Curiosamente, a linguagem do poeta triestino Umberto Saba (1883-1957), cuja fortuna[3], no gosto do público, teria eclipsado nada menos que a de um Ungaretti ou de um Montale, é toda ela “portadora de objetos”, incluindo nesse rol o próprio poeta, objeto por excelência e campo de exploração privilegiado. Basta ler, como exemplo, o seu poema mais famoso: “À minha mulher” (do qual, por sinal, a mulher não tinha gostado), escrito num dos momentos mais felizes de sua vida, quando ainda não tinha estruturado o Cancioneiro (coletânea de sua produção poética) e fixado, por meio dele, os pontos nevrálgicos de sua psique e de seus recalques.
À minha mulher
Tu és como uma jovem,
uma branca franguinha.
Descabelam-se ao vento
as penas, a nuca se inclina
a beber, e no chão cisca;
mas andas com o lento
teu passo de rainha,
e caminha na grama
peituda e soberana.
Melhor é que o macho.
É como são todas
as fêmeas de todos
os bichos sossegados
que aproximam de Deus.
Assim se olho, e juízo meus
não se enganam, a essas tu és chegada
e a nenhuma outra dona.
Quando à noite o sono assoma
as galinhas
põem umas vozes como as que tinhas
dulcíssimas, quando tu sorrateira
queixavas-te de tuas dores, e não sabes
que tua voz tem a suave e triste
música dos poleiros.
Tu és como uma grávida
novilha;
livre ainda e sem nenhum
gravame, antes festeira;
que se a agradas o pescoço
vira, onde tinge um tenro
rosado a carne dela.
Se a encontras e a mugir
a ouves, aquele som
choroso faz-te arrancar
a grama para lhe doar.
E assim faço-te um dom
quando te encontro triste.
Tu és como uma longa
cadela, que tem tanta
doçura no olhar, quanto
é feroz no interior.
A teus pés uma santa
parece, que de fervor
queima, indomável
enquanto te assume
como seu Deus e Senhor.
Quando em casa ou na rua
segue, a quem apenas tente
aproximar-se, os dentes
alvíssimos descobre
e seu amor sofre
de ciúme.
Tu és como a pávida
coelha. Dentro da angusta
gaiola ergue-se reta
ao ver-te,
E para ti estica
alto as orelhas robustas;
pois as raízes e a farinha
trazes, que lhe faltam e
aninha-se
à cata de cantos escuros.
Quem poderia seu repasto
tomar? e quem o pelo
que arranca de seu ventre
para fazer o ninho
onde depois parir?
E quem fazer-te sofrer?
Tu és como a andorinha
que no verão retorna.
Mas no outono parte;
e tu não tens essa arte.
Tu tens da andorinha
o movimento ligeiro;
e isto para mim que me sentia e era
velho, anunciava uma outra primavera.
Tu és como a previdente
formiga. Dela
quando a passeio na montanha,
fala a velha ao menino
que a acompanha.
E assim na abelha
eu te reencontro, e em
todas as fêmeas de todos
os animais sossegados
que aproximam de Deus;
e em nenhuma outra dona.
(Trad. Aurora Bernardini)
Esses objetos todos de que Saba se envolve não são porém, segundo a abordagem psicocrítica de Lavagetto, momentos isolados ou cristalizados de sua vida. Cada verso carrega a energia da realidade ou da virtualidade que exprime, mas está ligado à totalidade da memória da obra, cuja estrutura é temporal, ou melhor, no caso específico de Saba, cronológica . E Saba, que vê sua poesia como um ressarcimento,“não escreve movido por uma exigência estética ou por uma experiência intelectual, mas movido por suas próprias pulsões pessoais. […] Ele se descreve, mesmo quando descreve coisas”[4].
A poesia – que foi considerada pelo próprio Saba como fruto de sua neurose – condena quem a pratica ao isolamento, mesmo se alimenta dentro dele um desejo de integração inesgotável e atormentado: mas as “palavras de todos”, os “valores de todos”, qualquer possível identidade com os outros, parecem inalcançáveis, porque a poesia funciona como um freio, como uma “fresta azul” que o poeta conserva para/ contemplar-se naquilo, gozar/ a alegria conseguida/ de não mesmo ser eu.[5]
Mais tarde (1929), já leitor de Nietzsche e conhecedor das teorias psicanalíticas em voga (principalmente Freud, Jung e O. Rank), Saba escreve ao amigo Comisso: “A psicoanálise é uma grande coisa, mas não é uma arte. […] Ela pode, após uma longa disciplina, levar ao conhecimento dos fatos, ou melhor, dos sentimentos removidos e dar portanto à consciência do homem uma maior profundidade; se o homem é um artista, sua arte pode, por reflexo, ressentir-se”[6].
Em 1946 Saba, que havia iniciado sua análise com Edoardo Weiss sem terminá-la, publica uma carta-ensaio com o título de “Poesia e psicanálise” na então famosa revista La Fiera Letteraria em resposta a uma carta anterior enviada por Benedetto Croce com o nome de “Psicanálise e poesia”. Croce insistia na distância entre uma e outra aduzindo que
a poesia é constituída (materiata) de amor (e portanto do assim chamado irracional ou inconsciente sexual) donde dizer-se que nasce do amor; mas, ao mesmo tempo, está cheia do anseio à elevação e à superação do referido irracional na vida religiosa e moral […]. E por isso o freudismo não traz, a meu ver, à filosofia nada que ela já não saiba no modo especulativo e rigoroso que lhe é próprio, embora muito diga ao psicólogo e ao médico.
Quanto às características da arte, alegadas por Croce, Saba não as discute. O que ele discute é a postura da influente personagem frente à psicanálise:
Não basta ter lido Freud ou outros psicanalistas para entender algo da psicanálise e de sua importância, que vai além (muito além do que Croce pensa) de uma terapêutica ou de um método subsidiário de análise psicológica, […] como não basta a alguém que sofre de catarata consultar um tratado de oculística no verbete que trata desta enfermidade; ele deve, se quiser sarar, ir até um oculista habilitado e fazer-se operar. […] Muito teríamos a objetar àquele “especulativo e rigoroso” que seria, segundo Croce, o método da filosofia. Que seja especulativo, sabemos de sobejo, que seja rigoroso, podemos até concedê-lo. Mas no que baseia o filósofo para aquela especulação e aquele rigor? No puro mundo das ideias, as quais se apresentam ao intelecto do especulante sem nenhuma suspeita do que pode estar escondido embaixo e atrás daquelas ideias e daquelas conseguintes especulações. Para tocar num exemplo célebre: o que se escondia em Kant atrás de seu imperativo categórico, que, tal como ele o põe, nada mais é do que uma afirmação gratuita (e também um pouco suspeita), nascida de suas conhecidas inibições? Existe nele, sim, algo de parecido com o Superego, tal como expõe a psicanálise. […] Entre o imperativo categórico de Kant e o Superego de Freud há de permeio o equívoco da neurose, o fato de não podermos ver claramente em nós mesmos e nos nossos instintos mais da metade dos males que nos afligem. E o filósofo é, como os outros homens, vítima, sobretudo em seus juízos, de seu próprio inconsciente. […] Dissemos que o que permanece, para o artista, para além de qualquer análise, é sua inata faculdade de expressar-se. Do filósofo também permanece alguma coisa: é sua capacidade de raciocinar, de sistematizar seu pensamento, (qualquer que ele seja), de dar-lhe uma forma lógica e coerente. O que tem demonstrado até hoje a filosofia é o mecanismo – a técnica – do pensamento humano. Nessa técnica – conforme é sabido – Croce passou por mestre.[7]
É também para explicar-se sua “neurose”que, a partir de 1921, Saba empreende seu reconhecimento dos fatos, sua volta às origens ordenando seus poemas em edições sucessivas, sempre alteradas e acrescidas, até 1957; e é sobre esta trilha que se move Lavagetto, cotejando os indícios da obra com a biografia do poeta e estabelecendo certas “verdades” interpretativas, no nível da lógica inconsciente que emerge do texto. Não é possível, obviamente, acompanhar aqui os “momentos traumáticos” emergentes nos poemas do menino semijudeu, semicatólico, cujo pai abandonara a mulher austera e bem mais velha que ele, antes de Berto nascer. Nem vê-lo sendo amamentado pela ama eslovena Beppa Sabaz (de cujo sobrenome ele valeu-se) e amá-la durante a vida inteira, em contraposição à mãe, à qual infligiu (infligindo-se) uma série de “castigos”; nem sabê-lo sempre sofredor por ser mantido à parte pelos outros, embora tendo participado de grupos e de ações coletivas, ser pai em busca do pai, traído pela mulher e doente dos “nervos” até acabar seus dias numa clínica, apesar dos reconhecimentos, prêmios e honrarias, que já nada lhe diziam.
Vamos, porém, voltar ao poema “À minha mulher” e focalizar um dos “objetos” traumáticos não apenas do poema, mas da própria poética de Saba, seu “epicentro” no dizer de Lavagetto, e acompanhar aos poucos sua evolução. Se a centelha que deu origem ao poema foi a cachorra do casal, que veio encostar seu focinho no colo do poeta quando a mulher tinha saído para compras em Trieste – (recorda o poeta) –, o elemento recorrente, que aparece com insistência numa série de outros poemas, é a franguinha branca.
Há, além disso, um conto do autor denominado especificamente “A galinha”, onde é relatado, com poucas variantes, um episódio autobiográfico: Odon recebe o primeiro salário (tal como Umberto, fora encaminhado ao comércio e não aos estudos preparatórios para ingressar na universidade) e o dinheiro com que a mãe ranzinza lhe permite ficar ele gasta comprando no mercado das aves – enquanto se dirige ao escritório onde agora trabalha – uma bela galinha branca. Desde criança sentira fascinação pelos galinheiros, e quando estudante, sem irmãos nem irmãs, brincara com uma galinha que a mãe tinha comprado para “matá-la e comê-la”, mas que, movida pelo choro do pequeno, tinha enfim consentido que ela ficasse viva e livre, a andar pela casa feito um cachorro.
Odon compra então a galinha e manda que a entreguem viva em casa. Só que, chegando ao escritório,
sentia que có-có tinha morrido de uma vez por todas, e que não se podia substituí-la com nenhuma das galinhas do mundo; que sua infância também tinha morrido […] que fora um erro deixar a escola pelo emprego; que fora cometido um erro em sua vida não sabia quando nem como, um erro, um pecado, que o angustiava cada dia mais, e que o rapaz pensava que fosse somente a ele, não sabendo ainda (como soube até bem demais mais tarde) que aquela dor era a dor do homem, do ser vivente enquanto indivíduo; era a dor que a religião chama de pecado original.
Quando volta para casa, lá está a galinha, pendurada num prego, depenada, a galinha em sua rigidez de cadáver. O rapaz se desespera, vai a seu quarto e prorrompe em soluços. Quando a mãe o procura ele tenta explicar a ela seu desespero, mas ela o censura. Um rapaz de quinze anos não pode mais brincar com galinhas. Ao saber que fora ela quem matara a galinha, ele passar a amar menos, cada vez menos, sua mãe.
De posse dessas informações, o crítico estabelece então uma série de relações. Primeiro, que a galinha, na vida e na obra de Saba, tem o papel de “animal sagrado”. Isso é explicado, inclusive, por uma coincidência muito significativa. Foi justamente durante a análise de Saba que Edoardo Weiss traduziu para o italiano Totem e tabu de Freud e, analisando-o, leu o livro com grande entusiasmo. Ao tabu, conforme se sabe, ligam-se proibições e restrições. A sua infração provoca um “horror sagrado”, sendo “sagrado”, nesse caso, sinônimo de ambíguo, antinômico, puro e impuro, ao mesmo tempo. “Sagrado é o que se cinde em elementos antitéticos de igual valência que tendem a recarregar-se com a força contrária, e a reproduzir as estruturas polarizadas do núcleo primitivo”, explica Lavagetto.
Segundo, voltando-se ao conto autobiográfico de Odon, deduz-se que a galinha, em companhia da qual o pequeno transcorria suas horas mais serenas, tem uma função dupla, de defesa e de garantia. O eu do pequeno Odon recorta cuidadosamente aquela parte de mundo que lhe permite tomar-se como objeto e, enquanto tal, reconfortar-se, proteger-se: o resto todo é rechaçado. No espaço dramático que ele criou os papéis são trocados: a galinha é Odon e Odon é a própria mãe.
Terceiro: no mercado das aves, diante da gaiola dos frangos, Odon cede a uma tentação visceral, da qual, no escritório, se arrepende. Ele está em plena puberdade (quinze anos) e quando, em casa, a mãe o censura dizendo-lhe que com a sua idade já não se pode brincar com galinhas, a alusão é clara: a galinha insinuou-se como elemento de iniciação.
Finalmente, o pecado original mencionado no conto remete novamente a Totem e tabu, e mais particularmente ao pecado da horda, o parricídio, e ao fato de o animal-totem tomar o lugar do pai e vive-versa. Ora, os dois preceitos básicos do totemismo, o de não matar o totem e o de não usufruir sexualmente de nenhuma mulher do mesmo totem, coincidem com os dois crimes de Édipo e com os desejos primitivos do menino, constituindo provavelmente, segundo Freud, a semente de toda neurose. Aqui está então a galinha-totem como reencarnação do pai. A mãe, matando a galinha, elimina indiretamente o obstáculo ao incesto; daí o horror sagrado, misto de puro e impuro, que Odon sente. Poderia se tratar para ele, então, de um complexo edipiano negativo. Mas por que o conto se encerra justamente com a frase: “desde aquela tarde Odon amou menos, sempre menos, sua mãe”? Porque a senhora Raquel, matando a galinha, mata a infância de Odon, mata o pai que a galinha representa, mas, anulando a própria neutralidade, desenterra o pecado das origens e mata também a si própria.
Notas
- Este texto foi publicado com outro título na revista Insight, n. 10, set. 2000.
- Hugo Friedrich, La lirica moderna, Milão, 1958, apud. Mario Lavagetto, La gallina di Saba, Turim, Einaudi, 1974
- Opinião do crítico Giancarlo Pontiggia, que, no prefácio da coletânea de poemas de Saba, La malinconia amorosa (Milão, Rizzoli, 1992), explica o porquê: “Saba, com sua desordem intelectual, seu empirismo formal, sua palavra psicanalítica, a exaltação de um universo irracional de forças e de sentimentos, representa a nova imagem de poeta que os novos tempos requerem”.
- Pontiggia, op. cit., p. 24.
- Lavagetto, op. cit., p. 61.
- Ibid., p. 16.
- A carta-ensaio de Saba pode ser encontrada em Saba, Lettere Sulla Psicoanalisi, Milão, se srl, 1991.
Umberto Saba, born March 9, 1883, Trieste, Austria-Hungary [now in Italy] died Aug. 25, 1957, Gorizia, Italy.
Italian poet noted for his simple, lyrical autobiographical poems. Saba was raised by his Jewish mother in the ghetto of Trieste after his Christian father deserted them when Saba was an infant. From age 17 Saba developed his interest in poetry while working as a clerk and a cabin boy and serving as a soldier in World War I. He established his reputation as a poet with the publication of Il canzoniere (1921; “The Songbook”), which was revised and enlarged in 1945, 1948, and 1961. Storia e cronistoria del canzoniere (1948; “History and Chronicle of the Songbook”), published at the time of the second revision, is a work of self-criticism that reveals the author’s desire for fame.
Saba’s formative poetry, written in the first two decades of the century, was influenced by Petrarch, Gabriele D’Annunzio, Giacomo Leopardi, and Giosuè Carducci. The notable poems from his early period include “A mia moglie” (“To My Wife”), “La Capra” (“The Goat”), and “Trieste.” In the middle phase of his career, throughout the 1920s, he wrote in a Freudian vein on such topics as desire and childhood memories. The poetry of his final phase was largely reflective, characterized by the poems “Avevo” (“Ashes”), “Felicità” (“Happiness”), and “Ulisse” (“Ulysses”).