuscrito de 1975 no final do livro traz o verso “ainda eu hei de morar nas terras do Sem-fim.” Esse excerto mostra que o rigor com as medidas eram menos importantes na configuração sonora do poema que seu fluxo entre linhas breves, linhas longas e as pausas. Neste primeiro canto, o uso de versos com 12 ou 13 sílabas, ainda afinados com o giro em torno do decassílabo, também são provas disso. Outro ponto: o manuscrito se apresenta mais conservador que a edição impressa no uso da pontuação: “Vou andando, caminhando, caminhando”.
Continuando a leitura, o tom épico inaugurado pelos primeiros versos invade a coloquialidade das redondilhas seguintes:
Faz de conta que há luar
A noite chega de mansinho
Outro exemplo de boa música intercalando medidas está no canto XX:
Começa hoje a maré grande
O mar está se aprontando
para receber as águas-vivas
de contrato com a lua
— Vamos rumar pras bandas do Bailique
para ver chegar a pororoca
O mangue pediu terra emprestada
pra construir aterros gosmentos
Brigam raízes famintas
A água engomada de lama
resvala devagarinho na vasa mole
Além disso, e muito em consequência da sonoridade marcante das línguas indígenas, como o tupi e o guarani, todo o livro é uma fonte inesgotável de investimento nas prosopopeias, aliterações, assonâncias, rimas internas e subversões gramaticais que às vezes chegam ao excesso. Alguns exemplos:
— Então se segure no meu rabo
que eu le puxo
(…)
O sol belisca a pele azul do lago [a meu ver, um dos versos mais bonitos do poema]
(…)
Amor chovia
Chuveriscou
(…)
— Balancê. Traversê
— Com sus pares contraro
—Vorver pela dereita
— Mudar de posição
Vou tomar tacacá quente
Tico-tico já voltou
Foi no mato cortar lenha
Urumutum Urumutum
Para me contradizer, esse excesso foi posteriormente identificado pelo próprio Raul Bopp, em carta a Augusto Meyer, como responsável pela vitalidade do texto, embora com enorme quantidade de modéstia também: “É um livroide efêmero, vale por muitas audácias extragramaticais e uma movimentação de material de camada popular. Só. Muito exposto, embolora logo” [7].
Influência nula?
Carlos Drummond de Andrade considera Cobra Norato “possivelmente o mais brasileiro de todos os livros de poemas brasileiros, escritos em qualquer tempo”. E prossegue, provavelmente para corroborar sua afirmação anterior, dizendo que nele “a influência erudita europeia, de caráter satírico, que ainda se faz sentir no monumental Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo na Carta prás Icamiabas – torna-se praticamente nula” [8].
Como vimos, essa influência erudita europeia é uma constante em Cobra Norato. Os elementos clássicos estruturais da tragédia e do épico, o herói, sua amada, o mito estão presentes. Deles derivando a tradição ocidental do verso à qual o poema reage. Com uma ótica moderna, de crítica e renovação desses valores, surge a influência das vanguardas europeias, das quais a mais nítida é o primitivismo.
Ao afirmar que essa influência se torna praticamente nula, Drummond foi atento ao “caráter satírico”. De fato, a Carta destoa do restante do livro e foi alvo de mais de um medalhão da crítica. Nela, a tentativa iconoclasta de estabelecer uma sátira aos valores parnasianos dá ao herói os olhos e a razão de um europeu civilizado.
Essa característica não aparece em Cobra Norato, poupando-o de uma complexidade de contradições, porém inaugura outras. Por exemplo: a influência da tradição clássica se faz de forma implícita, como se estivesse fugindo do problema ao mesmo tempo que se apoia nesse cânone para confrontar a geração anterior e conquistar sua legitimidade.
Essa antropofagia feroz, animalesca, quase irracional, permite a Cobra Norato conviver com suas contradições imanentes e delas se alimentar para manter sua resistência. No caso de uma das influências menos nítidas, o surrealismo, permite ao autor, num primeiro momento, colocar essa corrente como uma derivação do grupo Dadá após o pensamento moderno ganhar suas “heranças da guerra”, reduzindo o “mundo real ao imaginário com aspirações obscuras” [9].
Em outra ocasião, na conferência Coisas de idioma e folclore, de 1944, para Bopp, essa absorção já possui teorizado o seu elemento regional de renovação ou adaptação: o “surrealismo brasileiro está aí, livre, desgovernado, fundando sílabas novas, com uma frescura primitiva. É preciso apenas sensibilidade para senti-lo” [10].
Essa convivência conflituosa é a fonte de energia da poesia boppiana. Ao resgatar um Brasil ainda incivilizado e colocá-lo frente a frente com a etiqueta europeísta da elite brasileira, o poeta conseguiu de maneira extremamente coerente criar um objeto tão contraditório quanto aquilo que ele representa. Uma literatura na qual a fertilidade entre a casa-grande e a senzala salta das páginas na pele elástica de uma cobra a perseguir a filha da rainha Luzia.
Diferentemente de alguns de seus paralelos, como Oswald de Andrade, cuja obra possui caráter urbano e cosmopolita, não seria de todo enganoso se tratássemos Raul Bopp como árcade moderno, com sua leitura cósmica das paisagens naturais que ainda encontra ecos em nossa poesia, sobretudo com Manoel de Barros.
Da mesma forma, essa disputa entre um mundo civilizado e outro, primitivo, anárquico, coloca Raul Bopp como um pêndulo, oscilando entre Oswald e Mário de Andrade. Enquanto a apropriação antropofágica de culturas e ideias e seu primitivismo pulsante o aproximam do primeiro, a visão oswaldiana de “burguês cosmopolita que enxerga o atraso do Brasil a partir do progresso de São Paulo” o separa deste. Raul “via o Brasil composto por elementos regionais, manifestando profundo apreço por culturas periféricas”. Nesse sentido, está ao lado de Mário.
Por fim, seria interessante fazer um paralelo – e não serei eu, agora – entre a representação simbólica e o objeto propriamente dito. Muito do que se encontrará nas táticas de guerrilha de Cobra Norato traz um conflito que, de certa forma, se intensifica com a postura política adotada por Carlos Drummond de Andrade na fase de Claro enigma.
Paul Valéry, no século anterior, já havia suscitado esse problema, entendendo que a trajetória confortável da modernidade europeia a conduzia à própria morte, e que a postura vanguardista apenas acelerava esse percurso, num gesto radical, suicida e incontornável. Um caminho sem volta. A Antropofagia, por sua vez, faz essa crítica pela ótica irônica do colonizado, alimentando-se do sistema para sustentar seu ódio contra a sociedade colonizada e industrial. É quase uma descrição do complexo de Édipo.
No fim das contas, uma análise desse problema poderia nos apontar quem estava com a razão, se Valéry ou as vanguardas. O fato é que as duas Grandes Guerras e as revoluções de 1930 e 1932, no Brasil, deixaram profundas marcas na maneira de pensar o homem em relação com seu mundo. Ante a empolgação com as inovações tecnológicas e a velocidade da Era Industrial frustrada pela carnificina que marcou a primeira metade do século, o herói Cobra Norato carrega consigo a utopia libertária de um Brasil que ainda lembrava de onde veio.
Notas
- MENDES, Murilo. Três poetas brasileiros, Revista de Cultura Brasileña, n. 36, Madri, dez. 1973. O tópico “Sobre Raul Bopp” foi publicado em sua Poesia completa, organizada por Augusto Massi.
- Acompanho a exposição autobiográfica de Raul Bopp feita em Vida e morte da antropofagia. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 81-106.
- MASSI, Augusto, op. cit., p. 33.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. Raul Bopp: cuidados de arte. In: Passeios na ilha. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1952. Esse tópico também está na Poesia completa de Raul Bopp, op. cit., p. 38-41.
- Vida e morte da antropofagia, op. cit., p. 34.
- MEYER, Augusto. Carta aberta sobre Cobra Norato. In: Poesia completa de Raul Bopp, op. cit., p. 49.
- ANDRADE, Carlos Drummond de, op. cit., p. 41.
- Vida e morte da antropofagia, op. cit., p. 33.
- MASSI, Augusto, op. cit., p. 22.