Depois do sucesso de Dioniso crucificado (Topbooks, 2006), coletânea de ensaios filosófico-literários que foi premiada e saudada como o apogeu do pensamento crítico de Per Johns (durante anos ele escreveu nos principais jornais do Rio), o autor agora publica Hotéis à beira da noite (Tessitura, 2010) que, juntamente com As aves de Cassandra (prêmio Jabuti, 1991), no dizer dos que acompanham sua obra, marca o auge de sua produção como romancista.
Narrador em primeira pessoa, o protagonista não só retoma os alertas diante dos desandares do mundo que marcaram a estreia literária de Per Johns (A revolução de Deus, 1977), mas decide-se por opções – agora definitivas –, algumas de âmbito pessoal, outras de alcance universal.
Aparentemente – tal como propõe um “insuspeito” cientista sueco (Gosta Ehrenvärd) em Dioniso crucificado – a escolha é simples:
Será que é tão inconcebivelmente difícil de aceitar um estilo de vida consideravelmente mais simples, em estreito contato com o solo e a floresta, as semeaduras e as colheitas, sob o sol e sob a chuva, em um programa industrial bastante reduzido?
De fato, após várias peripécias e reavaliações, o narrador-protagonista do romance se desfaz dos hábitos e dos bens supérfluos da “civilização” ocidental e, com o mínimo necessário para sua sobrevivência, passa a viver numa palhoça à beira-mar.
Por trás deste ato, entretanto, há toda uma constelação de pressupostos outrora (des)considerados como passadistas, mas hoje cada vez mais pertinentes, “nesse mundo midiático de mensagens que se superpõem, se aglutinam e se anulam (…) triturando-nos na sopa geral que nos alimenta e consome”. Esta frase é do ensaio “Dioniso crucificado” – que dá o nome ao livro mencionado, inspirado pela memória de Vicente Ferreira da Silva, cujas ideias Per Johns codivide ardorosamente e algumas das quais ele elege a Tese de seu romance.
Ferreira da Silva é, conforme se sabe, um pensador brasileiro outrora “silenciado pela intransigência ideológica que timbra em substituir a dificuldade de pensar pelo conforto de rotular”, diz Per Johns, ou perenemente – agora nas palavras de Milton Vargas, professor emérito da Escola Politécnica e filósofo, contemporâneo e amigo de Vicente Ferreira da Silva: “porque, ao lado da valorização do que é nosso, existe uma espécie de pudor, ou, no pior dos momentos, de repúdio daquilo que nos parece elaboradamente inteligente”. Por outra, tendo-se Vicente aproximado nos anos 30 dos matemáticos italianos que lecionaram na USP, tidos como “direitistas”, em contraposição aos mestres franceses da Faculdade de Letras e Ciências Humanas, tidos como mais liberais, a etiqueta pegou.
Não é que de lá para cá o nosso discernimento tenha melhorado muito: passou-se do “conforto” dos rótulos à pasteurização. “O mundo está tão politicamente correto, não há mais humor. É triste.” (Anthony Hopkins, também insuspeito, numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 11/02/2011).
Mas o caso de Vicente é surpreendente. Quem se der ao trabalho (por sinal, enlevante) de ler sua obra completa recentemente reunida e republicada (org. Rodrigo Petrônio, é Realizações Editora) verá, com assombro, que ele iniciou seu périplo de pensador enquanto era aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, com estudos autodidatas tão aprofundados e tão brilhantes de Lógica matemática (título, inclusive, de seu primeiro livro, de 1940) que o fizeram ser convidado por Orman Quine, da Universidade de Harvard (quando aqui esteve, em 1942) para ser seu assistente. O surpreendente é o seguinte:
A lógica para Vicente Ferreira da Silva teria sido, segundo alguns de seus intérpretes, a sua opção de agressão contra um mundo de 2000 anos que parecia caduco, em lugar da opção, por exemplo, por atividades da Internacional Comunista, como outros fizeram.
Não apenas, entretanto, seu encontro com Quine foi um desapontamento como, de repente, ele dá uma guinada: afasta-se das ciências exatas e “adentra a fenomenologia e os temas da filosofia da existência”. (Quarta capa de Lógica simbólica – org. Rodrigo Petrônio, é Realizações, 2009).
“Viveu tão desesperadamente a secura do mundo da Lógica” – diz novamente Milton Vargas na Introdução ao livro acima – “que a própria Lógica o conduziu ao mundo feérico do inarticulado – onde as palavras [como que em contraposição ao dito de Wittgenstein] são forçadas a dizer o que não pode ser dito. Este mundo ele habitou desde então, enquanto viveu (…) do mais aberto existencialismo, de onde, finalmente, veio a desembocar na floresta da mitologia”.
É nessa floresta que o encontra Per Johns. Vejam-se tão somente dois momentos do pensamento do filósofo (Dialética das consciências – Obras completas, org. Rodrigo Petrônio, é Realizações, 2009) que se cruzam com os de Per Johns romancista, e que este assume como teses de Hotéis à beira da noite. “A forma apolínea do corpo emerge da noite dionisíaca do Sangue, do Sangue passional que é o nosso verdadeiro ser” (VFS, citado apud “Dioniso crucificado”), ou também: “o conhecimento, e portanto a revelação da verdade das coisas, é muitas vezes o fruto de uma conversão da vontade e não de um puro ato intelectual. A ordem da razão dependeria em última instância da ordem do coração” (Vicente Ferreira da Silva, Obras completas, p. 43, doravante OC); e “não é com as coisas que o homem tem que se haver no processo mitológico, mas com as potências que se levantam no interior da consciência a cujas impulsões ele obedece”. (OC, p. 283).
Como, porém, quase retomando um famoso ensaio de Walter Benjamin (“Destino e caráter”), Ferreira da Silva também disse que é o mythos que constitui o destino de um povo, assim como o do homem é o seu caráter (OC, p.280), compreende-se por que o nórdico Jon Fusk, protagonista do romance, educado dentro de rígidos ditames formais de aparência e status, após revisitá-los e rejeitá-los em uma longa e acidentada viagem, se entregue ao calor humano do sul – a verdade pela qual seu “homem das profundezas” ansiava, a sua “ordem do coração” – e abrace como éthos a proposta do cientista sueco, na simplicidade essencial da palhoça à beira-mar; mas compreende-se também por que ela é uma escolha meritória, digna e louvável, entretanto, …hélas…, nesse maravilhoso sul, relegada apenas ao âmbito individual.
Seja por falta de “Educação” (tal como a entende Ferreira da Silva: “condução da consciência para as suas possibilidades mais próprias”, OC, 258) e/ou por excesso de uma educação tão somente apoteose da liberdade e portanto “incapaz de produzir nenhum resultado estável, nenhuma forma humana ou social determinada” (OC, 377), seja porque não cuidou do seu mythos, perdendo com isso seu éthos de vida e convívio humano, “o brasileiro [– em geral, e vivam as exceções! –], tendo deixado de viver como um ser que subordina sua conduta a um módulo universal e nacional, é incapaz de realizar aquelas operações que supõem um estilo ético de vida” (OC, 357).
É uma verdade dura, mas, como disse Santo Agostinho em De magistro, também citado por Vicente Ferreira da Silva (OC, 380): “Discimus non verbis fortis sonantibus, sed docente intus veritate”.