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A CRÍTICA EM ESTADO CRÍTICO

1. Fim de uma forma

Em palestra recente (“A crítica literária no jornal e no livro“, ABL, 30/08/2011), o poeta Felipe Fortuna, um dos mais percucientes críticos atuais, trata de modo extenso, convincente e algo paradoxal “do possível fim de uma forma”. Paradoxal porque seu próprio texto, ainda que não se trate de crítica, mas de metacrítica, é prova suficiente de que a crítica literária ainda não chegou ao fim no Brasil. Fato mais importante do que os cínicos, os céticos, os niilistas e os bárbaros em geral podem perceber:

Involuntária ou não, articulada ou não, a crítica literária não deve escapar a seu destino mais evidente: o potencial para influenciar as tendências de pensamento e, desse modo, o gosto e os modos de desfrutar o texto. A atividade crítica provoca importante reverberação social.

Se isso é potencialmente verdade do lado da pólis, complementarmente, do lado do indivíduo, eis o que sobre tal atividade pode ser dito (como de fato o foi, por Henry James):

O senso crítico está tão longe de ser frequente que é absolutamente raro, e a posse do arsenal de qualidades que ele exige é uma das mais altas distinções.

Enfim, alguém já disse que se deve ser cético na mente, mas não se pode ser cético no coração – ou algo assim. Pois somos animais sociais, condenados ao convívio. Logo, só há duas opções: civilização ou barbárie. E a crítica, desde que inventada pelos primeiros filósofos gregos, faz parte da primeira.

O que afinal demonstra, mais uma vez, o status ambíguo do país: mezzo civilizado, mezzo bárbaro, além de ter o tempero mais carregado na segunda metade. Pois a crítica míngua, como diagnostica Felipe Fortuna no início de sua palestra. A começar pela grande imprensa.

Há uma evidente diminuição de espaço quando se trata do debate literário. No Brasil, a palavra “literário” desapareceu de todos os suplementos antes em vigor. Nenhum deles sequer utiliza a palavra “livro” em seu título, como se o livro tivesse sido abandonado numa época anterior ao aparecimento das mídias eletrônicas. Há suplementos de autos, de informática, de turismo, de televisão e de mercado financeiro e, inevitavelmente, o caderno de classificados. Há um suplemento de gastronomia intitulado Paladar – privilégio de um só dos nossos sentidos, aparentemente. No jornal O Estado de S. Paulo, há um segundo caderno intitulado C2 + Música, ou seja, com ênfase numa forma de cultura altamente lucrativa em forma de rock, jazz ou popular brasileira. No Rio de Janeiro, desapareceu juntamente com o tradicional Jornal do Brasil o suplemento Ideias & Livros, que cuidou, durante décadas, de lançamentos e de debates sobre literatura.

Ao mesmo tempo, há um grande paradoxo que lança sua longa sombra sobre a luminosidade difusa da internet.

Comenta-se com frequência sobre o desprestígio da crítica literária atualmente – e não apenas no Brasil, mas naqueles países (a exemplo da França, dos Estados Unidos e da Grã Bretanha) onde a crítica literária refletia, de algum modo, o alto valor da literatura. Não há mais centralidade em relação ao texto literário, confrontado, até mesmo em termos de tempo médio de consumo, aos meios audiovisuais e digitais.

Ao menos em relação à crítica literária e ao debate literário, os meios digitais, infelizmente, não substituíram a imprensa tradicional. Fosse isso verdade, e teria havido apenas um deslocamento – além de um possível ganho: não há a princípio limite de espaço nos meios eletrônicos, logo, textos mais extensos e mais bem fundamentados poderiam levar a crítica e o debate a uma nova fase virtuosa. Mas o que se deu foi, como regra, o contrário.

A rede é a materialização (não fora virtual) de certa “democracia pós-moderna”: para o bem e para o mal, para o bom e o ruim, nela não há filtro, não há editoria, mas apenas esparsos pontos de referência em um vasto e profundo mar de sargaços. Além disso, tampouco há algo que poderia ser uma diferença qualitativa dos meios eletrônicos: o debate a quente, quase como numa ágora virtual (o que predomina são “comentários”, numa cornucópia de opiniões pessoais irrelevantes, a mais pura realização do “l´enfer c´est les autres” de Sartre).

Não que a internet não tenha potencial para ser a grande ágora de uma nova democracia direta, melhor e maior do que a grega original, pois esta era uma democracia oligárquica, semelhante a uma assembleia (et pour cause) de acionistas (em que uns poucos poderosos têm voz e voto). Porém esse potencial, tão alardeado e nunca realizado, dificilmente se realizará. Por um lado, uma democracia direta ampla, geral e irrestrita é, na verdade, o rugido amorfo da multidão. Dito de outro modo: onde o mérito não tem meios de se sobressair, não há meios de o mérito se sobressair. Por outro lado, há meios demais de tudo se “sobressair”: a proliferação de vozes via blogues pessoais, por exemplo, gera uma cacofonia sem fim.

Voltemos, ao menos por um momento, aos velhos jornais.

2. O mais recente panorama da poesia

Num pequeno mas veramente louvável gesto contra a maré montante de vazio crítico e literário que assola os jornais, O Estado de S. Paulo publicou há pouco uma série de três ensaios de escopo relativamente abrangente, um sobre a situação da prosa, outro sobre a situação da poesia e um terceiro sobre a situação da crítica. Deter-me-ei aqui sobre o segundo. Não pelos méritos do texto, mas porque a situação da poesia é, com o perdão do trocadilho, sempre a mais crítica. Pois a poesia é, ao mesmo tempo, a mais fácil e mais difícil das artes (nada mais fácil do que um poema ruim – por isso mesmo, nada pior do um poema fácil).

O convidado para tratar do segundo tema, no entanto, recusa a demanda e o escopo da série, de traçar um panorama, neste caso, da situação da poesia:

Os panoramas literários, que supõem um observador imparcial do alto, em posto privilegiado, apagam o que há de específico em cada autor, em cada obra, em cada poema, em cada imagem, em cada marca rítmica: justamente as particularidades que tanto custa à arte alcançar e consumar na materialidade de uma linguagem. Em vez do panorama impossível (há centenas de poetas legíveis em ação no Brasil), pode-se especular sobre algumas – apenas algumas – linhas de força da poesia contemporânea (Alcides Villaça, “Linhas poéticas em circulação”, http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,linhas-poeticas-em-circulacao,761212,0.htm).

Não sei se um panorama pressupõe um observador imparcial. Sequer um posto privilegiado ou alto. Porque isso só é necessário se a paisagem tiver vales e também picos: apenas estando no pico mais elevado se pode, então, divisar tal paisagem. Porém numa planície ou num deserto plano, basta manter-se prosaicamente de pé para poder ver longe. Tampouco é verdade que essa visão à distância apague necessariamente o que há de específico no que se observa: contra a luz crua de um céu sem nuvens, mesmo um pequeno pássaro é avistado com nitidez. Em todo caso, mesmo à grande distância se pode então distinguir uma pomba de uma águia, e isso é o fundamental. Por isso é possível, sim, delinear o panorama atual da pobre paisagem da poesia brasileira, pois as referidas centenas de poetas não se elevam em sequências de dunas altas, muito menos em cadeias de vastas montanhas, mas sim num largo acúmulo de montículos. Deixando porém a topografia de lado, e indo para a geometria, o autor troca o panorama pelas “linhas de força” – ou pelos “traços persistentes”.

A intenção não é tipificar poetas (que podem e sabem transitar entre poéticas ou mesmo se inventar o tempo todo), mas divisar alguns traços persistentes entre as várias escolhas que fazem parte de seu repertório de criação e que dão voz a atitudes básicas suas, nos quadros da vida.

Volto a citar Henry James: “O senso crítico está tão longe de ser frequente que é absolutamente raro, e a posse do arsenal de qualidades que ele exige é uma das mais altas distinções”. Se esta afirmação vale para a crítica, valerá também para a metacrítica. Isso dito (e redito), nada isenta o crítico de cometer erros.

No contexto da crescente escassez de espaço e de relevância da crítica, o crítico desperdiça uma pequena grande oportunidade de publicar um texto com alguma, bem, relevância – e em seu lugar descreveu um quadro anódino de uma paisagem anêmica. Descrevê-lo serve, então, como contraexemplo da crítica hoje mais necessária.

À primeira vista, é espantoso. Ante a irrelevância da poesia e da crítica, correr riscos deixa de ser arriscado. Criticar a poesia brasileira contemporânea não é o mesmo, por exemplo, que questionar aspectos do islã. Se num caso a consequência é fátua, noutro pode ser uma fatwa (foi irresistível…). “Em vez do panorama impossível (há centenas de poetas legíveis em ação no Brasil), pode-se especular sobre algumas – apenas algumas – linhas de força da poesia contemporânea”… Poetas legíveis? O que isso significa, além de que escrevem em português? Em todo caso, “pode-se especular” e “sobre algumas” seguida da repetição “apenas algumas” é, claramente, uma forma explícita de esquiva. Mas, afinal, por que não arriscar? Não há uma boa resposta, porque a pergunta está errada. A verdadeira questão é, de fato, esta: por que sim? Se não há muita importância em nada disso, para que se agastar, gastar o latim ou o português e ainda arranjar alguma eventual sarna para se coçar, ou seja, uma coceira relativamente incômoda apesar de causada por um animalzinho tão ínfimo que chega a ser invisível? O resultado é o par complementar do democratismo amorfo da rede, agora em letra de imprensa.

Pois o que emerge desse não-panorama é, afinal, um panorama. Mas sem grandes relevos. Ou relevâncias. Ora, eu mesmo afirmei acima que a paisagem atual da poesia se assemelha mais a uma planície ou a um deserto. Logo, o autor traçaria afinal o panorama certo por linhas tortas. Mas deixando as metáforas para lá, não é o que acontece.

3. Não é o que acontece

Para evitar conceitos mais taxativos, preferi caracterizar com imagens os módulos poéticos mais reconhecíveis: poesia de oficina; na janela da rua; recolha decantada.

Existe janela que não dê para a rua? O segundo “módulo poético” não deveria ser, então, simplesmente “à janela”, significando um olhar voltado para a “rua”, ou seja, o mundo, em vez de para o próprio poeta (como no lirismo tradicional) ou para a própria poesia (como na poesia metalinguística em geral e na poesia moderna em particular)? Porém o problema maior está no terceiro “módulo”. Não consigo ler a expressão “recolha decantada” a sério. É insuportavelmente… poética.

Em todo caso, o preço de se evitar conceitos “mais taxativos”, um mal difuso da crítica atual, é que os conceitos ficam menos tachativos – isto é, menos agudos, ou pontiagudos. Menos penetrantes e com menor poder de fixação.

Poesia de Oficina. Neste amplo espectro, o poeta conta com outros poetas ou leitores que, como ele, dispõem de um espelho crítico em que a linguagem se contempla e se avalia o tempo todo, seja para lamentar, aceitar ou comemorar seus limites. A questão inicial é a viabilidade mesma da arte literária, e o poema é o lugar onde se investigam o alcance e o poder das ferramentas verbais. Ronda sempre a ameaça de tudo se reduzir a um simulacro, uma paródia, um pastiche, uma tradução, pois já não se aposta em expressão absolutamente original, nem em invenção definitiva. Mas há também uma aposta limite, feita pelas vanguardas (Concretismo e Práxis, sobretudo): a de que a espacialização material dos signos, obtida em relações linguísticas autoexpostas e programaticamente administradas, corporifica a poesia em novos parâmetros funcionais. Estes se fazem mais que experimentos: desejam-se conclusivos, e excluem tudo o que neles não possa ser convertido. Fenômeno mais recente: a incorporação da mídia eletrônica e digital para uma performance multifuncional de linguagens (os recursos do vídeo nos chamados “clipoemas”, por exemplo). Uma vez admitindo, no entanto, alguma desconfiança quanto aos triunfalismos da criação, o poeta pode discutir em plena marcha seu processo construtivo: o tom reflexivo, a agilidade do pensamento, o desejo de cobrir ao mesmo tempo todas as contradições dos discursos mobilizados rechaçam os improvisos líricos, ou mesmo a música do mundo, mas continuam, ardentemente, querendo significar.

Não creio que seja nada disso, ou quase nada. Mesmo porque, Villaça parte de João Cabral e sua corbusiana “máquina de comover”:

João Cabral já reconhecera a machine à emouvoir (máquina de comover) como paradigma construtivo.

O problema é que isso se aplica somente ao primeiro Cabral, ao qual a expressão serve de epígrafe. Posteriormente, Cabral transformaria essa “máquina de comover” em máquina de como ver. Sua poesia se torna, tematicamente, cada vez mais plástica, e sintaticamente, cada vez mais prismática, no sentido de analítica. E é isso, a capacidade analítica ou crítica da linguagem poética, que em poucas palavras caracteriza a poesia de “oficina”. Trata-se, simplesmente, da linguagem poética consciente de si mesma, ou seja, da poesia moderna. “O poeta conta com outros poetas ou leitores que, como ele, dispõem de um espelho crítico em que a linguagem se contempla e se avalia o tempo todo”: de fato, desde Poe e a “Filosofia da composição” (1858), base da modernidade de Baudelaire, não há poesia (ou arte) moderna sem autoavaliação. O resto é questionável. Ou surpreendente. Pois surpreende que tal confusão ainda seja possível: “a aposta feita pelas vanguardas de que a espacialização material dos signos, obtida em relações linguísticas autoexpostas e programaticamente administradas, corporifica a poesia em novos parâmetros funcionais”. Há uma inversão flagrante da relação de causa e efeito: a espacialização foi efeito, não causa, como aqui parece, da busca de “novos parâmetros funcionais”, ou seja, de funcionamento da linguagem poética. Daí ser apenas um deles, e apenas o mais evidente. Para piorar, não sei o que significa “performance multifuncional de linguagens”, mas desconfio que está aí, no contexto de uma “incorporação da mídia eletrônica e digital”, assim de modo completamente inespecífico, somente para “registro”, ou seja, para marcar a contemporaneidade crítica do crítico.

Uma vez admitindo, no entanto, alguma desconfiança quanto aos triunfalismos da criação, o poeta pode discutir em plena marcha seu processo construtivo: o tom reflexivo, a agilidade do pensamento, o desejo de cobrir ao mesmo tempo todas as contradições dos discursos mobilizados rechaçam os improvisos líricos, ou mesmo a música do mundo, mas continuam, ardentemente, querendo significar.

Não há “alguma desconfiança quanto aos triunfalismos da criação”, mas sim a mais completa confiança em sua falácia. Cria-se hoje a contrapelo, cria-se à revelia, cria-se sem saber por que ainda criar, por vício, ócio, estupidez, insistência, desistência (de saber a razão) ou o que seja, mas não por “alguma desconfiança”. Muito menos por “continuar ardentemente querendo significar”. Ardentemente? Não ninguém que eu conheça.

Em Elipse, de Júlio Castañon Guimarães (Poemas), lê-se: “Há obras que, no limite, só resistem sob lentes, de fato seus simulacros, produzidos nos próprios interstícios da fábrica”. Acho difícil encontrar forma mais lapidar para introduzir um leitor no âmbito mais denso da poesia de oficina. O verso, mesmo, não chega a ser necessário: o poético se insinua como discurso de busca, forma que também é a da prosa.

Bem, eu não acho nada difícil, porque nada há aí de lapidar, mas tudo de um prosaísmo obeso e intoxicado pelo próprio vocabulário “sofisticado”: “Há obras que, no limite, só resistem sob lentes, de fato seus simulacros, produzidos nos próprios interstícios da fábrica…”. “Sob lentes”? “De fato seus simulacros”? “Nos próprios interstícios”? Sério?! Além disso, o “poético” (sic) “se insinua” (idem)?! “Forma que também é a da prosa”? Ah sim: a prosa poética, o poema em prosa e toda essa velha e confusa facilitação tardomodernista.

O resultado: juntar no mesmo saco, ou pôr na mesma “oficina”, Armando Freitas Filho, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Marcos Siscar e Júlio Castañon Guimarães, o que só é possível se a oficina em questão for a do crioulo doido do samba. Verdade que Villaça coloca Siscar, por exemplo, entre os “acadêmicos austeros”. Mas além de conseguir dar a isso uma conotação positiva, omite o que de fato se trata: de um “poeta” prosaico em todos os sentidos da palavra prosaico. Já Arnaldo Antunes, se não me engano, é pop, adepto de certo “primitivismo tribalista” que bordeja o infantilismo, mas passa longe do niilismo pseudoinfantil do dadaísmo (mais gugu do que dadá): “como é que chama mesmo o nome disso?”, ou coisa semelhante. E Paulo Leminski, apesar de compartilhar com Ferreira Irregullar a grande irregularidade, em seus momentos mais altos, ainda que relativamente raros, concentra mais linguagem poética do que todos os demais citados juntos. Ou somados. Ou amassados. Ou o que seja.

4. A janela, a rua e a recolha

Já que falamos em Ferreira Irregullar, isso nos leva ao “módulo” seguinte, o que fica “na janela da rua”. Pobre Irregullar. Janela da rua parece demais com “violão de rua”, aquele troço popular-populista dos anos 1960. Certo, Irregullar teve momentos populistas nos anos 1960. Mas alto lá: ele é o autor, e por isso mesmo é Irregullar, e não apenas um violeiro de rua ou da janela qualquer, do Poema sujo, a mais limpa linguagem coloquial-modernista da poesia brasileira, e de certa forma a coisa mais perto do melhor Allen Ginsberg (numa versão mais contida e reiterativa) que por aqui já se chegou. Será por que o Poema sujo é tematicamente urbano que o crítico o coloca “na janela da rua”?

Aqui, as experiências vividas surgem como uma matéria mundana a ser modulada e transfigurada, nos tons e afetos mais variados. Nessa matéria há já uma força de impacto que é o detonador da criação. Nas suas polarizações, essa poesia pode imitar o grito das vivências brutas, numa espécie de gestualidade corpórea, ou transfigurar os códigos da violência mundana no expressionismo das imagens.

Bom, o melhor poema de Ginsberg se chama, se não grito, Uivo. Mas não se trata de Ginsberg. E “imitar o grito das vivências urbanas” é coisa de teatro universitário. “Gestualidade corpórea”? “Transfigurar os códigos da violência mundana no expressionismo das imagens”? Desconfio desse vocabulário brilhante, sonoro, mas nada além de sonoro e brilhante. A crítica moribunda de hoje precisa de mais vigor se quiser sobreviver. O que significa exatamente, afinal, transfigurar? E o mais importante: como pode um Régis Bonvicino estar posto no parapeito dessa mesma janela? Com Roberto Piva, Glauco Mattoso, Waly Salomão e Eucanaã Ferraz?!

Em momentos de Cinemateca, livro de poesia forte e delicada, Eucanaã Ferraz vale-se de imagens cuja força de gravidade puxa o leitor para a água-forte do jogo amoroso ou para o abate de um boi.

Talvez eu gostasse de ser “puxado” para um “jogo amoroso” (a depender da companhia, obviamente), mas jamais para o “abate de um boi”. E o que isso tem a ver com linguagem poética? Dizer que essa “poesia forte vale-se de imagens cuja força” isso ou aquilo é, tão somente, um jogo fraco de palavras.

Gosto de Glauco Mattoso, principalmente o da primeira fase, radicalmente jocossério em sua paródia de expert escatológico de todos os experimentalismos então em voga, coligida no Jornal dobrábil. Enfim, esse módulo consegue ser ainda mais samba do crioulo doido do que o primeiro. Pois além do Glauco da primeira fase, que o autor parece ignorar, Régis Bonvicino, naturalmente, se for para levar isso a sério, pertence à “oficina”, não à “janela”.

Trata-se afinal de um complexo e vigoroso syntaxier, para usar o termo mallarmaico, de um “sintaxeador”, que faz uma poesia posicional e composicional. Sintaxe, aliás, em grego significa posicionar (daí o verbo taxiar). O que Bonvicino empreendeu, para fazer aqui uma síntese brutal, foi um estranhamento crescente da sintaxe portuguesa através de rupturas sintático-posicionais, tmeses, elipses e cia., e neste aspecto estrutural pouco importa, no sentido de que importa pouco, relativamente (embora importe bastante em outro sentido), se tematiza a cena urbana, como em Página órfã, ou, para não dizer que não falou das flores, se delas fala ou parece falar em Remorso do cosmos. Villaça não passa, neste caso, da pele do poema. Não ameaça sequer chegar perto de seu osso, que dirá de sua medula.

O que dizer, enfim, do terceiro “módulo”, o da “recolha decantada”? Nada. Pois se alguma poesia contemporânea puder ser de fato assim nomeada, não merece ser comentada.

5. O que resta

Resta, apenas, a “vinheta” que finaliza o texto:

Terá ficado claro que aqui se buscou rascunhar operações poéticas, e não classificar poetas e obras, mencionados para abrir tendências, sem pretender esgotá-las. Tais operações circulam na criação de hoje, mesclando-se aqui, apurando-se ali, mas sugerindo linhas de força que parecem à espera de um momento maior de consolidação: a criação que saiba enfeixar os múltiplos nervos de nosso tempo relativista, representando-o numa forma superior, voz para as nossas mais fundas necessidades.

A primeira parte da conclusão apenas dá continuidade à falta de vigor do resto da análise: é de fato ocioso explicitar que “se buscou rascunhar operações poéticas, e não classificar poetas e obras”, afinal apenas “mencionadas” para “abrir tendências”, seja lá isso o que for. Tampouco nada disso “sugere linhas de força que parecem à espera de um momento maior de consolidação”, mas o contrário. Trata-se, em sua maioria, de pontos de acomodação, à espera apenas da próxima resenha amigável.

Porém a conclusão última é irretocável: estamos de fato à espera “da criação que saiba enfeixar os múltiplos nervos de nosso tempo relativista, representando-o numa forma superior, voz para as nossas mais fundas necessidades”. E é por estarmos disso à espera que disso estamos à míngua. E por disso estarmos à míngua não podemos suprir nossas necessidades poéticas. E por isso descrever como e por que não o podemos é hoje a tarefa maior da crítica.

Post scriputm

Ironicamente, logo após fechar este texto, abro a Folha de S. Paulo de sábado, 17/09/2011, e dou de cara com uma negação ocasional das colocações iniciais de Felipe Fortuna: a Ilustrada é dedicada, desde a capa, a certo “boom” da poesia brasileira. E em três vertiginosas vertentes: uma, a “poesia digital”; outra, certa “poesia da periferia”; por fim, o “novo interesse” editorial.

Começando pela “poesia digital”. Jorge Luis Antonio, da PUC, citado na matéria, vem há anos fazendo um trabalho de formiga para separar o relativamente pouco trigo desse muito joio, porém o artigo remistura tudo e oferece um pão requentado: “A poesia em meios não impressos firmou-se como espaço de experimentação na literatura contemporânea”, decreta retumbante seu início (“Novos poetas ‘pulam para fora da página’”, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201110.htm). Mas em seguida, tal montanha pare um ratinho: “Os poemas digitais, por exemplo, utilizam a hipertextualidade da internet para criar uma leitura fragmentária, conduzida de acordo com os cliques do leitor”. Como se “leitura fragmentária” e “conduzida de acordo com os cliques do leitor” (argh) significassem experimentação – ou qualquer possibilidade crível de relevância. Para piorar, além de muito joio e pouco trigo, há muito alho com bugalho, ou anemia com anomia :

Interessa-me dessacralizar aquilo que foi estabelecido enquanto instituição, como a poesia impressa em livro, para tornar o poema tão livre quanto o foi nos períodos em que era raramente escrito. Uma poesia corporal, ainda que escrita em bites.

A declaração, na mesma matéria, é de certo Márcio André. Ao que o “performer” (sic) Marcelo Sahea acrescenta: “a poesia é anterior à escrita e está mais próxima da música e das artes visuais que da literatura”. Sei. Vá dizer isso a Dante.

A seguir, há a “descoberta” da “nova poesia” da “periferia” (“Cooperifa mistura todos os versos e leva até estrangeiro à periferia”, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201112.htm) – que prontamente se revela a repetição, como farsa, do que se deu há poucos anos com a “prosa da periferia”, de Ferréz e Paulo Lima e uns poucos mais, cujo “frescor bruto” salvaria a prosa nacional etc. Tudo populismo. A “periferia” é multiculturalmente correta, nossa versão pobre dos asiáticos e muçulmanos atritando e “revigorando” o antigo centro europeu… Nada, em todo caso, poderia ser mais populista do que esta declaração inacreditável – não viesse de quem vem:

“Estamos no meio de uma revolução. A poesia, que até o século passado era vista como arte de elite, está mudando de dono e de classe social, indo para a periferia. É a coisa mais importante da literatura brasileira hoje”, diz o poeta Frederico Barbosa, diretor da Casa das Rosas, que abriga saraus na avenida Paulista, organizados com o auxílio de Marco Pezão.

Saravá! O sarau da periferia nos salvará! Sarau? Mas isso não é coisa do século retrasado? Em todo caso, vejamos de fato do que se trata:

Você nunca saberá quem eu sou/ se escutar apenas a si mesmo/ Não me instrua;/ deixe-me ser/ seu fracasso é que eu seja/ idêntico a você”
Eliane Amara, lendo Humberto Maturana

“Meu RG não muda de numeração,/ não sou bandido mau, nem mocinho bom,/ sei o que eu quero, eu tenho diretriz/ dos meus filhos/ sou aprendiz”
JB, rapper

“E quando Deus retornou/ do seu descanso sagrado/ deu de cara com o jumento/ que já tava terminado/ mas notou logo um defeito/ meio desproporcional”
Miguel, declamando Amazan

(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201113.htm)

É democrático. É espontâneo. É tudo o que se queira. Mas acima de tudo é, poeticamente, o mais puro lixo. Não basta “pureza” primitiva ou “periférica”, boas intenções etc., para criar algo que preste. Infelizmente. Mas já não estamos exaustos de saber disso, desde as tentativas populares-populistas do “realismo socialista”, da “poesia marginal”, do “violão de rua” etc.?!

Na terceira face do “fenômeno”, a editorial, o jornal cita novas edições dos poetas de sempre, com destaque para a 7Letras, notadamente de poetas “fortes” na provinciana cidade do Rio de Janeiro (“Coleções de poesia confirmam nova tendência editorial”, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201114.htm). Essa “nova tendência”, em todo caso, é a mais perfeita negação das duas anteriores: pois se trata de poesia em papel, em livro, e de poetas “do centro”…

Por fim, como exemplo dessa terceira “tendência”, uma resenha destaca o novo livro de Chico Alvim (O metro nenhum, São Paulo, Companhia das Letras). Não por acaso, o maior responsável pela “descoberta” da “prosa da periferia”, anos atrás, foi Roberto Schwarz: o mesmo que elevou a farsa que é Elefante, o livro anterior de Alvim, ao posto de “revolução poética”. Agora é a vez de Augusto Massi reiterar a nova manifestação da sublimidade de Alvim (o normalmente contido crítico mal se contém de euforia):

É preciso dizer que neste novo livro de Chico Alvim alguns poemas estão impregnados de magnetismo, plenos de beleza e enigma (“Estilo tardio exibe radicalidade de Francisco Alvim”, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201115.htm).

Pode ser que estejam. Mas nas muitas amostras da poesia do livro que a própria resenha traz, não se vê sequer a ameaça da ponta de uma sombra de qualquer magnetismo, qualquer beleza ou qualquer enigma. Ou talvez seja incapacidade minha de vê-los (afinal, sou míope). O leitor que conclua por si:

tem a menor importância/ Nem antes/ Nem depois/ Nem durante.

Esta magnética beleza enigmática tem por título “Nada, mas nada mesmo”. Ao menos o título é pertinente.

Quem sou eu/ para

Esta outra magnética beleza enigmática se intitula “Avaliar”. Sacou, esperto leitor? É “circular”: quem sou eu para avaliar… Avalie pois o leitor o fato de o crítico conseguir afirmar, sobre isso, isto:

Em outros poemas [como “Avaliar”], título e versos se autodevoram, feito cão tentando morder a própria cauda. O título, sem nenhuma mediação, despenca sobre os versos; estes, por sua vez, são arremessados para o lugar do título. As palavras se alternam sem parar, presas num sistema de rolamentos, condenadas à imobilidade e ao movimento.

Talvez os jornais dedicarem pouco espaço à poesia não seja, afinal, assim tão ruim.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).