Com a proximidade da morte, Iberê Camargo resolveu que parte de sua vida, por meio do registro memorialístico, deveria “acabar em um livro”. Mas, não obstante essa nota lateral que faço ao poeta Stéphane Mallarmé referindo, de passagem, uma imagem modelar de sua obra, cumpre advertir que o pintor gaúcho (e, mais adiante, o leitor talvez concorde não ser excessivo o adjetivo gentílico) é um “escritor” pré-mallarmaico. Tudo deveria acabar (bem!) em um livro. Entretanto, Iberê Camargo ainda não o sabia. Com efeito, afirmo isso porque, para Iberê, escrever “pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo — o existir”. Isso representa tudo menos o feeling poético-escritural do autor do poema “Salut”, cujos questionamentos sobre os limites da expressão verbal o fizeram suspeitar do objeto resultante da nomeação. Mallarmé não investe sua força criativa na realidade (no ser), já que a considera um defeito na pureza do não-ser, que só se presentifica na sugestão, na alusão que se constela na forma do poema.
Em outras palavras, o poeta francês faz a opção pela arte em prejuízo da vida. Entretanto, a imperfeição da linguagem por meio da qual a arte (a poesia) deveria plasmar-se esbarra em uma razoável incomunicabilidade (“abolido bibelô de inanição sonora”), no fracasso. Fracasso exitoso, porque seu relato, isto é, o poema feito e grafado na folha branca, o redime dessa condição. No mesmo sentido, esse Iberê de Gaveta dos guardados situa-se em zona aquém-joyciana. Os escritores do moderno castelo de Axel — simbolistas lanto sensu — fundaram a tradição de uma literatura criadora de mundos alternativos, de espaços onde se pode despertar do pesadelo da história. Pode-se argumentar que um verdadeiro escritor talvez não tenha necessidade de passar pelas obras desses autores para ocupar o seu lugar ao sol; também não se cobrará, portanto, ao virtual artista que seja simpatizante de tal estética.
Mas, ao interessado em literatura com limitações visíveis (e é o caso do pintor), será mais necessário ainda ampliar seu repertório passando por uma série de lances de linguagem, inclusive pelos autores citados, que fazem o movimento mais agudo na direção da autonomia do texto poético em relação ao real. Os experimentos desses escritores do alto modernismo se conectam à aventura expressiva de Henri Matisse. Uma anedota: certa feita, enquanto o pintor desenhava uma oliveira, observou os vazios existentes entre os galhos e começou a desenhá-los. Se Matisse se detivesse apenas na representação da oliveira que pode ser vista, ou que “aparece” no mundo, estaria pondo em relevo os “acentos fortes” do seu verismo. Porém, o artista, ao representar os vazios, os interstícios da oliveira, desenha, figura os “acentos átonos”: o silêncio e os limites da representação (do mundo), verbal ou não.
Se, no caso de Iberê, lanço mão das aspas para o substantivo escritor que se quer aplicar após o seu nome, faço-o não com o intuito de diminuir-lhe a estatura nessa expertise em que muitos, hoje, se espojam com a maior naturalidade, desatentos e cínicos com relação às imposturas e aos compromissos advindos dela. Pretendo tão só colocar em discussão a qualidade da prosa do artista que, a julgar pelas palavras de Augusto Massi (editor e organizador da obra), parece ser de elevada fatura. Massi deu a forma definitiva ao livro, a partir do volume Memórias inconclusas, papéis organizados por Flávio Tavares e Elizabeth Mattos. O próprio artista não deixara esboçado nenhum plano ou roteiro a ser executado com vistas à consecução da obra. O editor e organizador, segundo suas próprias palavras, penetrou nesse labirinto de textos e peças soltas, tentando configurar as “linhas de força” do monturo memorialístico. Debruçado sobre esse acervo, Massi enxerga uma “prosa intensa e breve”.
De minha parte, não vejo senão um desconjunto de esboços e reminiscências textuais de um “pintor em férias”. Aliás, não é de todo estranho que o editor refira a certa altura do prefácio que, embora Gaveta dos guardados não explique a pintura de Iberê, “sem dúvida, fornece elementos que nos ajudam a compreendê-la”. Nesse momento, Augusto Massi acaba por operar um recuo na tentativa de niquelar a figura do pintor com cacoetes literários, pois o registro autobiográfico, ao fim e ao cabo, põe em cena uma persona: o homem-pintor. Mas, por detrás do hífen que, de acordo com Massi, faz as vezes de um “traço de união” fundindo o destino de ambos, é importante reconhecer que o sinal estabelece também uma disjunção potencial, já que a separação em oximoro está na base de outra persona: o pintor-escritor. Gaveta dos guardados, a contragosto do que pretende Augusto Massi, converte-se num anexo menor para a “compreensão” da “verdade da obra de arte” de Iberê e que, segundo o próprio, “é a expressão que ela nos transmite”.
A persona de escritor, que Iberê Camargo afivela sobre seu consagrado rosto de artista visual, pode indicar, por um lado, não só a esperança do retorno mais seguro ou comunicativo ao “pátio da infância” (já que, por antonomásia à sua pintura expressionista, o domínio do verbal seria mais convencional e firme) na quadra derradeira da existência pessoal, mas também denunciaria sua confiança, ou melhor, seu fervor no poder de nomeação da metáfora verbal. E “pátio da infância” é um breve exemplo dentre muitos em que o pintor dispõe de efeitos convencionais do fazer literário com vistas a ingressar de modo convincente em tal espaço expressivo. Vejamos outros símiles: “As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar”; “O progresso é uma ação de despejo em execução”; “… o beijo da luz”; “Lanço-me na pintura e na vida por inteiro, como um mergulhador”; “A memória é a gaveta dos guardados…” etc.
No entanto, Iberê não é mesmo um escritor, em sentido borgiano. Para confirmar isso, basta confrontar o texto “O duplo” (pág. 33) com o famoso “Borges e eu”, do prosador e poeta argentino. Ao contrário de Borges, “a ideia do indivíduo de ser dois apavora” Iberê: ele se acovarda diante do outro que vive fora dele, espécie de pesadelo. Borges, sem deixar de ser melancólico, é mais sorridente; escreve: “Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me”. Não há exasperação. Há um pacto crepuscular celebrado entre os dois, que determina que ninguém saberá “qual dos dois escreve esta página” sobre a qual o leitor se curva. Borges sabe que todo escritor precisa desse outro parafrástico, disjuntivo, irônico, pois sem ele não há consciência de linguagem. Para Iberê Camargo, já era demasiado intolerável o hífen que fundia precariamente a fantasmagoria homem-pintor.
Suas memórias, mesmo que Augusto Massi se aplique diligentemente tentando situá-lo como um artista capaz de desempenhar a função de escritor — para tanto o poeta-editor nos lembra a camaradagem de Iberê com nomes importantes da literatura, bem como suas leituras, como se tal contiguidade servisse de credencial —, representam um contraponto deprimido ao impacto grandioso da “lama estelar” (metáfora empregada por Ferreira Gullar) da eloquência, da retórica compacta da pintura inventada por Iberê Camargo, às vezes algo jaculatória e gesticulatória em sua expressividade.
Gaveta dos guardados está apenas alguns furos acima de ser uma curiosidade, um mimo elegante que o mercado editorial “disponibiliza” aos apreciadores de um pintor que, segundo ele mesmo, em algum momento, tentou através dos seus quadros refletir “a eterna solidão do homem”. Contudo, o peso algo descabido dessa afirmação condizente com a fanfarronice típica do gaúcho, dado sempre a fantasias épicas, acaba por se esgotar em arabesco retórico. A reunião desses textos se deixa ler sem sobressaltos como mais um volume integrado à coleção das obras-sobre-iberê-camargo-na-cosac-naify. Colecionadores, marchants, artistas do segundo escalão, dondocas decadentes (da desinteligente elite porto-alegrense, principalmente) etc, enfim, o livro vai para essa gente que tem estômago, inclusive, para essa literatura sem sal que o artista deixou em testamento e para além das margens da escala pictórica.